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Há mais de dez anos, Neal Patwari estava deitado em uma cama de hospital, monitorando cuidadosamente sua respiração. Ao seu redor, 20 transceptores sem fio estavam em guarda, fazendo o mesmo. Conforme o peito de Patwari se movia para cima e para baixo, as ondas eletromagnéticas emitidas pelos aparelhos se propagavam ao seu redor. Patwari, agora professor na Universidade de Washington em St. Louis (EUA), acabara de provar que essas ondulações poderiam revelar padrões da respiração dele.
Alguns anos depois, pesquisadores do MIT fundaram uma startup com a proposta de usar sinais de Wi-Fi para detectar situações de quedas de pessoas. Eles esperavam permitir que os idosos vivessem de forma mais autossuficiente em suas casas. Em 2015, o protótipo da empresa chegou ao Salão Oval da Casa Branca: como demonstração, um dos pesquisadores tropeçou e caiu em frente ao Presidente Obama. (Obama disse que a invenção era “bem legal”.)
É uma ideia tentadora: que os mesmos roteadores que nos fornecem internet também possam detectar nossos movimentos. “É como uma espécie de bússola para tudo que está relacionado a tecnologia de monitoramento de ambiente”, diz Sam Yang, que comanda a startup Xandar Kardian, que projeta sensores de acompanhamento e coleta de dados relacionados à saúde e ao bem-estar das pessoas. De acordo com ele, por um certo tempo “os investidores simplesmente apareciam em bando”.
Quase uma década depois: ainda não vimos um dispositivo Wi-Fi capaz de monitorar a respiração ou detectar quedas que seja comercialmente viável. Em 2022, a empresa de iluminação Sengled apresentou uma lâmpada Wi-Fi que supostamente conseguiria fazer ambas as coisas, mas ainda não foi lançada. A startup que realizou a demonstração da inovação para Obama deixou de usar a tecnologia Wi-Fi em seus dispositivos e optou por utilizar outras ondas de rádio. Outra empresa de monitoramento de respiração, chamada Asleep, começou usando a tecnologia de Wi-Fi Sensing, mas decidiu mudar para o uso de microfones na coleta de seus dados. Patwari também fundou sua própria empresa para fabricar monitores de respiração por Wi-Fi. Mas, de acordo com ele, “fomos superados pelo Google”.
O Wi-Fi Sensing como uma forma de monitorar métricas de saúde individuais foi amplamente superado por outras tecnologias como radares de banda ultralarga. Mas ele não desapareceu do mercado. Ao invés disso, passou a se tornar discretamente disponível em milhões de lares, com o suporte dos principais provedores de serviços de internet, empresas de casas automatizadas e fabricantes de chips. A onipresença do Wi-Fi continua a torná-lo uma base atraente para se desenvolver uma ampla gama de aplicativos e serviços digitais a partir dela, especialmente com o aprimoramento contínuo das redes. Em breve, graças a algoritmos melhores e modelos de chips mais padronizados, a tecnologia de Wi-Fi poderia estar monitorando de forma imperceptível nossos movimentos cotidianos para todos os tipos de propósitos surpreendentes — e às vezes alarmantes.
Sim, o Wi-Fi poderia monitorar sua respiração. Poderia detectar quedas. Também pode tornar os prédios mais tecnológicos e aumentar a eficiência energética rastreando onde as pessoas estão. No entanto, o lado negativo disso é que também poderia ser usado para inúmeros outros propósitos mais maliciosos. Alguém que não estivesse na sua casa poderia, em tese, saber quando ela está vazia, ou ver o que você está fazendo dentro dela. Pense em todas as razões pelas quais alguém poderia querer monitorar secretamente os movimentos de outra pessoa. O Wi-Fi Sensing tem o potencial de tornar muitos desses usos possíveis. Além disso, ao contrário de outras formas de monitoramento baseadas em Wi-Fi que podem analisar os dados criptografados transmitidos pelas ondas de Wi-Fi, o Wi-Fi Sensing se concentra nas propriedades físicas das próprias ondas eletromagnéticas, isto é, suas características mensuráveis. Ele representa um novo tipo de risco à privacidade, e para o qual mecanismos de proteção ainda estão sendo elaborados.
O Sensor de Sono do Google está incorporado ao seu Nest Hub: ele rastreia a respiração, o ronco e a tosse de quem estiver dormindo mais próximo ao dispositivo, usando não o Wi-Fi Sensing, mas um chip de radar. Ou seja, a tática do Google é basicamente a mesma que a de Patwari: primeiro usar ondas eletromagnéticas para detectar pequenos movimentos e, em seguida, usar Inteligência Artificial (IA) para dar sentido a eles. A principal diferença está no comprimento das ondas: comprimentos de onda mais curtos oferecem mais largura de banda e, portanto, mais precisão, enquanto os mais longos permitem a detecção de movimentos em distâncias maiores. As ondas que se propagam a partir da maioria dos dispositivos que utilizam Wi-Fi têm 5 ou 12 centímetros de comprimento, o que significa que elas podem cobrir uma área muito grande. Por outro lado, as ondas do chip de radar do Google têm apenas 5 milímetros de comprimento e podem fornecer informações mais precisas e específicas. Para chegar a um nível de detalhamento próximo a esse, o Wi-Fi Sensing precisa analisar como as ondas de múltiplos dispositivos interagem. Mas, conseguindo tal façanha, ele vai oferecer tanto um nível alto de detalhes quanto um bom alcance de detecção — e tudo isso sem a necessidade do uso de chips de radar específicos ou aparelhos dedicados ao monitoramento como dispositivos portáteis. Se o Wi-Fi Sensing se tornar uma opção padrão em dispositivos inteligentes como lâmpadas (uma tendência que já está acontecendo), então eles podem começar a monitorar você. E à medida que essa tecnologia melhora, esses dispositivos podem começar a analisar com mais detalhes o que você faz.
De acordo com Patwari, inicialmente, “[a precisão do Wi-Fi] era bastante limitada”. As localizações eram precisas apenas a dois metros, e duas pessoas conversando próximas uma da outra poderiam ser interpretadas como apenas uma só. Ao longo da última década, os pesquisadores têm se concentrado em extrair mais informações das longas frequências de onda utilizadas pelos roteadores comerciais. Mais importante ainda, eles estão utilizando IA para dar sentido aos metadados, conhecidos como channel state information (CSI, ou em tradução livre, “informação do canal de transmissão”), que descrevem como as ondas se dispersam ou enfraquecem em um ambiente específico. Isso lhes dá muito mais informações para analisar. Dezesseis anos atrás, “nós seríamos capazes de saber com bastante certeza se uma pessoa tinha passado por determinado local”, diz Patwari. “Mas agora, estamos obtendo informações sobre o padrão de caminhada de alguém”. Apesar disso, à medida que o Wi-Fi Sensing aumenta seu nível de levantamento de dados, a confiabilidade desses detalhes permanece incerta. “O sinal não está livre de interferências”, diz Yang.
Se o Wi-Fi Sensing se tornar uma opção padrão em dispositivos inteligentes como lâmpadas (uma tendência que já está acontecendo), então eles podem começar a monitorar você.
Enquanto isso, os avanços em IA que estão ajudando a aprimorar o Wi-Fi Sensing também estão beneficiando a tecnologia de radar. As diversas formas de uso que tornaram o sensor de movimento por Wi-Fi fascinante uma década atrás, agora estão comercialmente disponíveis em dispositivos de radar especializados, que usam comprimentos de onda mais curtos.
A Inspiren, uma empresa de radar que trabalha em hospitais e estabelecimentos de cuidados com idosos, combina dados de radares e câmeras instaladas acima das camas para detectar possíveis quedas. O sistema não apenas alerta a equipe médica para quedas, mas também identifica momentos de maior risco para pacientes frágeis, como quando saem da cama. A empresa de sensores de Yang vende um dispositivo médico aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) que consegue monitorar os batimentos cardíacos quando instalado acima das camas de hospital ou em celas de prisão, sem que as pessoas sendo monitoradas precisem usar dispositivos portáteis dedicados. Alguns deles já estão em uso em prisões de Kentucky (EUA), onde o objetivo é ajudar a prevenir overdoses e outras emergências médicas.
Porém, há um uso muito mais assustador para essa tecnologia: espionagem em ambiente fechado. Patwari ganhou seu lugar nos jornais, em 2009, com a manchete “Sinais de Wi-Fi podem ver através de paredes”, quando sua tecnologia detectou movimentos de pessoas do outro lado de paredes ou portas. Em janeiro de 2023, novas versões dessa manchete apareceram novamente na mídia, desta vez por conta de uma história sobre pesquisadores da Universidade Carnegie Mellon (EUA) que usaram uma IA chamada DensePose para gerar formas corporais a partir de sinais de Wi-Fi (mas a precisão estava longe de ser perfeita). Radares que detectam pessoas através de paredes existem há anos — e são usados por equipes SWAT (equipes de Armas e Táticas Especiais), patrulha da fronteira, equipes de busca e resgate e também por militares.
No entanto, Daniel Kahn Gillmor, um tecnólogo da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, pela sigla em inglês), expressa preocupações sobre o uso do Wi-Fi Sensing por parte de agentes estatais, especialmente em relação à privacidade de ativistas. “Temos muitos exemplos de abuso de autoridade”, diz ele. “Se as forças de segurança tiverem acesso a esses dados e usarem eles para intimidar pessoas, então será mais um conjunto de metadados sujeito a usos abusivos”.
O Wi-Fi Sensing já está substituindo outras ferramentas de detecção de movimento. Ele também pode contribuir para disponibilizar mais amplamente algumas funcionalidades de radar já existentes, embora, em muitos casos, com uma menor confiabilidade. De acordo com Gillmor, em ambos os contextos, a tecnologia poderia ser usada por corporações para monitorar consumidores, trabalhadores e organizadores sindicais; por perseguidores ou agressores domésticos para assediar suas vítimas; e por outras pessoas ou grupos maliciosos para cometer uma variedade de crimes. O desconhecimento das pessoas sobre o fato de estarem sendo monitoradas só aumenta o risco. “Precisamos de proteções legais e técnicas”, diz Gillmor.
O Wi-Fi Sensing também pode introduzir novas formas de monitoramento. Com seus comprimentos de onda mais longos, o Wi-Fi consegue cobrir mais terreno do que o radar de ondas milimétricas. Como a equipe do MIT demonstrou em 2015, ele conseguiria detectar quedas em residências particulares, ao invés de somente ambientes hospitalares. Mas há uma razão pela qual o Nest do Google rastreia a respiração a partir de uma mesa de cabeceira ao invés de usar cada lâmpada na casa: no mundo real, o contexto para os algoritmos analisarem é complexo. Em um quarto de hospital, uma queda provavelmente é uma queda. Em uma casa, a queda de uma idosa parece muito com uma criança pulando do sofá. Portanto, os pesquisadores estão estudando maneiras de tornar os algoritmos mais eficientes na identificação de padrões e na correspondência correta de eventos aos usuários conhecidos, isto é, às pessoas que estão sendo monitoradas. Além de sinalizar quedas, uma ferramenta como essa poderia detectar a presença de um ladrão enquanto uma família está de férias. E, dependendo das configurações e do contexto, também poderia detectar um adolescente chegando tarde da noite em casa, ativistas realizando uma reunião ou, em países que aplicam leis de sodomia, (leis que definem certos atos sexuais como crimes) duas pessoas do mesmo sexo dormindo na mesma cama.
Ainda no espectro eletromagnético, é claro que as câmeras de segurança e as de babá eletrônica já conseguem monitorar indivíduos com facilidade. “Não se esqueça: os detalhes que obtemos dessas câmeras é simplesmente incrível”, diz Taj Manku, CEO da empresa de sensoriamento por Wi-Fi, a Cognitive Systems. “Você vê o rosto da pessoa. Você vê se eles estão fazendo polichinelos ou se estão se exercitando, ou se estão fazendo algo errado”.
Mas, de acordo com Gilmor, mesmo que as ferramentas existentes já possam obter resultados similares, isso não reduz o risco embutido nelas: “Isso leva ao niilismo da privacidade”.
Independente do fato do Wi-Fi conseguir superar outros sensores dedicados ou não, integrar a tecnologia de sensor de movimento nessas ferramentas pode, eventualmente, aprimorar as habilidades de cada uma delas. Por enquanto, as empresas do ramo estão aproveitando o alcance do Wi-Fi para se concentrar na proteção domiciliar, além de outra área em que elas acreditam que a tecnologia já é a melhor solução. Spence Maid, CEO da empresa de Wi-Fi Sensing, a Origin Wireless, explica assim: “Eu odeio dizer isso, mas… ‘A mamãe está viva?'”
Até um ano e meio atrás, Emily Nikolich, 96 anos, morava sozinha em um condomínio em Nova Jersey (EUA). Todos os dias, seus netos enviavam novas fotos para ela por meio de um aplicativo em seu tablet. Todos os dias, Emily podia espiar o dia a dia de seus cinco bisnetos, com idades entre recém-nascido e quatro anos. Enquanto isso, seu filho Paul Nikolich, 68 anos, estava fazendo o mesmo com ela.
Em 2021, Paul instalou uma ferramenta de detecção de Wi-Fi Sensing da Origin Wireless chamada Hex Home. Cinco pequenos discos luminosos conectados a uma rede e distribuídos ao redor da casa de Emily (com consentimento e permissão dela) ajudavam Paul a monitorar a movimentação da mãe no local. Ele me mostrou o aplicativo. Ele não rastreava necessariamente a Emily; mas a movimentação específica perto de cada disco. Mas como Emily morava sozinha, o resultado era o mesmo: Paul podia facilmente acompanhar suas jornadas diárias da cama até a cozinha, ao banheiro e de volta ao ponto de partida.
Era “um alívio”, diz Paul, saber que sua mãe estava bem, mesmo quando ele estava viajando e não podia ligar para ela. Então, quando Emily se mudou para um lar de idosos no ano passado, os monitores foram junto. O Hex aprendeu a rotina de Emily e se algo fora do comum acontecesse — se, por exemplo, ela ficasse na cama o dia todo — o sistema poderia enviar um alerta para Paul. Até agora, ele não recebeu nenhum. “Felizmente, ela está muito bem”, diz ele.
Na prática, a tecnologia de sensor de movimento ainda tem dificuldades com interpretar detalhes. Mas ela é ótima em perceber a presença humana, independentemente de obstáculos como paredes ou móveis. E, de acordo com Manku, qual seria essa precisão? “É de 100%”, diz ele. Isso torna o Wi-Fi Sensing ótimo para gerenciamento de energia (o fabricante de lâmpadas WiZ o utiliza para desligar as luzes em cômodos vazios) e para reduzir os alarmes falsos dos sistemas de segurança doméstica. Também pode ser útil em lugares com populações mais idosas. No Japão, diz Maid, “eles precisam fazer com que os carteiros batam nas portas e se certifiquem que as pessoas ainda estão vivas”. Uma empresa com sede em Okinawa está desenvolvendo um serviço de comprovação de vida usando a tecnologia da Origin.
Manku estima que pelo menos 30 milhões de residências já têm algum tipo de Wi-Fi Sensing disponível. Um dos novos roteadores (chamado Fios) da Verizon agora é enviado com o “detector de presença humana” da Origin Wireless embutido. Outros aparelhos automatizados e fixos já conectados na rede, como lâmpadas, tomadas inteligentes, alto-falantes ou Google Nests, podem instantaneamente se tornar sensores. Outros provedores de serviços de internet estão criando ofertas semelhantes: a Cognitive Systems fez parceria com mais de 160 fornecedores de internet. Em janeiro, ela anunciou que sua tecnologia em breve estará disponível em muitas das tomadas inteligentes baratas à venda na Amazon. Essa integração permitirá que as pessoas usem o sensor de movimento Wi-Fi por meio de seus aplicativos domésticos inteligentes já existentes do Google, Apple e Amazon Alexa.
As empresas de Wi-Fi Sensing com as quais conversei esperam, um dia, ir ainda mais longe: atender não apenas residências e pequenas empresas, mas também prédios comerciais maiores ou lojas. Segundo Manku, a tecnologia poderia, por exemplo, ajudar os bombeiros a localizarem pessoas em meio a fumaça densa demais para se enxergar; ou então sistemas de climatização inteligentes poderiam deixar os aparelhos de ar-condicionado ligados para as pessoas que precisam trabalhar depois do horário de fechamento do escritório. Dados de ocupação poderiam ajudar as empresas a tomar decisões de redução de funcionários em um contexto pós-pandêmico. Além disso, dados de tráfego de pessoas poderiam informar o posicionamento de produtos em lojas. Mas para ser útil nesses cenários complexos, o Wi-Fi precisaria ser capaz de contar e localizar com precisão muitas pessoas.
Jie Yang, pesquisador da Universidade do Estado da Flórida (EUA), está pensando em algo maior e em uma direção ligeiramente diferente: ele está usando a tecnologia para contar e localizar pessoas, e só então monitorá-las individualmente. “Cinco anos atrás, o foco da tecnologia era em monitorar uma única pessoa”, diz Yang. “Atualmente, estamos tentando analisar várias pessoas, como uma família”. As pesquisas recentes se concentraram em usar padrões de caminhada ou taxa de respiração como características distintivas para reconhecer uma pessoa específica, mesmo em uma situação com várias outras. Em um artigo de 2023, Yang mostrou que era possível reidentificar pessoas em novos ambientes. Mas para que essa pesquisa funcione no mundo real, mesmo com apenas alguns membros da família ou funcionários, os pesquisadores não precisarão apenas de uma IA melhor — eles também precisarão de equipamentos melhores.
É aí que entra o filho de Emily, Paul.
Nos últimos 22 anos, o jovem Nikolich preside um grupo pouco conhecido pelo público, mas influente, dentro do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE): o Comitê de Padrões 802 LAN/MAN, que estabelece os padrões técnicos para compatibilidade Wi-Fi e Ethernet.
Em 2019, Nikolich participou de um jantar do IEEE em Washington, DC (EUA). Ray Liu, fundador da Origin Wireless e então ex-presidente recente do IEEE, estava sentado do outro lado da mesa, discutindo monitoramento por Wi-FI com outro participante. Nikolich começou a ouvir a conversa. Ele já sabia de todos os pormenores da internet, tanto cabeada quanto sem fio, desde a época em que as URLs foram inventadas. Mas ali, de repente, algo diferente e inovador surgiu. “Fiquei muito animado com essa ideia”, diz Nikolich.
Nikolich e Liu começaram a conversar, e Nikolich apoiou a criação de um subcomitê dedicado ao Wi-Fi Sensing. Desde 2020, o 802.11bf Task Group for WLAN Sensing, liderado por especialistas de empresas como Huawei e Qualcomm, vem trabalhando em padrões para fabricantes de chips, com o intuito de simplificar a implementação e o uso de tecnologias de monitoramento por Wi-Fi. Essencialmente, quando os novos padrões entrarem em vigor, as CSIs que os algoritmos da tecnologia usam se tornarão mais consistentes. Atualmente, essas informações requerem muita validação e correção de erro. Quando o novo padrão for lançado em 2025, ele permitirá que “cada dispositivo Wi-Fi extraia facilmente e de forma confiável dados específicos do sinal”, diz Yang. Isso por si só auxiliará o desenvolvimento e lançamento de mais produtos de Wi-Fi Sensing no mercado. “Será revolucionário”, acredita Liu.
As possíveis aplicações futuras imaginadas pelo comitê incluem a contagem e localização de pessoas em residências ou lojas, a detecção de crianças deixadas nos bancos traseiros de carros e a identificação de gestos, além de objetivos almejados há muito tempo como detecção de quedas, frequência cardíaca e respiração.
Quanto a esses objetivos, outros três subcomitês do IEEE também podem causar um impacto. O primeiro é o 802.11be, mais conhecido como Wi-Fi 7. Com o lançamento do Wi-Fi 7 este ano, será disponibilizada uma banda extra de frequências de rádio para novos dispositivos Wi-Fi utilizarem, o que significa mais CSI para os algoritmos. Ele também poderá ter mais antenas pequenas instaladas em cada dispositivo Wi-Fi, o que deve ajudar os algoritmos a triangular posições com mais precisão. Com o Wi-Fi 7, diz Yang, “a capacidade de detecção pode melhorar exponencialmente”.
O padrão Wi-Fi 8, previsto para ser lançado daqui a alguns anos, pode representar mais um avanço em termos de detalhe e precisão. Combinado com algoritmos mais avançados, diz Yang, o Wi-Fi 8 poderia permitir que os sensores rastreassem não apenas duas ou três pessoas por roteador, e sim de 10 a 20. Além disso, o compartilhamento de informações entre roteadores poderia possibilitar a contagem e o rastreamento de indivíduos em movimento em espaços internos lotados, como aeroportos.
Por fim, um padrão de comunicação sem fio menos utilizado, conhecido como WiGig, já permite que dispositivos Wi-Fis operem na faixa de ondas milimétricas, semelhantes aos chips de radar como o do Google Nest. Se esse padrão se tornar amplamente adotado na indústria, ele poderia viabilizar comercialmente outros possíveis usos de Wi-Fi Sensing identificados pelo grupo que estuda a tecnologia, como, por exemplo, a reidentificação de rostos ou corpos, identificação de motoristas sonolentos, construção de mapas 3D de objetos em salas ou detecção de intensidade de espirros (esse estudo foi feito em 2020, durante a época da pandemia de Covid-19).
Há uma área na qual o IEEE não está trabalhando, pelo menos não diretamente: privacidade e segurança. De acordo com Oscar Au, vice-presidente da Origin Wireles e membro do IEEE e do grupo de estudo e aplicação de Wi-Fi Sensing, por enquanto o objetivo é se concentrar em “pelo menos garantir que as medições de detecção estejam funcionando adequadamente”. Ele diz que o comitê discutiu privacidade e segurança: “Alguns indivíduos, incluindo eu mesmo, trouxeram questões que nos preocupavam”. Mas eles decidiram que, embora essas apreensões precisem ser abordadas, elas não estão dentro do escopo do comitê.
Quando os sinais de Wi-Fi são usados para enviar dados, as informações enviadas e recebidas pelas ondas eletromagnéticas podem ser criptografadas para não serem interceptadas por hackers. Mas as ondas simplesmente existem. Isto quer dizer que suas características físicas não podem ser criptografadas da mesma forma.
“Mesmo se seus dados estiverem criptografados”, diz Patwari, “alguém sentado do lado de fora de sua casa poderia obter informações sobre em que cômodo as pessoas estão, ou talvez até mesmo quem está caminhando dentro dela”. Com tempo, habilidade e o equipamento certo, esse mesmo alguém poderia espiar as teclas digitadas em seus aparelhos, ler seus lábios ou captar ondas sonoras. Além disso, com uma IA suficientemente avançada, eles poderiam ser capazes de interpretar essas informações. “O que estou dizendo é,” esclarece Patwari, “a tecnologia atual mais eficaz de se obter esses dados seria olhar para dentro da janela das casas, não é?”.
Onde quer que haja Wi-Fi, as barreiras de proteção físicas se tornam menos eficazes na proteção da privacidade das pessoas. Mas, atualmente, apenas pesquisadores e pessoas que podem replicar seus resultados conseguem realizar esse tipo de espionagem. Esse último grupo inclui governos estaduais, confirma Jie Yang. “É provável que essa prática já esteja acontecendo”, diz ele. “Eu não sei se as pessoas realmente estão fazendo isso, mas tenho certeza de que somos capazes de realizar esse tipo de monitoramento”.
Então, mais de uma década após começar a tentar usar sinais de Wi-Fi para revelar informações de localização, Patwari agora está tentando fazer o oposto. Recentemente, ele concluiu um projeto patrocinado pelo Escritório de Pesquisa do Exército dos EUA, que consistia em estratégias para introduzir ruído e falsos positivos nas CSIs para tornar mais difícil a espionagem por meio de dispositivos não autorizados. A União Europeia (UE patrocinou recentemente um projeto chamado CSI-MURDER (ele recebeu esse nome porque encobre, ou “mata”, as CSIs). Existem muitas razões para querer se evitar a espionagem, por exemplo, diz Patwari, o Exército dos EUA pode querer “garantir que uma base militar tenha Wi-Fi, sem que o áudio do que está acontecendo dentro da base seja captado externamente”.
Muitos governos já espionam seus próprios cidadãos, incluindo os Estados Unidos e a China, ambos líderes de pesquisa em Wi-Fi Sensing. E isso também é um risco. Embora os dados mais sensíveis de monitoramento por Wi-Fi sejam frequentemente armazenados localmente, as agências de informações poderiam monitorar esses dados pessoalmente de forma fácil, com ou sem mandado, ou intimação. Eles também poderiam acessar quaisquer relatórios enviados para serviços de armazenamento em nuvem. Para muitos americanos, no entanto, o maior risco de privacidade pode vir de pessoas comuns, e não de espiões do governo. Gillmor observa que as ferramentas já disponíveis no mercado para detectar presença humana podem representar mais um desafio para as pessoas que enfrentam violência doméstica. “Fico muito feliz de saber que um assediador teria que seguir os termos de serviço da Verizon, mas ainda tenho minhas dúvidas”, ele acrescenta.
Palak Shah, que lidera o laboratório de inovação social da National Domestic Workers Alliance, diz que consegue ver vantagens no Wi-Fi Sensing. “A falta de pagamento de salários é um problema muito comum em nossa indústria”, diz ela. Uma ferramenta que ajude babás, faxineiros ou cuidadores a provar que estavam na casa em que trabalham poderia ajudar a garantir o pagamento de forma correta. Mas, de acordo com ela, “geralmente, as coisas acabam sendo usadas contra o trabalhador, mesmo que haja um potencial de serem usadas a favor deles”, e “essa dinâmica de poder inerente é realmente difícil de alterar”.
A National Domestic Workers Alliance ajudou a aprovar leis em diversos estados que proíbem o “monitoramento ou gravação” em banheiros. No entanto, o Wi-Fi Sensing muitas vezes é divulgado como “algo que protege a privacidade” porque não expõe diretamente os corpos nus das pessoas que são monitoradas. Mas, Gillmor diz, “só porque é um modo de detecção que não é natural dos seres humanos, não significa que não possa ser invasivo”.
Por outro lado, o Wi-Fi Sensing é mais preocupante do que as câmeras, porque pode ser completamente invisível. Você pode encontrar uma câmera de babá eletrônica se souber o que procurar. Mas, se você não é a pessoa responsável pelo roteador, não há como saber se as lâmpadas automatizadas de alguém estão te monitorando (a menos que o proprietário escolha dizer a você). Este é um problema que poderia ser resolvido até certo ponto com leis obrigando o aviso legal de que o monitoramento estava sendo feito, ou com soluções técnicas mais avançadas. Porém, elas ainda não existem.
Perguntei a Liu que conselho ele daria aos legisladores que lidam com essas novas preocupações. Ele me disse que um senador já fez essa pergunta. “Esta é uma tecnologia que pode ajudar a mudar o mundo e melhorar a vida de muitos. Cuidados com idosos, segurança, gerenciamento de energia. Tudo”, diz ele. “No entanto, nós, como sociedade, precisamos traçar um limite. Seja ele qual for, e não é meu trabalho decidir isso, ele vai ser a linha que não cruzamos”.
Meg Duff é uma repórter do Brooklyn, Nova York (EUA). Ela cobre as áreas de ciência, tecnologia e mudanças climáticas.