Uma batalha está sendo travada contra a Covid longa em crianças
HealthHealth Innovation por Einstein

Uma batalha está sendo travada contra a Covid longa em crianças

Enquanto possivelmente milhões de crianças sofrem desta doença misteriosa, pesquisadores ainda debatem o tamanho desse problema.

Correção: Esta história foi atualizada para esclarecer o alcance das estimativas da prevalência da Covid longa em crianças. 

Antes de Jasmin ter Covid-19 no ano passado, ela era uma criança de 10 anos consideravelmente ativa, que adorava dançar, nadar e fazer aulas de ginástica. “Estava sempre de cabeça para baixo, fazendo bananeiras”, afirma sua mãe, Binita Kane. Embora a menina tenha tido apenas um caso leve do vírus, ela apresentou sintomas persistentes e debilitantes que a mantiveram em casa. Jasmin, agora com 11 anos, teve que abandonar todas as suas atividades. Hoje, ela faz uso de cadeira de rodas.  

Jasmin é uma criança, em meio a tantas outras, cujo número desconhecemos, acometida pela Covid longa. Ela regularmente apresenta febre, dor de garganta, fraqueza e dor nos membros, tontura e exaustão, embora os sintomas da Covid-19 em crianças variem muito. Não se sabe quantas crianças são afetadas, quais sintomas vieram de infecções e quais podem ter resultado indiretamente da pandemia. Os cientistas nem conseguem concordar sobre o que significa para as crianças ter Covid longa. 

Clínicos e epidemiologistas estão em desacordo sobre esse assunto: algo que não se restringe a uma mera discordância acadêmica. Essa falta de compreensão significa que, potencialmente, milhões de crianças doentes não estão recebendo os tratamentos de que precisam. “Houve uma falta real de apoio, compreensão, pesquisa e tratamento para crianças”, diz Kane, que é consultora de pneumologia na Manchester University NHS Foundation Trust, no Reino Unido.   

Dimensionando o problema 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define Covid longa em adultos como uma condição que ocorre geralmente três meses após uma infecção confirmada ou provável por SARS-CoV-2, com sintomas que duram pelo menos dois meses e que não podem ser explicados de outra forma. Os sintomas geralmente incluem fadiga, confusão mental e falta de ar.  

A existência dessa definição implica que a Covid longa pode ser diagnosticada. Tal condição foi reconhecida como uma deficiência potencial sob a Lei dos Americanos com Deficiência (ADA, em inglês) em julho de 2021, o que deve oferecer proteção aos indivíduos afetados pela Covid longa contra a discriminação. Até agora, contudo, não há uma definição consensual para a Covid longa em crianças.   

Uma das discussões mais acaloradas entre médicos e cientistas é sobre o quão determinante é a Covid longa em crianças. As estimativas de prevalência podem oscilar entre 1,8% e 67%, dependendo da dimensão do estudo, de quais crianças são incluídas e de como os sintomas foram medidos. Por esse motivo, alguns pesquisadores alertam os pais para protegerem seus filhos de uma síndrome complexa que pode afetá-los pelo resto de suas vidas, enquanto outros profissionais dizem que os riscos não são tão graves assim.   

A falta de estudos amplos e rigorosos em nada contribui para o debate.“Alguns artigos são tão ruins”, diz Sonia Villapol, do Houston Methodist Research Institute, no Texas (EUA), que, junto com seus colegas, tentou estimar a prevalência da Covid longa em crianças por meio de análise de todos os estudos publicados até agora. 

Muitas crianças não foram testadas para SARS-CoV-2, o vírus por trás da Covid-19, seja porque são assintomáticas, seja porque apresentam sintomas leves, diz ela. Outras crianças podem ter sido infectadas com SARS-CoV-2 sem desenvolver Covid-19. A análise da equipe de Villapol sugere que cerca de 25% das crianças que contraem o vírus terão pelo menos um sintoma após quatro semanas da infecção.  

Terence Stephenson, do Instituto de Saúde Infantil da UCL Great Ormond Street, em Londres, no Reino Unido, está envolvido em um dos esforços de pesquisa mais conceituados sobre a Covid longa em crianças. A equipe está acompanhando os resultados de milhares de adolescentes de 11 a 17 anos na Inglaterra que testaram positivo ou negativo para SARS-CoV-2. O último trabalho publicado da equipe informou haver pouca diferença na prevalência de quaisquer sintomas duradouros entre crianças que testaram positivo versus crianças que testaram negativo: dois terços para positivo versus pouco mais da metade para negativo. Ambos os grupos apresentaram sintomas semelhantes; dores de cabeça e cansaço eram especialmente comuns.  

O que isso nos diz? Depende para quem você perguntar. O coautor do estudo, Shamez Ladhani, pediatra e epidemiologista da Public Health England, diz que as descobertas deveriam tranquilizar os pais, pois ficou comprovada a improbabilidade de a Covid-19 afetar as crianças.  

Ladhani também aponta para dados coletados de aplicativos para smartphones. A empresa de ciências da saúde ZOE, em parceria com a King’s College London Reino Unido), lançou um aplicativo de estudo de sintomas de Covid-19 que coleta diariamente atualizações de sintomas de centenas de milhares de colaboradores. Com esses relatórios de 1.734 crianças, muitos pais descobriram que apenas 4% das crianças infectadas ainda apresentavam sintomas 28 dias após o início da doença.   

As crianças tendem a melhorar com o tempo, diz Emma Duncan, endocrinologista do King’s College London, coautora do estudo ZOE. Pouco menos de 2% das crianças ainda apresentavam sintomas 56 dias após o início da doença.   

Uma vez que as crianças que tiveram infecções assintomáticas e que não teriam feito nenhum teste também são levadas em consideração, a porcentagem de crianças infectadas que desenvolvem a Covid longa acaba sendo significativamente menor que 2%, diz Duncan.  

“Síndrome da pandemia longa”  

 Uma pergunta ainda sem resposta é o porquê de tantas crianças que testaram negativo para Covid-19 apresentarem sintomas duradouros semelhantes aos da doença. Alguns desses sintomas podem estar relacionados a outras doenças, mas muitos podem ser resultado de se viver em uma pandemia, diz Duncan.  

Tendências semelhantes estão surgindo nos dados coletados nos EUA. Chris Forrest é pediatra do Hospital Infantil da Filadélfia (EUA) e investigador chefe do PEDSnet, uma rede de serviços de saúde infantil que está pesquisando a Covid longa em crianças. Forrest e seus colegas estão prestes a publicar os resultados de uma pesquisa com cerca de 660.000 crianças nos EUA que foram submetidas a testes de PCR para SARS-CoV-2.   

Em um trabalho não publicado, eles examinaram 500 resultados diferentes para crianças que contraíram o vírus contra aquelas que não contraíram. Os sintomas comuns pós-infecção incluem alterações no olfato e paladar, perda de cabelo e dor no peito. A fadiga era quase tão comum nas crianças que não tiveram covid quanto nas que tiveram, diz Forrest.  

“A questão é que a pandemia tem sido cruel para as crianças”, diz Duncan. “Com disrupções escolares, familiares e educacionais, o cenário tem sido cruel para todas as crianças, independentemente de terem contraído SARS-CoV-2 ou Covid-19”. Esse fenômeno foi descrito como “Síndrome da pandemia longa”, diz Villapol.   

Os pediatras descrevem um aumento significativo no número de crianças encaminhadas para serviços de saúde mental. Os médicos estão atendendo mais crianças com distúrbios alimentares e tiques. Têm-se também um agravamento dos sintomas de depressão e ansiedade. Muito poucos estudos analisaram o impacto de mudanças sociais como o fechamento de escolas, diz Forrest.  

Como muitas pessoas experimentam dores de cabeça e cansaço — os sintomas mais comuns identificados no estudo da ZOE —, é difícil tirar conclusões sobre a Covid longa, afirma Deepti Gurdasani, epidemiologista clínico e geneticista estatístico da Queen Mary University of London, no Reino Unido. “Estatisticamente, você não encontrará um sinal, porque ele foi massivamente diluído”, diz Gurdasani.  

Com base nos dados, Gurdasani acredita que a Covid longa afete algo entre 10% e 20% das crianças que contraem o vírus, o que inclui aquelas que não desenvolvem sintomas de Covid-19. Stephenson acha que o número é de cerca de 7%.  

“A questão é que a pandemia tem sido cruel para as crianças”
Emma Duncan no King’s College London 

O pediatra de Londres Michael Absoud diz que o número não pode chegar a 7%, porque ele simplesmente não tratou um número significativo de crianças com suspeita de Covid-19. “Montamos clínicas pós-covid em Londres, que cobrem uma grande, grande área”, diz ele. “Atendemos 90 [crianças] desde o início de julho. Esse é um número pequeno”.   

Mas muitas crianças podem não chegar a uma das clínicas especializadas em Covid longa, diz Sammie Mcfarland, fundadora do grupo da campanha sem fins lucrativos Long Covid Kids. Tanto Mcfarland quanto sua filha de 16 anos têm Covid longa há muito tempo. Segundo os médicos, os sintomas de sua filha são meros “frutos da imaginação”, diz ela. 

Tendo conversado com os pais de outras crianças com Covid, Mcfarland afirma que a experiência da filha “está longe de ser exceção”. Os médicos de triagem não concordam sobre a duração da covid em crianças, e alguns nem acreditam que seja uma síndrome. Outros podem enviar crianças para exames de sangue básicos e de imagens menos complexos e dar alta. “Todo mundo tem uma opinião diferente”, diz Mcfarland.  

Uma síndrome “disforme”  

Parte do que dificulta a definição de um quadro de Covid longa é que ela parece assumir muitas formas. Uma infecção aguda por Covid-19 raramente é fatal para crianças, embora um número significativo de crianças tenha morrido — mais de 1.000 somente nos EUA. Um pequeno número de crianças pode, contudo, desenvolver uma condição muito perigosa, na qual seus órgãos inflamam, conhecida como síndrome inflamatória multissistêmica em crianças (MIS-C) ou síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), que pode resultar em danos duradouros nos órgãos se não tratada. Em 28 de março, o CDC relatou 7.880 casos de MIS-C nos EUA, que até agora resultaram em 66 mortes. Há desacordos, todavia, sobre se o MIS-C se abriga ou não debaixo do guarda-chuva da Covid longa.  

As crianças desenvolvem muitas outras síndromes difíceis de definir após terem Covid-19. A fadiga é comum. Algumas crianças podem ter tosse ou dor de garganta por meses. Outras, levam meses para recuperar o paladar e o olfato. Algumas estão fracas demais para frequentar a escola ou têm sinais de sequelas cardíacas, outras sofrem convulsões e desmaios. Os sintomas podem desaparecer temporariamente antes de haver recaídas. Algumas crianças têm um único sintoma duradouro, enquanto muitas outras experimentam uma enormidade de queixas.  

Os sintomas também variam em gravidade, e essas diferenças podem ser negligenciadas em estudos que comparam crianças que contraíram ou não o SARS-CoV-2. Um questionário que pergunte às crianças se elas tiveram dor de cabeça pode não diferenciar uma dor de cabeça leve de uma experiência grave que deixa a criança incapacitada de abrir os olhos ou sair da cama.  

Na verdade, a Covid longa provavelmente abrange várias condições diferentes. “Não é um diagnóstico, não é uma doença. Não sabemos o que é”, diz Forrest. “É disforme”. Stephenson e Mcfarland se reuniram com representantes da OMS para discutir uma possível definição da Covid longa em crianças, mas nenhuma foi estabelecida até o momento. A OMS diz que são necessários mais estudos e pesquisas.  

Embora os progressos na busca por uma definição clínica estejam suspensos, houve, ao menos, um certo consenso sobre a maneira de definir a Covid longa em crianças para fins de pesquisa.  

Em fevereiro, Stephenson e seus colegas publicaram uma definição da Covid longa em crianças para ser usada em pesquisas na qual afirmam que os sintomas devem seguir um caso confirmado de Covid-19, devem impactar a vida e o bem-estar físico, mental ou social da criança, e devem persistir por pelo menos 12 semanas. Stephenson espera que a OMS alinhe sua definição com essa, mas, enquanto isso, a descrição deve pelo menos fazer com que os pesquisadores estudem o mesmo quadro, diz ele.  

O valor da vacinação 

A única maneira de prevenir a Covid longa é evitar contrair SARS-CoV-2, e é por isso que muitos médicos e cientistas incentivam as pessoas a se vacinarem. Não está claro quanta proteção as vacinas podem oferecer contra a Covid-19, mas alguns estudos recentes sugerem que a vacinação pode reduzir o risco de uma criança desenvolver a doença grave da variante Ômicron em dois terços.  

Pensa-se que a Covid longa decorre com mais frequência de infecções mais graves, mas também pode decorrer de casos leves ou até assintomáticos. “Esse parece ser o caso em crianças, o que eu acho único e perturbador”, diz Yvonne Maldonado, pediatra de doenças infecciosas da Universidade de Stanford (EUA) e presidente do Comitê de Doenças Infecciosas da Academia Americana de Pediatria. 

Como as vacinas podem reduzir a gravidade dos casos e a transmissão, elas são recomendadas para todas as crianças com idade superior a 5 anos nos EUA. Em 30 de março, 58% dos jovens de 12 a 17 anos haviam recebido as duas doses de uma vacina contra a Covid-19, de acordo com dados do CDC publicados pela Academia Americana de Pediatria. Apenas 27% das crianças de 5 a 11 anos, por sua vez, haviam recebido.  

No Reino Unido, as vacinas contra a Covid-19 para crianças pequenas estão no cerne de um outro debate. O Comitê Conjunto de Vacinação e Imunização do Reino Unido (JCVI, na sigla em inglês), que assessora o governo, anunciou em março um plano para oferecer a todas as crianças de 5 a 11 anos uma vacina contra a Covid-19, embora de forma “não urgente”. 

“Acho que a JCVI sempre teve razão”, diz Absoud. “Agora eles o propuseram como uma opção para as famílias”.  

É um montão de crianças
Binita Kane na Manchester University NHS Foundation Trust 

Existem outras maneiras de reduzir a transmissão entre as crianças. Os especialistas consultados enfatizaram a importância de manter as escolas abertas e disseram que medidas como melhorar a ventilação e a qualidade do ar, e a utilização de máscara, pelo menos entre os cuidadores adultos durante surtos de transmissão, podem ajudar a manter baixo o número de casos e ajudar a prevenir tanto a Covid longa quanto a “Síndrome da pandemia longa”. Tais medidas são as únicas opções para proteger crianças menores de 5 anos.  

Todas as crianças que são significativamente afetadas pelo SARS-CoV-2, direta ou indiretamente, precisarão de apoio para se recuperar, portanto, os argumentos sobre a prevalência de Covid longa em crianças não devem ser o foco da questão. “Seja Covid longa, seja ‘Síndrome da pandemia longa’, tudo precisa ser tratado”, diz Villapol.  

Mesmo que apenas 1% das crianças desenvolvam Covid-19 após uma infecção, o número total de crianças afetadas chegará aos milhões, considerando quantas crianças já contraíram o vírus. A orientação do JCVI sobre imunização de crianças sugere que 85% das crianças de 5 a 11 anos foram infectadas com o vírus até o final de janeiro de 2022 no Reino Unido, antes de serem elegíveis para a vacinação. “É um montão de crianças”, diz Kane.   

Hoje, a filha de Kane, Jasmin, está melhor. Um novo tratamento parece ter ajudado e, embora não tenha recuperado completamente sua disposição, ela está “significativamente melhor”, diz Kane.   

O problema é que, enquanto os pesquisadores debatem a prevalência, perde-se o foco nas causas biológicas e dos tratamentos potenciais, o que significa que muitas outras crianças sofrem e irão sofrer, diz ela.  

“Não podemos esperar tanto tempo”, diz Kane. “Precisamos seguir em frente”. 

Cenário brasileiro  

O Brasil acompanha a tendência internacional quanto às dúvidas relacionadas à prevalência e ao diagnóstico da Covid longa em crianças.  

Em um comentário feito a pedido da MIT Technology Review Brasil, o pediatra, imunologista e vice-presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, Victor Nudelman, avalia que a falta de parâmetros consolidados para diagnosticar a doença nesse contexto é, de fato, um complicador.  

“Falar de uma condição clínica que envolve sintomas físicos e mentais sem um marcador laboratorial especifico para seu diagnóstico, e com sintomas que podem confundir com os efeitos na saúde mental das crianças por causa de uma pandemia prolongada — agora bem colocada também como um conjunto de sinais e sintomas, ou seja, uma síndrome , é um grande desafio”, afirma. 

Portanto, enquanto não se chega a um consenso, o especialista recomenda que medidas de prevenção, como a vacinação contra a Covid e a adoção de medidas físicas para evitar o contágio, devem continuar sendo recomendadas no ambiente escolar. 

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