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Jornada é a marcha ou percurso que se faz em um dia, de acordo com o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. (1) Mas, para quem vive com uma doença rara, a palavra passa a ter um significado muito mais impactante – e pode se estender por anos, ou até mesmo por toda a vida. (2)
A jornada das pessoas com doenças raras apresenta inúmeras necessidades médicas não atendidas. Muitos profissionais desconhecem essas condições, o que dificulta o diagnóstico e o tratamento, e mais de 70% dos médicos generalistas relatam desafios para identificar ou lidar com essas doenças. O tempo médio para o diagnóstico é de cinco anos, e metade dos pacientes recebe pelo menos um diagnóstico incorreto. (2) Somam-se a isso as dificuldades de disponibilização de equipes multidisciplinares e o acesso a tratamentos medicamentosos, quando disponíveis. (3)
Já foram identificadas de 6 mil a 8 mil tipos diferentes de doenças raras. Entre elas, está uma patologia neurodegenerativa e progressiva, de origem genética autossômica dominante, que se manifesta entre 30 e 50 anos de idade e progride para um grave declínio funcional e demência, com distúrbios do movimento, e que acaba resultando em morte. (4) Na doença de Huntington, a jornada é particularmente árdua para pacientes e cuidadores: estima-se que, para cada indivíduo com a condição, outras 20 pessoas sejam afetadas de forma direta ou indireta com suas consequências. (5)
Jornadas reais
Lucas, 32 anos, músico, paranaense. Andrea, 49 anos, manicure, mineira. Apesar de trajetórias distintas, são duas vidas que se cruzam diante de um novo desafio: a descoberta de uma doença rara em comum.
A decisão de ir para os Estados Unidos tentar viver como músico surpreendeu a mãe Hilda de Almeida, mas ela apoiou o sonho do filho adotivo. Pouco tempo depois, no entanto, as circunstâncias mudaram. Durante a pandemia de Covid-19, Hilda começou a notar alguns sinais estranhos no comportamento de Lucas. Sempre que se comunicavam, o jovem parecia um pouco aéreo. A família suspeitou de um quadro depressivo devido à situação atípica, longe do país de origem e da família. A proposta foi que ele voltasse para casa e Lucas aceitou.
“Quando ele chegou, não era o meu filho. Ele estava completamente diferente, não conversava e estava mancando. Foi um baque, mas eu achava que não era nada grave, que ele estava em depressão. Levei ao médico e um exame já indicou a suspeita da doença de Huntington. O teste genético confirmou. Eu nunca tinha ouvido falar e nunca tinha visto ninguém com essa doença”, conta Hilda.
Já aposentada, aos 65 anos, a mãe revela que precisou lidar com ansiedade no início da jornada em busca de tratamento. Hoje, Lucas ainda depende de ajuda, mas apresentou grande melhora nos distúrbios do movimento (característico da doença), após tratamento multidisciplinar e medicamentoso.
“Ele recuperou 70% do movimento. E a disfagia [dificuldade de engolir] era um problema também. Hoje ele dá risada, acorda de manhã, me dá bom dia rindo! Mas não foi fácil. Pelo SUS [Sistema Único de Saúde], nós esperamos um ano na fila para conseguir um neurologista, e depois de um ano ele conseguiu fazer fisioterapia e fonoaudiologia.”, relembra Hilda.
É justamente na dificuldade do tratamento que se assemelham as jornadas de Lucas e Andrea.
Como já havia casos de Huntington na família de Andrea, o processo do diagnóstico foi encurtado e não chegou a ser uma surpresa, conta a filha Juliane Fernandes. “Eu tinha muito medo e qualquer mexida me fazia pensar: será que é? Eu sempre perguntava: ‘Mãe, você mexeu. Você sentiu que mexeu?’. Ao final de 2017, os sinais começaram a ficar mais evidentes, e ela levou o primeiro tombo. Fomos atrás do médico e já alertamos que tínhamos casos de Huntington na família. Então, fizemos o exame apenas para confirmar”, relembra Juliane.
Andrea, hoje com 49 anos, depende dos filhos na rotina diária. Juliane, a mais velha, parou de trabalhar para cuidar da mãe. No período noturno, os irmãos mais novos ajudam. Tratamentos, tanto medicamentosos como não medicamentosos, são um desafio.
“A gente tem muita dificuldade para ter acesso. Por exemplo, a fisioterapia é em um hospital distante, custa caro e tem que se deslocar até lá. Fonoaudiólogo, a mesma coisa. Alimentação tem que ser diferenciada, e tudo isso tem custo para mim, que tive que parar de trabalhar, e para os meus irmãos, que têm que ajudar. Muitas pessoas enfrentam essa mesma realidade”, reflete a cuidadora.
A doença de Huntington, assim como outras doenças raras, submete pacientes e familiares a uma jornada extremamente complexa, passando pelo primeiro gargalo da dificuldade diagnóstica. E, ainda que a primeira etapa seja contornada, a dificuldade de acesso ao tratamento multidisciplinar para o paciente e de apoio psicológico para a família se torna uma barreira importante.
A geografia das trajetórias desiguais
Um estudo conduzido nos Estados Unidos analisou pacientes com doença de Huntington para entender sua proximidade geográfica aos Centros de Excelência da Huntington’s Disease Society of America (HDSA COEs), polos importantes de tratamento e pesquisa. Apenas 57,1% dos pacientes viviam a até 160 km de um centro especializado. A principal conclusão do estudo foi que a limitação no acesso aos centros não está ligada a fatores sociodemográficos, como idade, sexo, raça ou condição socioeconômica, mas sim à localização geográfica dos pacientes, indicando que, para melhorar o acesso ao cuidado especializado na doença de Huntington, é necessário considerar estratégias de expansão geográfica e descentralização dos serviços oferecidos. (6)
A neurologista Débora Maia, especialista em distúrbios do movimento no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), analisa que, infelizmente, a localização geográfica é determinante para o tipo de jornada do paciente.
O centro onde a médica atua é referenciado pelo Ministério da Saúde em doenças raras. Atualmente, no Brasil, há 36 centros especializados cadastrados com base na Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (Portaria 199/2019), a maioria na região Sudeste, segundo dados do próprio ministério. (7)
“Há pessoas que vêm como cuidadoras de filhos ou de irmãos, percebem algum sintoma e pedem para ser acompanhadas. Nesse caso, a entrada no ambulatório é direta. Há pacientes que sabem ter histórico familiar e que desejam iniciar um acompanhamento, mesmo sem sintomas. Eles têm a possibilidade de serem encaminhados para o nosso ambulatório e podem ser avaliados”, conta.
“Mas, quando olhamos para o interior, fica muito mais difícil porque não se reconhece a doença. Há uma peregrinação por várias especialidades. Às vezes, o paciente, especialmente quando não tem caso diagnosticado na família, fica vagando entre clínico geral, psiquiatra, geriatra e neurologista até chegar a um diagnóstico, o que pode levar anos”, pondera a médica.
Esta realidade, segundo a especialista, é explicada por dois fatores principais: a falta de conhecimento da doença entre as equipes da atenção primária, que geralmente recebem esses pacientes, e até mesmo entre os neurologistas; e a distribuição desigual dos especialistas. Enquanto o Sudeste concentra um determinado número de neurologistas, outras regiões do país sofrem com a falta de especialistas.
“Um neurologista geral, que não é especialista, vai ver um ou dois casos de doença de Huntington ao longo da carreira. Eu tenho pacientes que ficaram internados em hospitais psiquiátricos durante muito tempo até serem reconhecidos como pacientes com Huntington. O principal ponto é o desconhecimento”, afirma Débora.
“Muitas vezes me pergunto o porquê dos familiares trazerem um paciente em fase avançada da doença, muitas vezes acamado, em viagens de 10 a 12 horas, para uma consulta onde ofereceremos suporte clínico e emocional, mas sem intervenção neurológica específica. Mas descobri que é o conforto do olhar de quem conhece a doença. Há 25 anos estou nessa jornada, e muitas vezes eu digo: ‘Não precisa trazê-lo, a gente acompanha o quadro com o clínico aí da sua cidade.’ E ele me diz: ‘Mas o clínico não conhece a doença como a senhora conhece, doutora.’ Então, eu vejo que esse conhecimento conforta.”
Nesse cenário, a tecnologia encurta muitas distâncias e tem potencial de conexão ao colocar à disposição, em locais afastados, médicos especialistas via teleconsultas, além de proporcionar capacitação para equipes por meio de webinars, cursos e eventos. “Eu tenho paciente de Rondônia, do interior do Amazonas. Fazemos consultas e tenho contato com o neurologista de lá. Isso é uma possibilidade pela qual batalhamos muito, desde a teleconsulta até a divulgação em rede social. A população pode conhecer, procurar, jogar no Google e chegar ao médico dizendo: ‘Olha pode ser isso aqui’”, explica.
A neurologista reconhece o diagnóstico como a primeira barreira na jornada das pessoas com Huntington, uma vez que o teste genético que confirma a doença não está disponível de maneira abrangente na rede pública. A dificuldade de acesso à medicação vem logo depois. Como não é possível conter a progressão da doença, cada sintoma é tratado separadamente. O mais característico deles, a coreia, tem terapia direcionada aprovada no Brasil, porém não disponível no SUS. “Quer dizer, é tudo muito difícil”, avalia.
A realidade nos clusters
Segundo definição adotada no Brasil, doenças raras são aquelas que atingem até 65 pessoas a cada 100 mil habitantes. (8) Para a doença de Huntington, dados globais ainda são limitados e variam significativamente, sendo mais comum em pessoas de ascendência europeia (10,6 a 13,7 indivíduos por 100.000). Países asiáticos mostram 1 a 7 casos por milhão de habitantes. As diferenças na prevalência são fortemente associadas à ancestralidade. (9)
Algumas áreas, no entanto, apresentam altíssimos índices locais, como a região de Maracaibo, na Venezuela, onde centenas de casos foram associados a um único ancestral. (9) Esses locais são denominados clusters, pela alta concentração de pacientes com a doença. No Brasil, em Feira Grande, cidade de Alagoas, a prevalência é de 104 por 100 mil pessoas, ficando atrás apenas de Senador Sá, no Ceará, com 233 pacientes por 100 mil habitantes. (10,11) Ervália, Minas Gerais, também é considerada um cluster, com prevalência de 72 por 100 mil habitantes. (10) O reconhecimento como locais de maior prevalência do que a literatura médica pontua levanta discussões e traz visibilidade para o assunto, o que é muito importante para toda doença rara, fazendo o conhecimento circular entre as comunidades e nos serviços de saúde desses municípios.
O estudo que levantou os dados e identificou o cluster da cidade alagoana reuniu diversos profissionais, mas começou com a curiosidade de uma estudante de odontologia, Aparecida Alencar, hoje cirurgiã-dentista e voluntária da Associação Brasil Huntington (ABH).
“Na infância, eu tinha uma amiga, e os avós dela tinham sintomas estranhos. Os tios também tinham movimentos diferentes, e eu cresci com aquela curiosidade. Sempre me disseram que era uma doença chamada ‘nervoso’. Depois, na graduação, com base na disciplina de genética, comecei a refletir sobre esses casos. Já como cirurgiã-dentista da Estratégia da Saúde da Família em Feira Grande, comecei a observar mais casos e passei a fazer heredogramas [representações gráficas da história familiar, com vínculos de parentesco e características genéticas]”, conta Aparecida.
Segundo a pesquisadora, a maior prevalência da cidade é explicada pelo alto número de casamentos entre núcleos familiares, aliado ao fato de que, há alguns anos, um mesmo casal tinha vários filhos. Tudo isso potencializou a doença, que é hereditária. Após a conclusão da pesquisa e a confirmação dos casos, Aparecida relata que a cidade ganhou muito com a disseminação de informação sobre a doença de Huntington.
“A ABH veio até aqui e esse foi o primeiro momento em que tivemos uma devolutiva para a comunidade. Conseguimos informar as pessoas sobre o que se tratava, porque ocorria e o que havia de tratamento. Houve uma grande surpresa, porque primeiro não se sabia que existiam outras pessoas no país com a mesma condição. A questão do risco das pessoas da mesma família se casarem também foi muito importante”, relata.
Nesse novo cenário, foi possível capacitar equipes da atenção básica para acelerar o primeiro passo da jornada do paciente, que é o diagnóstico. No entanto, Aparecida reforça que esse resultado é uma exceção no país. Por isso, um levantamento liderado pela ABH tem o objetivo de traçar um panorama da doença de Huntington no Brasil. Serão aplicados três questionários: para o paciente, para o familiar em risco e para o cuidador. (12)
“Isso vai nos dar o primeiro perfil sociodemográfico da doença. O país deve ter em torno de 19 mil a 21 mil pacientes com Huntington. Nosso trabalho deve abarcar uma amostra significativa, para que possa ajudar a trazer informações relevantes”, comenta Aparecida, que é a pesquisadora responsável pelo mapeamento.
A previsão é de que os dados sejam publicados em setembro de 2025. A expectativa é que o levantamento contribua para uma compreensão mais ampla da doença e de seus impactos socioeconômicos, servindo como base para a formulação de políticas públicas.
Todo o movimento nacional de levantamento de dados, disseminação de informações e aplicação de tecnologia para encurtar distâncias traz esperança no cenário da doença de Huntington. “A visibilidade que a doença está começando a ter agora me deixa esperançosa. Esse movimento, de compartilhar conhecimento, divulgar tratamento e expor as dificuldades dos pacientes, é muito positivo. A partir disso, os pacientes se unem e se fortalecem, paralelamente ao aparecimento de novas drogas, de novas possibilidades terapêuticas”, conclui a neurologista Débora Maia.
Referências
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Tribuna Hoje. Ciência: pesquisas mostram prevalência de doenças raras em Alagoas. Disponível em: https://tribunahoje.com/especial/2023/11/01/17-ciencia-pesquisas-mostram-prevalencia-de-doencas-raras-em-alagoas. Acesso em: 27/03/2025.
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