Tecnologia muda a história de pessoas com AME em meio a desafios burocráticos
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Tecnologia muda a história de pessoas com AME em meio a desafios burocráticos

Doença afeta as células nervosas da medula espinhal responsáveis por controlar os músculos e outras células presentes no corpo humano. Diagnóstico precoce é decisivo para os resultados do tratamento multidisciplinar.

O acesso a tecnologias é decisivo para determinar a história de pessoas que vivem com atrofia muscular espinhal (AME), uma doença genética rara, progressiva e sem cura que afeta os neurônios motores. Receber o diagnóstico com agilidade e iniciar o cuidado multidisciplinar o quanto antes interfere diretamente em como serão executadas funções vitais básicas, como andar, engolir e até mesmo respirar.  

De intensa complexidade, a doença afeta as células nervosas da medula espinhal responsáveis por controlar os músculos e outras células presentes no corpo humano. A estimativa da doença no Brasil é de que 1 a cada 10 mil bebês nascidos vivos tenha manifestação da doença. Calcula-se que haja mais de 1.452 pessoas diagnosticadas no país, segundo levantamento do Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal (Iname) (2).  

Por ser uma doença genética, a AME se manifesta da seguinte forma: a partir da alteração de um gene chamado SMN1, a produção de uma proteína imprescindível para a sobrevivência do neurônio motor passa a depender do gene SMN2, que funciona como um auxiliar para a produção da proteína (3). Por esse motivo, os músculos vão perdendo força, afetando não apenas a locomoção, mas também as funções básicas. 

Há cinco tipos de AME, definidos de acordo com a idade de início dos sintomas e o maior marco motor alcançado: 

Ame tipo 0: os sintomas aparecem ainda durante a gestação, como a baixa movimentação fetal. Os bebês já nascem com fraqueza muscular e insuficiência respiratória grave. Em geral, esses bebês possuem apenas uma cópia do gene SMN2. 

AME Tipo 1: costuma apresentar início de sintomas entre 0 e 6 meses de vida. O bebê não é capaz de sentar-se de forma independente. Corresponde a cerca de 60% dos casos incidentes de AME.  

AME Tipo 2: os sintomas costumam aparecer entre 6 meses e 18 meses de vida. A criança não anda e costuma apresentar problemas respiratórios. 

AME Tipo 3: os sintomas aparecem entre 18 meses de vida e a adolescência. A criança consegue manter-se em pé e caminhar de forma independente, mas pode perder essa capacidade com o tempo. 

AME Tipo 4: costuma ser diagnosticada na idade adulta. Tipo raro com lenta progressão da fraqueza muscular, não leva a perda da capacidade motora. 

Apesar de a AME ter sido identificada entre os séculos 19 e 20 (5), grande parte das descobertas sobre a doença são datadas dos últimos anos, incluindo tratamentos inovadores. Atualmente, há três opções incorporadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), mas a jornada do paciente ainda esbarra em questões burocráticas no que se refere ao acesso a soluções e diagnóstico.      

O PCDT (Protocolos e Diretrizes do Ministério da Saúde) para atrofia muscular espinhal foi atualizado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) no segundo semestre de 2022, contudo, sua publicação no Diário Oficial da União (DOU) permanece pendente. O documento visa a garantir as melhores práticas para o diagnóstico, tratamento e monitoramento dos pacientes no âmbito do SUS e traz recomendações de condutas clínicas, medicamentos, produtos e procedimentos nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde.                       

Diagnóstico precoce 

Além da disponibilidade de tecnologias recomendadas para o tratamento dos principais subtipos da doença, avanços na etapa de diagnóstico também são fundamentais para aprimorar a jornada no paciente com AME. A professora de Neuropediatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Alexandra Prufer chama a atenção para a necessidade de haver uma detecção mais ágil da doença. “O diagnóstico acelerado é importante porque, quanto antes você começar o tratamento para uma doença degenerativa, melhor é o efeito do tratamento que modifica o curso natural do caso”, explica.  

A triagem neonatal, processo de rastreamento da doença em recém-nascidos no período pré-sintomático, é um desafio para os médicos geneticistas — principalmente no Brasil, caracterizado por regiões distintas em termos culturais e econômicos.  

Em agosto de 2022, foi sancionada a Lei 14.154/21, que inclui a AME entre 53 doenças detectáveis no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), pelo Teste do Pezinho, mas apenas na quinta e última etapa da ampliação. As datas ainda serão definidas pelo Ministério da Saúde. 

“A lei para ampliação do programa de triagem neonatal existe, mas a gente ainda não tem o prazo para que os testes possam ser, de fato, incluídos. Temos isso apenas no papel”, afirma a neuropediatra da UFRJ. 

O teste da bochechinha — feito na mucosa da boca de recém-nascidos — é mais simples e mais abrangente para a análise do DNA dos bebês, de acordo com a médica. No entanto, ele ainda não é oferecido pelo SUS.   

Segundo Alexandra, outra possibilidade é fazer o diagnóstico intrauterino do bebê se ele tiver algum irmão ou familiar com AME. “Durante a gestação, os pais ficam muito ansiosos, mas o teste não precisa ser feito nesse momento. O exame da criança logo ao nascer possibilita, em casos positivos, a orientação de tratamento mais precoce”, orienta a neuropediatra. 

O neurologista Edmar Zanoteli, professor do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), reforça a necessidade de conscientização dos médicos para o diagnóstico precoce, não só para o início do tratamento medicamentoso, mas também para que a criança inicie a fisioterapia desde cedo — atividade fundamental para que ela desenvolva as funções motoras e respiratórias prejudicadas pela alteração do gene. 

“A AME tipo 2 é tão grave quanto o AME tipo 1. O tratamento impede a progressão da doença, mantém as funções que a criança já tem, evita os problemas de deglutição e controla a parte respiratória”, avalia. 

A detecção precoce, combinada ao início do tratamento multidisciplinar, promove mais ganhos no tratamento. Crianças com AME diagnosticadas precocemente apresentaram melhores resultados quando comparadas a crianças diagnosticadas depois que os sintomas se desenvolveram, segundo pesquisa publicada este ano na revista The Lancet Child & Adolescent Health (7). 

O estudo foi realizado com 15 recém-nascidos diagnosticados com atrofia muscular espinhal após um resultado positivo de triagem entre 1º de agosto de 2018 e 1º de agosto de 2020 e comparado com bebês e crianças com AME diagnosticados após encaminhamento clínico com sintomas da doença, nos dois anos anteriores ao início do programa. Das 15 crianças que participaram da triagem, nove foram consideradas pré-sintomáticas quando iniciaram o tratamento. 

Dois anos após o diagnóstico, a capacidade de crianças se sentarem, engatinharem, ficarem de pé e andarem foi avaliada por profissionais de saúde. Três das crianças — uma diagnosticada pela triagem e duas pelo início dos sintomas — iniciaram cuidados paliativos durante dois anos. 

Os pesquisadores descobriram que 11 das 14 das crianças diagnosticadas pela triagem estavam andando de forma independente ou com assistência dois anos após o diagnóstico. No entanto, apenas 1 de 16 crianças diagnosticadas após os sintomas iniciais conseguiram andar. As crianças diagnosticadas pela triagem também pontuaram melhor em média em outras medidas de habilidade de movimento e independência em tarefas, mesmo sendo mais jovens do que as que faziam parte do outro grupo. 

Mobilização social  

Em evento realizado pela Roche em março de 2023, a médica geneticista Maria Teresinha de Oliveira Cardoso, coordenadora de Doenças Raras na Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES/DF), destacou que a regionalização do cuidado tem deficiências.  

Por esse motivo, as associações de pacientes, os gestores locais e os gestores estaduais precisam defender as políticas públicas voltadas às pessoas com AME. A convocação é para que todos estejam mobilizados. “Política pública se faz com política. Sem mobilização social, nós não conseguiremos”, declarou.  

Edmar, da FMUSP, concorda com Teresinha e reforça a necessidade de conscientizar a família sobre os próprios direitos das crianças com AME. “A maioria dos pacientes toma os medicamentos por meio do SUS porque eles são de alto custo. Mesmo assim, a doença traz um impacto econômico grande para a família. Alguém acaba deixando de trabalhar, há gastos com transportes, terapias”, pontua. 

Referências bibliográficas 

  1. Bueno KC, Gouvea SP, Genari AB, Funayama CA, Zanette DL, Silva WA, et al. Detection of spinal muscular atrophy carriers in a sample of the Brazilian population. Neuroepidemiology. Neuroepidemiology; 2011;36(2):105–8.
  2. Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal (INAME). Projeto “Quem Somos Nós” [Internet]. INAME; 2022 [cited 2023 Apr 18]. Available from: https://iname.org.br/o-que-fazemos/projeto-quem-somos-nos/
  3. Sociedade Brasileira de Genética Médica, Genômica e Academia Brasileira de Neurologia. Atrofia Muscular Espinhal (AME) – Diagnóstico e Aconselhamento Genético. São Paulo: AMB; 2021. 9 p. 
  4. Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinha (INAME). Tipos de AME [Internet]. INAME; 2022. Available from: https://iname.org.br/tipos-de-ame/
  5. Visser J, de Jong JMBV, de Visser M. The history of progressive muscular atrophy. Neurology. Wolters Kluwer Health, Inc. on behalf of the American Academy of Neurology; 2008 Feb 26;70(9):723–7.
  6. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; [cited 2022 Apr 26]. Available https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/avaliacao-de-tecnologias-em-saude/pcdt-em-elaboracao-1
  7. Nishio H. Newborn screening for spinal muscular atrophy. Lancet Child Adolesc Heal. 2023 Mar;7(3):146–7

M-BR-00011153 

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