Riscos e benefícios da tokenização nos serviços de streaming de música
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Riscos e benefícios da tokenização nos serviços de streaming de música

Não basta a tokenização de ativos, é preciso considerar os mecanismos de incentivo. A Token Economy é essencial.

Já há algum tempo, serviços de streaming de música caíram no gosto das pessoas, ao oferecem acesso a conteúdo protegido por gerenciamento de direitos digitais (DRM) por meio de um aplicativo móvel. Usuários de aplicativos como Spotify, Groove Music, Tidal, Deezer, Napster, YouTube Music, Apple Music, para citar alguns, podem pesquisar músicas, bem como criar e compartilhar listas de reprodução com outros usuários.

Geralmente, tais aplicativos obtêm as licenças dos conteúdos das gravadoras e de outros proprietários para disponibiliza-los para seus próprios usuários. E então, oferecem um modelo “free” (gratuito) que permite aos usuários transmitir conteúdo gratuitamente com publicidade e, como alternativa, disponibilizam um serviço “premium” que cobra uma assinatura mensal para acessar o conteúdo sem anúncios.

Não é novidade que este modelo de streaming de música há muito impactou o mercado da música, e com sucesso. Mas quais seriam os possíveis benefícios se uma empresa considerasse o uso de uma plataforma blockchain?

Streaming de Música em Blockchain. Créditos da Imagem: Tatiana Revoredo

Como um token pode ser usado em uma plataforma de streaming de música? Como o token seria resgatado na plataforma e para qual finalidade? Quais os riscos de se introduzir recompensas dentro de um aplicativo?

Para responder a esta e outros questionamentos, vamos partir de um estudo de caso que já conta com 100 mil artistas e 5 milhões de usuários mensais.

Audius – o “streaming de música descentralizado” 

A Audius é uma plataforma que ocupa um espaço semelhante ao dos populares players de música como Pandora ou Spotify, mas permite que os artistas estabeleçam seus próprios termos. Além disso, ela também possibilita que outros desenvolvedores de software façam uso de seu conteúdo subjacente. O código fonte aberto para uso público está disponível no Github.

No dia 5 de agosto deste ano, a Audius tornou-se um dos maiores aplicativos de consumo em blockchain, ao atingir a grande marca de 5 milhões de pessoas usando sua plataforma para fazer streaming de música. Este grande marco acabou motivando o TikTok a fechar parceria com a Audius no último dia 16 de agosto.

As recentes conquistas, contudo, são resultado das mudanças de estratégia no projeto Audius para preservar seu posicionamento competitivo ao longo dos últimos anos.

No final de outubro de 2020, a plataforma já contava com 800.000 usuários ativos e mais de 150.000 faixas de músicas disponíveis para streaming.

Créditos da Imagem: Tatiana Revoredo

Contudo, devido ao forte e contínuo crescimento de usuários ao longo dos últimos 3 anos, às altas taxas de gás e à lentidão no processamento de transações no blockchain Ethereum, o time da Audius anunciou em junho de 2020 a mudança de parte da plataforma para o blockchain Solana — que atualmente processa 50 mil transações por segundo —, bem como um acordo de incentivo com a equipe Solana que desbloquearia concessões de “tokens SOL” para cada milhão de novos usuários ao longo de um período de 24 meses.

Atualmente, a Audius usa os blockchains Ethereum e Solana. A funcionalidade de implantação e governança permanece no Ethereum, no entanto, as necessidades de maior rendimento exigidas para hospedar, encontrar e transmitir música foram transferidas para o Solana, que oferece taxas de transação extremamente baixas e tempos de bloco de milissegundos. A migração foi programada para acontecer em três fases, terminando no segundo trimestre de 2021.

Ora, além da evidente necessidade de utilizar um blockchain de alto desempenho, como um conjunto crescente de 182 validadores da Solana, para escalar o catálogo de streaming e comportar o crescente número de usuários, um componente crucial para o atual sucesso da plataforma Audius foi o alinhamento de incentivos com a Solana; isto é, a manutenção do design de incentivo (token economy) bem estruturado pelos estrategistas blockchain do projeto.

Não basta a tokenização de ativos; Token Economy é essencial!

Ao introduzir um token em um projeto que pretenda se beneficiar da tecnologia blockchain, é essencial considerar os componentes do “design de incentivo” da plataforma ou aplicativo.

Token Economy. Créditos da imagem: Tatiana Revoredobe

Muito se tem falado do “tokenizing everything” ou “tokenização de todas as coisas. Mas é a estruturação da Token Economy (Economia de Tokens, também chamada de “design de incentivo”) que determina o sucesso ou insucesso de qualquer projeto blockchain.

Isto é, antes de partir para a prática e introduzir um token em uma plataforma blockchain é necessário ter bem definido os objetivos da empresa, e quais comportamentos ou ações dos usuários seriam benéficos à plataforma.

O que é Token Economy? Token Economy, design de incentivo, tokenomics, ou ainda, como preferem alguns, cryptoeconomics é um sistema de gerenciamento de contingência baseado no reforço sistemático do comportamento do alvo.

Segundo o MIT Cryptoeconomics Lab da Escola de Gestão do Massachusetts Institute of Technology, “a criptoeconomia reúne os campos da economia e da ciência da computação para estudar os mercados e aplicativos descentralizados que podem ser construídos combinando criptografia com incentivos econômicos”.

Ela se concentra na tomada de decisão individual e na interação estratégica entre diferentes participantes em um ecossistema digital (por exemplo, usuários, fornecedores de recursos-chave, desenvolvedores de aplicativos etc.) e usa metodologias do campo da economia — como teoria dos jogos, design de mecanismo e causalidade inferência — para entender como financiar, projetar, desenvolver, facilitar as operações e incentivar a adoção de marketplaces descentralizados, serviços relacionados e ativos digitais.

Portanto, ao contrário do que possa parecer, criptoeconomia ou token economy não é a aplicação de uma concepção popular de economia (técnicas de previsão de ações e política monetária) aos criptoativos. Suas abordagens combinam criptografia e economia para criar redes peer-to-peer (P2P), descentralizadas e robustas, que prosperam com o tempo. Para evitar confusão, usaremos neste texto a expressão “Token Economy”.

O profissional que desenha a Token Economy em um projeto é o estrategista blockchain que basicamente, estrutura o funcionamento dos tokens dentro de um ecossistema mais amplo, planejando, dentre outras coisas, a distribuição dos tokens na plataforma, como os tokens devem ser usados para incentivar um comportamento positivo na rede para garantir a sustentabilidade e a economia da plataforma.

Como serviços de streaming de música podem se beneficiar da Token Economy? 

Streaming de música em Blockchain. Créditos: Tatiana Revoredo

Imagine que o Spotify migrasse sua atual plataforma centralizada para uma plataforma descentralizada em blockchain, com a introdução de uma “Economia de Tokens”.

Esse “serviço de streaming de música baseado em blockchain” poderia se beneficiar, inclusive financeiramente, ao criar incentivos para que artistas e usuários cultivassem um relacionamento benéfico à plataforma. Isso sem mencionar o fato de que simplificaria o gerenciamento de direitos digitais.

Dentre as atividades que poderiam ser incentivadas através de um design de incentivo via tokens na espécie de “Spotify descentralizado”, o engajamento dos usuários seria, sem dúvida, a que deveria receber maior atenção. Imagine como o estímulo do compartilhamento e a criação de conteúdo, via tokens, poderia enriquecer o aplicativo e aumentar a venda de assinaturas.

Mais especificamente sobre o compartilhamento de músicas pelos usuários, para cada anúncio escutado, o artista e o ouvinte poderiam receber, via tokens, uma porcentagem dos lucros investidos do anunciante. Da mesma forma, os artistas também poderiam receber doações de seus fãs para a gravação e o lançamento do próximo álbum.

Ainda, os melhores desempenhos poderiam receber prêmios em tokens, como uma recompensa pela participação e comportamento positivo e em prol da plataforma.

Os tokens como um incentivo à formação de um novo mercado

Uma token economy (design de incentivo via tokens) bem alinhada aproximaria usuários e artistas, construindo, assim, um novo mercado “descentralizado”.

Mercado Descentralizado. Créditos da imagem: Tatiana Revoredo

Nessa linha, é essencial que os estrategistas blockchain da empresa de streaming, ao planejarem a Token Economy da plataforma, assegurem que tanto usuários quanto produtores de conteúdo sejam estimulados a negociar entre si, utilizando tokens como incentivo, para que todos os participantes da plataforma sejam atuantes, tornando-a economicamente viável e sustentável sem a interferência de uma autoridade controladora.

Com relação a política de regate dos tokens (como ocorreria o resgate de tokens e com qual finalidade), os usuários deste “Spotify descentralizado” apenas estariam aptos a resgatar a recompensa disponibilizada nos tokens, após a verificação por um contrato inteligente de que as ações benéficas para a plataforma foram executadas.

Outro ponto interessante é a possibilidade dos usuários converterem seus tokens em créditos na plataforma e, em seguida, utilizar tais créditos para desbloquear músicas e dar dicas para artistas.

Por sua vez, os pagamentos de royalties também poderiam ser feitos via tokens.

O papel da inteligência artificial num design de incentivo

A fim de evitar o desalinhamento entre os objetivos da plataforma e as ações que podem ser tomadas pelos usuários, a inteligência artificial tem sido utilizada para mapear a participação de cada pessoa na plataforma, com a devida preservação da privacidade e proteção de dados, auxiliando a identificar comportamentos específicos, como o número de acessos pelos usuários de determinado estilo musical. Conquanto isto já seja feito nas plataformas descentralizadas para melhorar a experiência do usuário, numa plataforma descentralizada o recurso poderia ser usado também para evitar o risco desalinhamento do design de incentivo.

Atenção aos riscos ao introduzir tokens em plataformas blockchain

O desalinhamento dos componentes de design de incentivo pode criar uma situação em que a plataforma pode trazer muitas recompensas, mas não tem muitos retornos em termos de comportamento. Como exemplo, podemos mencionar que o compartilhamento de músicas pode não gerar o número esperado de acessos.

Outro risco é a configuração de contratos inteligentes. Embora os contratos inteligentes tenham muito potencial e tenham trazido grande inovação em vários setores, a empresa deve ter muito cuidado na sua utilização. A falta de padrões para tecnologias de contratos inteligentes transfere a maior parte da carga para a empresa, uma vez que expõe seus dados de contrato a riscos potenciais. Como o recente hack que explorou uma vulnerabilidade em um contrato inteligente da Poly Network demonstra como um contrato inteligente mal implementado pode causar sérios prejuízos, afetar a segurança cibernética do projeto blockchain, e até deixar de representar as intenções originais dos signatários.

Possibilidades

A tecnologia blockchain, ao solucionar o gasto duplo, não só possibilitou a tokenização de qualquer tipo de ativo, físico ou nativamente digital, como também impactou profundamente o mundo dos negócios, possibilitando que produtos ou serviços se tornassem mais acessíveis, alcançando inclusive mercados antes inimagináveis.

Para se ter sucesso em mercados de redes como os atuais, seja numa plataforma de serviços de streaming em blockchain ou em qualquer outra economia de plataforma descentralizada, a estratégia de alinhamento da token economy é fundamental, e deve levar em consideração os principais fatores competitivos, os mecanismos de defesa e a sustentabilidade da plataforma.

Bem por isso, a mera tokenização de ativos vai além da simples representação digital de produtos e serviços via tokens.  Para explorar o real potencial transformador dos modelos de negócio em blockchain, o correto e bem estruturado design de incentivo é fundamental.


Este artigo foi produzido por Tatiana Revoredo, membro fundadora da Oxford Blockchain Foundation, representante no European Law Observatory on New Technologies e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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