Dizem os historiadores que os portugueses guardavam seus tesouros em arcas de madeira sólida com quatro fechaduras de ferro, e as quatro chaves ficavam, cada uma, sob custódia de uma pessoa diferente, inclusive o rei.
Com o tempo, essa história foi se transformando em expressão e ganhou mais chaves. “Trancado a sete chaves usa o número sete por este número ser associado desde a antiguidade com o misticismo, a magia, a transcendência e a sabedoria superior.” (Veja)
Para quem nasceu no mundo da publicidade como eu, é natural contar histórias, compartilhar casos de sucesso, projetos vencedores e metas atingidas. A criatividade é premiada em eventos e prêmios pelo mundo, enquanto as apresentações de credenciais das agências contam tudo isso com detalhes. Dos influenciadores até a assessoria de imprensa, todos jogam a favor da exposição máxima das criações e de seus criadores.
Porém, quanto mais migramos para projetos que envolvem dados e Inteligência Artificial, menos as empresas querem contar suas histórias. Conversando com diversas pessoas da área, listei três principais motivos:
1. Reputação de marca
Projetos de IA muitas vezes tocam aspectos delicados da vida em sociedade e, se não forem feitos com cuidado, podem representar um risco para a imagem das empresas. O Twitter, por exemplo, sofreu quando descobriram que seu algoritmo de corte de imagem priorizava pessoas brancas. A empresa teve de se desculpar publicamente e corrigir o problema.
Em um mundo onde o imaginário coletivo foi criado com robôs sendo vilões nos filmes de ação, uma série de estereótipos negativos está à espera para “colar” em iniciativas malsucedidas em qualquer tipo de empresa.
Seria o caso de não inovar para não se arriscar? Uma eventual inércia por esse motivo deixaria as empresas para trás – isso não é opção em um mundo tão veloz em que vivemos. O segredo mora nos princípios éticos e no estímulo à diversidade desde o início: da contratação de pessoas até a natureza dos dados.
2. Revelar segredos ao fraudador
Conversando com Bruna Smith, Gerente Sênior de Marketing na H2O.ai, ouvi que “muitos clientes não querem revelar seu uso de IA na redução de fraudes, justamente para evitar dar informações aos fraudadores”.
Se você acha que um fraudador é um sofisticado hacker, acertou. Porém, existem inúmeras histórias de fraudadores menos tecnológicos.
No livro Inteligência Artificial em Marketing e Vendas, eu conto a história de um aplicativo de mobilidade urbana. Após anos sendo um gigante app de corridas de táxi, a empresa decidiu incluir também os carros particulares (tipo Uber).
Após diversos problemas relatados por passageiros sobre motoristas particulares que os abandonaram em locais de muita movimentação, foi descoberto que grupos de taxistas se organizavam para fraudar corridas: eles se fingiam de passageiros e chamavam carros particulares dentro de shoppings. Enrolavam os motoristas com mensagens de “já estou indo” até que o limite de tempo mínimo do estacionamento fosse ultrapassado e o motorista penalizado com o pagamento da primeira hora.
Como consequência, muitos motoristas particulares passaram a não aceitar corridas dentro de shoppings. A solução foi uma experiência gráfica diferenciada para os fraudadores: enquanto estes acreditavam que estavam fraudando, eram na verdade atendidos por motoristas-robôs, criados artificialmente pela empresa.
3. Segredo industrial
Pense em um registro de patente ou de propriedade intelectual. A fórmula da Coca-Cola, por exemplo, é um diferencial competitivo que dá vantagem à sua empresa criadora. O mundo industrial está acostumado a proteger seus segredos a sete chaves.
O mundo digital talvez não esteja.
Quando uma empresa cria um algoritmo que reconhece previamente quem vai comprar um produto ou que prevê quanto um consumidor vai gastar com ela com o tempo, ela está um passo à frente da concorrência.
Esta empresa criou uma bola de cristal a respeito dos seus consumidores e fará o possível para que seus concorrentes nunca tenham acesso a essa fórmula.
A tal “sabedoria superior” das sete chaves, neste caso, posiciona empresas que usam IA na frente das outras, prevendo desde comportamentos de clientes até resultados de negócio.
E tudo sempre acaba em talentos…
Juntando os três motivos acima com a dificuldade de contratar e treinar talentos digitais e de IA, e ainda somando o apetite e a pressa de grandes investidores e startups, fica cada vez mais arriscada a divulgação de iniciativas de sucesso em IA.
Já assisti a empresas que perderam equipes inteiras em poucas semanas.
Se você não quer que seu time vá embora e seus segredos sejam revelados como se a arca fosse feita de papel, além dos óbvios cuidados com a segurança da informação, sugiro que comece com uma visão do seu negócio (empresa, área ou departamento).
Em seu livro “Liderando Mudanças”, John P. Kotter define visão como uma “fotografia do futuro com algum comentário implícito ou explícito sobre por que as pessoas devem se esforçar para criar esse futuro”.
A partir da visão, eu sugiro o exercício constante de encontrar a intersecção entre: 1) O que as pessoas gostam e querem fazer cada vez mais (se especializar); 2) O que é bom para os clientes da empresa, seja a experiência do consumidor ou as metas do cliente B2B; e 3) O que é bom para a empresa onde você trabalha e o que colabora para o seu crescimento. Figura 1.
Figura 1: a tradução da visão em componentes de incentivo
Quando estes três tópicos se encontram e o resultado é bom para o planeta e a sociedade, as pessoas se unem, as equipes abraçam a visão e se desenvolvem de forma imbatível, blindando a sete chaves suas iniciativas de crescimento sustentável, usando dados e IA.
Este artigo foi produzido por Fernando Teixeira, SVP de Dados na Media.Monks e colunista da MIT Technology Review Brasil.