Incorporar IA em cursos de medicina ainda é um desafio
HealthHealth Innovation por Einstein

Incorporar IA em cursos de medicina ainda é um desafio

A adoção de IA entre estudantes de medicina já é realidade, mas poucas instituições têm diretrizes sobre seu uso como ferramenta de estudo ou como disciplina na grade curricular.

O ano era 2002. O telefone celular já era bastante disseminado no Brasil – embora ainda distante de ter todas as funcionalidades de um smartphone –, e o pequeno modelo Nokia 3310 era um sucesso de vendas. As pessoas já estavam conectadas pela internet, mas, para isso, era preciso ter uma linha telefônica e um provedor de acesso. O formato MP3 ganhava projeção, e os jovens se comunicavam por serviços de mensagem instantânea como o ICQ. 

Esses elementos faziam parte do cotidiano brasileiro quando Renata Silveira nasceu. Hoje, aos 20 anos de idade, aluna do segundo semestre da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela não consegue conceber um aprendizado sem tecnologia: “Como as pessoas faziam medicina antes? Não tem como imaginar um ensino sem isso”, brinca a estudante. Ela não está sozinha. Segundo o Censo da Educação Superior 2021, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o perfil do aluno que ingressa no ensino superior no Brasil tem idade média entre 19 e 21 anos. Uma geração que cresceu em um mundo digital. 

Recursos inovadores fazem parte da rotina de estudo de Renata. Ela conta que, desde a época da preparação para o vestibular, usa um aplicativo com cartões de memorização chamado Anki. A ferramenta tem um algoritmo de repetição espaçada que ajuda na fixação dos conteúdos. A estudante relata que também utiliza ChatGPT, especialmente para auxiliar em conteúdos que ainda desconhece.  

O ChatGPT é um chatbot, um robô virtual da empresa OpenAI. A ferramenta é capaz de fornecer respostas para perguntas em uma ampla gama de conhecimentos, baseada em algoritmos que podem reconhecer, prever e gerar texto por meio de padrões que identificam conjunto de dados contendo milhões de palavras. 

“Às vezes, estamos tratando de um assunto em aula que não tive tempo de estudar ainda, então eu recorro, sim [ao ChatGPT], porque no Google não encontro uma resposta tão complexa. Sabemos que não é a coisa mais confiável do mundo, mas pelo menos dá um norte. Eu acho que é muito positivo, se tiver um olhar crítico, se não for a única plataforma, a única fonte de informação”, avalia.  

O uso de IA entre estudantes de medicina já uma realidade, mas nem todas as instituições transformam a tendência em orientações objetivas, tampouco buscam a inclusão da ferramenta em sala de aula, nas grades curriculares. A acadêmica diz que usar essa tecnologia é comum entre os colegas, mas que o assunto jamais foi abordado por professores.  

Cursos com propostas mais inovadoras estão mais propensos a incorporar as inovações ao processo de aprendizagem. Na faculdade de medicina do Centro de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, um núcleo foi criado para avaliar os usos e a inclusão de Inteligência Artificial (IA) na grade curricular do curso assim que o ChatGPT começou a gerar grandes repercussões na área da saúde, segundo os médicos e professores Carlos Augusto Cardim e Dannielle Godoi. 

A necessidade de tratar do assunto veio da observação dos próprios alunos. “Nós fizemos uma pesquisa, entre março e abril de 2023, e identificamos que mais de 90% dos alunos já tinham acessado o ChatGPT, e que metade deles estava usando a ferramenta para estudo. Chegamos à conclusão de que teríamos que aprender e nos abrir a esse mundo. Por enquanto, estamos traçando estratégias para trabalhar de uma forma mais ativa, mas já temos algumas ações em andamento como a inclusão da aula sobre como usar ChatGPT e aulas sobre transformação digital e uso da IA na medicina na grade curricular, de forma que o estudante comece a experimentar o uso das ferramentas de uma maneira consciente, racional e segura”, conta Dannielle. 

A professora relata que, após exercícios, os estudantes perceberam claramente que o uso da ferramenta era muito mais eficiente quando eles analisavam casos clínicos de temas já estudados. Com conteúdos ainda pouco explorados, ficavam reféns de respostas não confiáveis. Carlos Cardim conta também como tem sido o desafio de abordar o tema com os estudantes: “Eu tenho lido bastante sobre isso. Eu abordei o assunto em aula para falar sobre as vantagens e os riscos de incorporar essas novas tecnologias, mostrei exemplos e confrontei com a minha disciplina, que é a medicina baseada em evidências. Mas ainda estamos em amadurecimento, entendendo como vamos passar isso para os alunos. Queremos estruturar um pouco melhor para poder avançar, inclusive na parte de segurança acadêmica, para que possamos até avaliar os alunos adequadamente em provas”, avalia o professor. 

De uma geração completamente diferente da que está em sala de aula atualmente e com vasta experiência profissional, tanto na prática quanto no ensino e em gestão de saúde, os dois profissionais concordam que ignorar as mudanças trazidas pelas novas tecnologias não é um caminho plausível; ao contrário, é preciso usar essa bagagem para encontrar as melhores formas de incorporação. 

“Se fecharmos os olhos e proibirmos o uso, eles vão continuar usando e nós não vamos poder exercer o nosso papel, que é o de fazer a tutoria. Então, você resistir à chegada dessa ferramenta talvez seja uma estratégia inadequada”, analisa Dannielle. A docente também conta que no início de outubro a Faculdade publicou um Guia de prático para os estudantes, contendo diretrizes para o uso ético e segura da IA para a aprendizagem na instituição. Em novembro será lançado o guia dos docentes, como forma de apoiar os educadores no uso das novas ferramentas.   

Aprendizagem inovadora gera profissionais inovadores 

A Universidade de São Paulo disse em nota oficial que a Pró-Reitoria de Graduação formou um grupo de trabalho composto por vários docentes para discutir a incorporação de tecnologias de informação e comunicação nos projetos pedagógicos dos cursos de graduação. Segundo a instituição, um congresso previsto para o final de outubro deve delinear os próximos passos. 

Todavia, nas áreas de pós-graduação, a abordagem sobre inovações vem sendo frutífera. Não são poucas as pesquisas científicas em curso na área da saúde que utilizam a IA para resolver problemas do mundo real.  

“Estamos em uma fase muito interessante, porque estamos vendo que a tecnologia funciona, mas os trabalhos ainda estão sendo construídos, há um gap. Para a academia, isso é maravilhoso. É quando os pesquisadores colocam a mão na massa. A tecnologia está na mão, temos algo diferente, então agora é identificar os problemas e tentar resolvê-los”, diz o médico radiologista Bruno Aragão, pesquisador do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da USP e que trabalha com IA para o desenvolvimento de algoritmos que possam ajudar em triagem e diagnóstico. 

O pesquisador avalia que, geralmente, as novidades tendem a ingressar nas universidades pelas pós-graduações, um caminho natural para que a aplicação das inovações na prática clínica possa ser respaldada pelo conceito da medicina baseada em evidências. Também acredita na necessidade de os médicos desenvolverem ao menos o que ele chamou de “letramento digital” para lidar com as novas tecnologias. Ele explica que isso seria um tipo de maturidade para distinguir as limitações, quando a tecnologia pode errar, quando se pode confiar e que tipo de especialista de outras áreas, como a de engenharia, pode colaborar em uma equipe multidisciplinar. 

O desafio de incorporar IA 

Contudo, a adoção de IA está longe de ser uma realidade em grandes cursos de medicina no país. Segundo apuração feita pela MIT Technology Review Brasil, das quatro faculdades de medicina que possuem conceito 5 no CPC (Conceito Preliminar de Curso), ou seja, nota máxima na avaliação, apenas uma sinalizou estar definindo uma política de uso de novas tecnologias por alunos, professores ou incorporação na grade curricular. O CPC é um conceito composto por diferentes variáveis: resultados da avaliação de desempenho de estudantes, infraestrutura e instalações, recursos didático-pedagógicos e corpo docente. 

Foram solicitadas respostas sobre os cursos de graduação em medicina da Universidade Evangélica de Goiás, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, da Universidade Estadual de Ponta Grossa e da Universidade de Franca, as quatro instituições com nota máxima. A UniEvangélica citou que está em processo de formulação de propostas para o tema, sem dar mais detalhes. 

A USP não está ranqueada no CPC por discordar da metodologia do Ministério da Educação e não realizar o Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes). Já o curso do Einstein é recente, aberto em 2015, os alunos de medicina ainda não participaram do Enade e, portanto, a graduação não tem pontuação no CPC (Conceito Preliminar de Curso), mas tem nota máxima do Ministério da Educação (MEC) na avaliação de reconhecimento de curso. 

Guidelines nas principais universidades no exterior 

A MIT Technology Review Brasil entrou em contato com a Escola de Medicina de Harvard, com o Programa Harvard-MIT em Ciências e Tecnologia da Saúde e com a Escola de Medicina de Oxford para entender como essas instituições têm se posicionado sobre o uso de novas tecnologias com IA. 

Harvard considera que “todos os nossos alunos são proficientes com estas ferramentas” e orienta os professores a ajustar as expectativas conforme necessário. A faculdade diz ainda que incentiva o uso no formato de “experimentação responsável” para que os estudantes tenham um envolvimento que leve a uma compreensão mais profunda. A sugestão para os docentes é que eles alimentem ferramentas como o ChatGPT com tarefas de seus cursos e observem o que ele produz – considerando que se tiverem a oportunidade muitos alunos farão a mesma coisa – então, com base nessa percepção, decida a melhor forma de se adaptar, ajustar e, conforme apropriado, incorporar em seus planos de ensino. Em seguida, decida e divulgue uma política curso por curso sobre o uso pelos alunos.  

“À medida que esta situação evolui, precisamos aprender a melhor forma de utilizar estas ferramentas para melhorar a aprendizagem. Também precisamos ensinar nossos alunos a usar essas ferramentas de maneira ética e responsável”, complementa a instituição. 

A Escola de Medicina de Oxford respondeu que nos dois primeiros anos o currículo é composto por um programa de “Medicina Pré-Clínica” que atualmente não inclui nada sobre os usos de IA na área da saúde. A partir do terceiro ano os estudantes têm livre escolha entre uma série de opções avançadas de disciplinas, onde o assunto pode ser abordado. 

O Programa Harvard-MIT em Ciências e Tecnologia da Saúde informou que o MIT Schwarzman College of Computing capitaneia uma iniciativa chamada Policy Forum: “um esforço global que reúne cientistas, tecnólogos, legisladores e líderes empresariais com o objetivo de impulsionar o debate sobre os desafios sociais criados pela crescente adaptabilidade da inteligência artificial, dos princípios à implementação prática”. Ainda de acordo com o MIT, vários grupos de trabalho exploram diferentes questões principalmente nas áreas de Mobilidade, Finanças e Assistência Médica. O processo envolve workshops e eventos periódicos. 

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