Vice-presidente do Parlamento Europeu compartilha sua perspectiva sobre a regulação europeia de criptoativos (MiCA), DeFi e DAOs
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Vice-presidente do Parlamento Europeu compartilha sua perspectiva sobre a regulação europeia de criptoativos (MiCA), DeFi e DAOs

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, Eva Kaili analisa a relação da evolução tecnológica com a velocidade de atuação do regulador, sob a ótica da formação do Mercado Único Digital Europeu.


Em artigo publicado aqui na MIT Technology Review Brasil, comentei sobre como a União Européia avançou para regular o mercado de criptoativos através do “Markets in Crypto-Assets” (MiCA) e do “Transfer of Funds Regulation” (ToFR).  

Tendo este assunto como pano de fundo, eu conversei com uma das pessoas que mais conhece sobre a regulamentação de novas tecnologias, Eva Kaili, Vice-Presidente do Parlamento Europeu e responsável pelo “Panel for the Future of Science and Technology” (STOA) 

Ela tem trabalhado na promoção da inovação como uma força motriz para o estabelecimento do Mercado Único Digital Europeu.  

Na entrevista que você confere abaixo, abordamos pontos-chave sobre MiCA e algumas propostas legislativas controversas como finanças descentralizadas (DeFi) que permaneceram fora do escopo da legislação recém-aprovada. Conversamos também sobre regras administradas através de contratos inteligentes (Lex Cryptographia), organizações autônomas descentralizadas (DAOs) e muito mais. 

1 – Seu trabalho na promoção da inovação como força motriz para o estabelecimento do Mercado Único Digital Europeu tem sido intenso. Você foi a relatora de vários projetos de lei nas áreas de tecnologia de blockchain, plataformas on-line, Big Data, Fintech, IA, e cibersegurança. Quais são os principais desafios que os legisladores enfrentam ao introduzir projetos de lei que envolvem novas tecnologias? 

A tecnologia desenvolve-se rapidamente e soluções inovadoras precisam de algum espaço para serem testadas e desenvolvidas. Daí, os legisladores precisam de algum tempo para entender como essas tecnologias foram moldadas, consultar as partes interessadas, e medir o impacto esperado em mercados tradicionais.  

Então, a melhor maneira de avançar é não reagir imediatamente a nenhum desenvolvimento tecnológico com uma iniciativa legislativa, mas ao contrário, dar tempo para que a tecnologia se desenvolva e para que os legisladores se eduquem, compreendam os benefícios e desafios das tecnologias inovadoras, para que possam digerir como se espera que elas afetem a arquitetura do mercado atual e, daí, sugerir um enquadramento legislativo equilibrado, tecnicamente neutro e voltado para o futuro.  

Para esse fim, na Europa adotamos a abordagem do “wait and see” [“espere e veja”] que nos leva a proceder seguramente respondendo a três questões fundamentais: (i) quão cedo o desenvolvimento tecnológico deve ser regulamentado, (ii) quanto detalhe a regulamentação proposta deve incluir e (iii) qual deve ser o seu âmbito de aplicação.
Nesse contexto, podem surgir novos desafios, entre eles, decidir por usar regras antigas para novos instrumentos ou criar novas regras para novos instrumentos. A antiga nem sempre é viável e pode ter consequências não intencionais para a segurança jurídica, já que alterações ou modificações podem capturar um âmbito legislativo complexo.  

Por outro lado, a mais nova precisa de tempo, consulta com os interessados, um escrutínio interinstitucional, e muito mais. De qualquer forma, deve ser devidamente considerado que as respostas a essas questões determinam o crescimento do mercado, o tempo para alcançar esse crescimento, e o impacto de determinada regulamentação em outros mercados, já que há também a dimensão geopolítica a ser considerada quando se regulamenta novas tecnologias. 

2 – Em 2020, a Comissão Europeia lançou o Digital Financial Package (Pacote Financeiro Digital) que tem como principal objetivo facilitar a competitividade e a inovação no setor financeiro da União Europeia (UE), estabelecer a Europa como normalizador global, e fornecer proteção ao consumidor para as finanças digitais e os pagamentos modernos. O que um quadro regulamentar precisa considerar para ser uma vantagem competitiva numa determinada jurisdição? 

Como mencionei, é mais importante do que nunca considerar a dimensão geopolítica global e efeito de um regime regulatório possível em relação a novas tecnologias. Veja, na nova economia digital global, a concentração de capacidade tecnológica aumenta a competição entre as jurisdições. Por exemplo, interdependências e dependências tecnológicas entre os agentes dominantes do mercado e as regiões geográficas que controlam são evidentes na Ásia, Europa e América. Nesse contexto, produtos e serviços digitais traduzem-se em poder, têm implicações geoeconômicas fortes, e facilitam o “imperialismo digital” ou o “nacionalismo-tecnológico”. Portanto, qualquer enquadramento regulatório futuro deve ser visto como fonte de vantagem competitiva de jurisdição; ao gerar mercados robustos, favoráveis à inovação, e isentos de riscos, podem atrair capital humano para apoiar inovação e capital financeiro para financiar inovação ao longo do tempo. 

Esses princípios foram as principais forças motrizes para o “DLT Pilot Regime” e o “Markets in Crypto-Assets Regulations” (MiCA), uma vez que fomos bem sucedidos em dois marcos: criar a primeiríssima sandbox pan-Europeia para testar DLT em infraestruturas do mercado financeiro tradicional e o primeiro conjunto concreto de regras em relação às criptos, abrangendo de cripto ativos, incluindo as stablecoins, a emissores, manipulação de mercado e além, estabelecendo as normas de como uma abordagem do mercado cripto deveria ser, e criando uma vantagem competitiva para o Mercado Único Europeu. 

 3 – A fama inicial de Blockchain como uma tecnologia “capacitadora” de fraudes, pagamentos ilícitos de traficantes de drogas e terroristas na “Dark Web”, bem como “ambientalmente irresponsável”, criou muitos obstáculos a qualquer tratamento regulamentar da tecnologia. Em 2018, quando participou do painel sobre regulamentação, na Blockchain Week em Nova Iorque, somente pequenas jurisdições como Malta e Chipre estavam experimentando a tecnologia e tinham propostas legislativas para regulamentar a indústria. Nessa altura, o desconhecimento da tecnologia levou muitos reguladores a afirmarem repetidamente que a Blockchain era apenas uma tendência da moda. O que lhe fez perceber que a blockchain era muito mais que apenas a tecnologia subjacente dos criptoativos e os tokens de financiamento? 

Logo cedo eu percebi que a blockchain era a infraestrutura para uma ampla gama de aplicações que transformariam as estruturas do mercado, negócios, e modelos operacionais e teria efeitos macroeconômicos. Hoje, enquanto a tecnologia ainda está evoluindo, já foi considerada a espinha dorsal e a infraestrutura de qualquer ambiente de IoT (Internet das Coisas) alavancando as interações homem-máquina e máquina-máquina. Seu impacto na economia real deverá ser decisivo, embora não seja fácil prever em que caminho e sob quais condições. Ainda assim, o rápido desenvolvimento da blockchain já forçou as empresas e os líderes governamentais a refletir sobre como os mercados serão nos próximos anos; qual seria o cenário organizacional apropriado na Nova Economia; e que tipo de estruturas de mercado devem ser formadas a fim de, não só sobreviver à concorrência econômica e permanecer tecnologicamente relevante, mas também gerar e sustentar taxas de crescimento inclusivas proporcionais às expectativas da sociedade. Tanto os projetos do European Blockchain Services Infrastructure (EBSI) são essenciais, quanto o EU Observatory Blockchain & Fórum são essenciais para esse fim, pois focam em dar à União Européia uma vantagem de serem os primeiros a chegar na nova economia digital ao facilitar avanços tecnológicos e testar a convergência blockchain com outras tecnologias exponenciais. 

4 – No último dia 30 de junho, a União Europeia chegou a um acordo provisório sobre como regulamentar a indústria cripto no bloco, dando luz verde à MiCA, sua principal proposta legislativa para regulamentar o Mercado de Criptoativos. Introduzida pela primeira vez em 2020, a MiCA passou por várias deliberações, com algumas disposições legislativas propostas revelando-se mais controversas do que outras, tais como as Finanças Descentralizadas (DeFi) que permaneceram fora do seu escopo. As plataformas DeFi, tais como as exchanges descentralizadas (DEX), pela sua natureza, parecem ser contrárias aos princípios fundamentais da regulamentação. É possível regulamentar DeFi na sua fase atual de desenvolvimento? 

De fato, a crítica preliminar recebida dos participantes do mercado, quando a regulamentação dos Mercados em Crypto-Assets foi apresentada em setembro de 2020, foi que ela excluía as finanças descentralizadas, que visam descentralizar os serviços financeiros, tornando-os independentes das instituições financeiras centralizadas. 

Entretanto, como DeFi, idealmente, opera com contratos inteligentes em arquiteturas organizacionais autônomas descentralizadas alavancando aplicações descentralizadas (DApps) sem nenhuma entidade a ser identificada, ela não poderia ser acomodada adequadamente na Regulamentação dos Mercados em Criptoativos (MiCA), que se dirige explicitamente aos prestadores de serviços financeiros em blockchain que são, ou precisam ser, entidades legalmente estabelecidas, supervisionadas para o cumprimento de requisitos específicos no que diz respeito ao gerenciamento de risco, proteção ao investidor e integridade do mercado, sendo assim responsabilizadas em caso de falha, dentro de um contexto legal claro e transparente. 

DeFi, por concepção, carece das características de uma “entidade”, pelo menos na forma a que estamos acostumados. Portanto, neste ambiente descentralizado, precisamos repensar nossa abordagem em relação ao que constituiria “a entidade” que arcaria com a responsabilidade em caso de má conduta. Poderia ser substituída por uma rede de atores pseudônimos? Por que não? Entretanto, o pseudônimo não é compatível com nossa tradição legal e regulatória. Pelo menos não até agora. Não importa qual seja a arquitetura, o projeto, o processo e as características de um produto ou serviço, tudo sempre deve terminar em uma pessoa (ou pessoas) responsável. Eu diria que o caso DeFi reflete exatamente o problema da falta de quem culpar. Portanto, a descentralização parece muito mais desafiadora para os formuladores de políticas. 

5 – O movimento da União Europeia em direção à regulamentação da indústria cripto-blockchain começou muito antes da MiCA. Em 03 de outubro de 2018, o Parlamento Europeu votou, com uma maioria sem precedentes e o apoio de todos os partidos europeus, a sua “Blockchain Resolution”. Qual a importância desta Resolução do ponto de vista Político-Econômico? Como a aprovação da “Blockchain Resolution” contribuiu para levar a União Europeia a assumir uma liderança regulamentar? 

A “Blockchain Resolution” do Parlamento Europeu de 2018 refletiu a visão de como abordar, de um ponto de vista regulatório, uma tecnologia que estava (e está) ainda em evolução. O principal argumento para a resolução foi que a Blockchain não é apenas a tecnologia capacitadora para criptomoedas e tokens para crowdfunding, mas a infraestrutura para uma ampla gama de aplicações necessárias para que a Europa se mantenha competitiva na Nova Economia. Com base nisso, a Comissão da Indústria  (ITRE, na sigla em inglês) do Parlamento Europeu autorizou a elaboração da Resolução: “Distributed Ledger Technologies e Blockchain”: Construindo confiança com desintermediação”. E esta foi minha parte de empreendedorismo político que senti que tinha que assumir para desbloquear a demanda por uma regulamentação e desencadear as instituições da UE a pensar na perspectiva de regulamentar os usos da tecnologia blockchain. Assim, ao redigir a resolução, eu não tinha apenas o objetivo de criar uma base de segurança jurídica, mas uma certeza institucional que permitisse que blockchain florescesse dentro do mercado único da UE, facilitasse a criação de mercados blockchain, fizesse da Europa o melhor lugar do mundo para as empresas blockchain e tornasse a legislação da UE um modelo a ser seguido por outras jurisdições. De fato, a Resolução de Blockchain desencadeou a Comissão Européia a elaborar o Regime Piloto DLT e as propostas do Mercados em Crypto-Assets (MiCA), refletindo os princípios de neutralidade tecnológica e o conceito associado de neutralidade do modelo de negócios necessário para facilitar a adoção de uma tecnologia digital de importância estratégica essencial. 

6 – Existem diferentes arquiteturas blockchain, especialmente aquelas baseadas em redes não permissionadas, que proporcionam não apenas desintermediação, mas também estruturas de governança descentralizadas com propriedades de automação. Conforme estas estruturas avançam, você acredita que no futuro haverá espaço para “Lex Cryptographia” – regras administradas através de contratos inteligentes autoexecutáveis e organizações autônomas descentralizadas (DAOs)? E se sim, que princípios ou diretrizes os reguladores devem levar em consideração neste caso? 

Os contínuos avanços tecnológicos e a perspectiva de uma economia global descentralizada operando em tempo real utilizando tecnologia quântica, Inteligência Artificial e aprendizagem de máquina, juntamente com a tecnologia blockchain, logo levará ao desenvolvimento da “Lex Cryptographia”, pois os sistemas baseados em código parecerão ser o caminho mais apropriado para promulgar leis de forma eficaz neste novo ambiente. Entretanto, esta não seria uma tarefa fácil para políticos, formuladores de políticas e a sociedade em geral. 

Perguntas críticas precisariam ser respondidas em nível de código enquanto se navega no espaço “Lex Cryptographia”: o que um sistema desse tipo seria programado para fazer? Que tipos de informação ele receberá e verificará e como? Com que frequência? Como aqueles que mantêm a rede serão recompensados por seus esforços? Quem garantirá que o sistema funcionará como planejado quando a regulamentação for introduzida na arquitetura de tal sistema? 

A perspectiva da “Lex Cryptographia” exige que ampliemos nossa compreensão do que realmente constituiria uma “boa regulamentação” neste caso. E isto é um desafio para todas as jurisdições do mundo. Eu diria que uma maneira de avançar seria aproveitar, mais uma vez, o “sandboxing” — como fizemos com o Regime Piloto DLT — e criar um espaço sólido mas ágil que permitirá tanto aos inovadores quanto aos reguladores compartilhar conhecimento e obter o entendimento necessário que informará o futuro quadro legal. 


Este artigo foi produzido por Tatiana Revoredo, membro fundadora da Oxford Blockchain Foundation, representante no European Law Observatory on New Technologies e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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