Em um passado não muito distante, a pergunta parecia fazer sentido: e se os negócios fossem pensados para oferecer não um, não dois, mas uma dúzia de serviços diferentes em um único aplicativo para dispositivos móveis? Havia experiências ótimas, especialmente em alguns poucos países asiáticos, com esses aplicativos abrangentes – os superapps –, em que o usuário pode acessar as mais diversas funcionalidades em apenas uma plataforma. Teoricamente, essa solução ofereceria conveniência ao cliente e abriria a possibilidade, para as empresas ali abrigadas, de criar uma dinâmica em que uma compra levaria a outra, aumentando a aquisição de usuários, retenção, frequência e, consequentemente, as vendas. Teoricamente. Porque a verdade é que a ideia, no Ocidente, não vingou. E deu certo apenas em alguns países no Oriente.
Mas, não à toa, parecia mesmo uma boa ideia. Na China, um case de enorme sucesso é o WeChat, um superapp do conglomerado Tencent, originalmente concebido para troca de mensagens como o WhatsApp. O superapp possui um sistema de pagamentos como o similar da Meta, mas também agrega feed de notícias, locação de bicicletas, transporte compartilhado e serviços públicos, além de aplicativos de terceiros, oferecendo uma infinidade de serviços, como reserva de hotéis, compras online, pedidos de comida… Possui ainda e-commerce, que permite vendas e compras online, com o pagamento processado ali mesmo. Outro case é o Gojek, da Indonésia, que evoluiu de um aplicativo de carona e serviços de entrega para pagamentos digitais, delivery, compras em lojas e de ingressos para eventos e até consultas médicas.
E embora esses superapps sigam como referência para o mercado, acabaram se tornando mesmo um fenômeno local. Na nossa realidade, a multifuncionalidade foi sendo construída de maneira diferente, e as experiências que acabaram prosperando partiram do desenvolvimento de ecossistemas a partir de um único e forte ativo (core business), que foi se expandindo para interconectar empresas e serviços diferentes, criando valor para os participantes. Do ponto de vista do usuário, a grande diferença é que essas funcionalidades não estão concentradas necessariamente em único aplicativo, ou seja, um único canal. Não existe um canal escolhido, mas sim um respeito à decisão do cliente/usuário pelos canais que ele prefere.
O maior exemplo é o da Amazon, que oferece uma gama de produtos e funcionalidades que retêm o usuário dentro do seu ecossistema sem o prender a um único canal. É assim, por exemplo, que a assinatura do serviço de streaming de filmes e música Amazon Prime traz embutido frete grátis para compras online no marketplace da empresa. Embora conectados, esses serviços – filmes, música e compras – são acessados por canais distintos. Foi com essa lógica que a Big Tech, que começou sendo apenas uma livraria online, construiu uma imensa estrutura de logística e pôde, paralelamente, desenvolver outros produtos, como o Kindle e a Alexa. Tudo parte de um processo que a aparelhou tecnologicamente para poder fornecer infraestrutura de tecnologia para inúmeras empresas ao redor do mundo, com o serviço de computação na nuvem AWS (Amazon Web Services), que oferece o cloud, hoje uma das principais fontes de receitas e rentabilidade da empresa de Jeff Bezos.
Na América Latina e no Brasil, um exemplo parecido é o do Mercado Livre. Inicialmente uma plataforma de e-commerce que conectava usuários, a empresa, hoje, abarca logística, crédito, pagamentos e publicidade, entre outros. Alguns serviços mais simples são incorporados no aplicativo principal, de marketplace, mas a fintech digital da empresa, o Mercado Pago, está em uma plataforma à parte com boa presença offline, por exemplo. Tanto em um caso quanto no outro, as empresas – não custa reiterar – passaram a maior parte do seu tempo de existência focados em um negócio principal, seu core business.
Construção de ativos
Durante o frenesi dos super apps, uma das perguntas mais recorrentes era se uma empresa não desenvolveria um aplicativo único para agregar outros serviços. Em vez disso, a expansão dos negócios vencedores até aqui caminhou no sentido de estabelecer um ecossistema de funcionalidades interligadas, sempre a partir dos ativos construídos organicamente ao longo do tempo.
Outro exemplo é o iFood que tem vendas via diferentes canais, como o aplicativo, a tomada de pedido no salão e o WhatsApp. Sua logística entrega itens de “atacarejos” para consumidores e também para os próprios restaurantes, que usam esses itens para preparar pratos para os consumidores. Além disso, os entregadores, que têm grande demanda no almoço e jantar (picos), começam a preencher os vales com entregas de cosméticos e produtos de pet shops. Por fim, os dados das vendas online permitem ao iFood a construção de ferramentas inteligentes para gestão offline dos restaurantes, como CRMs, PDVs e ferramentas para garçons.
Na maior parte dessa história, o foco foi o delivery de comida, que se tornou um negócio robusto. Ao mesmo tempo, e dentro da cultura de experimentação e inovação da empresa, foram surgindo outras verticais, que se valeram da grande base de dados acumulada até ali. Não se tratava de adicionar produtos aleatórios, de outra natureza, mas de estender a expertise sem perder de vista o core do negócio.
Longe de estar abrigados em um superapp, esses serviços compõem um ecossistema, que é um modelo muito mais flexível e, diferentemente do que se poderia imaginar inicialmente, mais conveniente para os usuários e parceiros, pois ele tem multicanalidade. Do ponto de vista do negócio, o conceito de ecossistema possibilitou que empresas pudessem maturar seus processos e desenvolver tecnologias proprietárias que permitissem dar esses saltos e, mais importante, abrindo caminhos para criar outros ativos, que podem levar a outros serviços, alimentando a já mencionada cultura de inovação.
Simplicidade e acessibilidade
Sim, pode-se dizer que nada impede um modelo de negócio que agregue todos os serviços possíveis em um super app, algo completamente diferente da lógica de construção e integração de ativos dos ecossistemas com multicanalidade. Mas faz sentido para o usuário ter acesso a serviços díspares em um mesmo lugar? Faz sentido acorrentar usuários em um único canal se o mundo descobre e opta por outros, complementares?
E simplicidade, com frequência, é um dos segredos no quesito acessibilidade. Um superapp, com sua vastidão de serviços, pode implicar dificuldades de organização da interface. É um problema para os desenvolvedores, mas também pode se tornar um pesadelo para os usuários, diante da abundância de funcionalidades que podem sobrecarregar a navegação, tornando-a confusa e menos eficiente. A sobrecarga também envolve questões técnicas intrincadas, porque as bibliotecas de código são enormes, o que, por sua vez, pode torná-los significativamente mais lentos – coisa que pode impactar a conversão do tráfego.
Mas, principalmente, o ponto a destacar é que possuir um serviço essencial e, a partir dele, um punhado de outros conectados, é melhor do que fazer uma miscelânea de produtos que, no fim, acabam por não se alavancarem entre si e geram dificuldade de criar consistência na visão do cliente/usuário. O ecossistema, com seus recursos complementares, faz muito mais sentido em todos os aspectos do que criar artificialmente um ambiente que não tem a praticidade que, em meio ao frenesi desse passado não muito distante, era alardeada.