Autópsias podem revelar detalhes íntimos de saúde. Elas deveriam ser mantidas em sigilo?
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Autópsias podem revelar detalhes íntimos de saúde. Elas deveriam ser mantidas em sigilo?

A divulgação pública dos dados de saúde do ator Gene Hackman e de sua esposa Betsy Arakawa levanta questões éticas sobre privacidade.

Ao longo do último mês março, acompanhei as notícias sobre as mortes do ator Gene Hackman e de sua esposa, a pianista Betsy Arakawa. Foi comovente saber que Arakawa parece ter falecido em decorrência de uma infecção rara dias antes do marido, que sofria de Alzheimer avançado e pode ter tido dificuldades para entender o que havia acontecido.

Mas, ao ver o legista divulgar detalhes sobre a saúde do casal, não pude deixar de me sentir um pouco desconfortável. As reportagens afirmam que o casal prezava pela privacidade e estava longe dos holofotes havia décadas. Ainda assim, lá estava eu, do outro lado do Oceano Atlântico, ouvindo quais remédios Arakawa guardava no armário e que Hackman havia passado por diversas cirurgias.

Isso me fez pensar: relatórios de autópsia deveriam ser mantidos em sigilo? A causa da morte de uma pessoa é uma informação pública. Mas e os outros detalhes íntimos de saúde que podem ser revelados em um exame post-mortem?

Os processos e regulamentos em torno das autópsias variam de país para país, por isso vamos focar nos Estados Unidos, onde Hackman e Arakawa faleceram. Lá, uma autópsia “médico-legal” pode ser organizada por autoridades policiais e tratada judicialmente, enquanto uma autópsia “clínica” pode ser realizada a pedido dos familiares.

E existem diferentes níveis de autópsia — alguns podem envolver o exame de órgãos ou tecidos específicos, enquanto análises mais detalhadas exigem a inspeção de todos os órgãos e o estudo dos tecidos em laboratório.

O objetivo de uma autópsia é descobrir a causa da morte de uma pessoa. Relatórios de autópsia, especialmente aqueles resultantes de investigações aprofundadas, costumam revelar condições de saúde — condições que talvez tenham sido mantidas em sigilo enquanto a pessoa estava viva. Há diversas leis federais e estaduais nos Estados Unidos voltadas à proteção das informações de saúde dos indivíduos. Por exemplo, a Lei de Portabilidade e Responsabilidade de Seguros de Saúde (HIPAA) dos EUA protege “informações de saúde individualmente identificáveis” por até 50 anos após a morte de uma pessoa. Mas algumas coisas mudam quando alguém morre.

Para começar, a causa da morte acaba constando na certidão de óbito. Essa é uma informação pública. A natureza pública das causas de morte é algo hoje dado como certo, de acordo com Lauren Solberg, bioeticista da Faculdade de Medicina da Universidade da Flórida. Ela e sua aluna Brooke Ortiz, que vêm pesquisando esse tema, estão mais preocupadas com outros aspectos dos resultados de autópsias.

A questão é que as autópsias às vezes revelam mais do que apenas a causa da morte. Elas também podem identificar o que se conhece como achados incidentais. Um legista pode descobrir que uma pessoa que morreu após uma infecção por Covid-19, também tinha outra condição. Talvez essa condição não tivesse sido diagnosticada. Talvez fosse assintomática. Essa descoberta não constaria na certidão de óbito. Então, quem deveria ter acesso a essa informação?

As leis sobre quem deve ter acesso ao relatório de autópsia de uma pessoa variam de estado para estado nos EUA — e até mesmo entre condados dentro de um mesmo estado. Resultados de autópsias clínicas sempre são disponibilizados aos familiares, mas as leis locais determinam quais membros da família têm esse direito, explica Ortiz.

Testes genéticos complicam ainda mais a questão. Às vezes, os responsáveis pela autópsia realizam testes genéticos para ajudar a confirmar a causa da morte. Esses testes podem revelar do que a pessoa morreu. Mas também podem apontar fatores genéticos não relacionados à causa da morte que aumentam o risco de outras doenças.

Nesses casos, os familiares da pessoa falecida podem se beneficiar ao acessar essa informação. “Minhas informações de saúde são minhas — até se tratar das minhas informações genéticas”, afirma Solberg. Genes são compartilhados entre parentes. Eles deveriam ter a oportunidade de saber sobre possíveis riscos à própria saúde?

É aí que as coisas realmente se complicam. Do ponto de vista ético, devemos considerar os desejos da pessoa falecida. Será que ela gostaria de compartilhar essas informações com seus familiares?

Também vale lembrar que um fator de risco genético é, muitas vezes, apenas isso: um risco. Frequentemente não há como saber se a pessoa desenvolverá a doença, ou quão graves seriam os sintomas. E, se o risco genético for para uma doença sem tratamento ou cura, revelar essa informação aos parentes não causaria apenas muito estresse?

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Uma mulher de 27 anos vivenciou isso ao receber de um teste genético do 23&Me, a informação de que tinha “28% de chance de desenvolver Alzheimer de início tardio até os 75 anos e 60% até os 85.”

“De repente, estou sobrecarregada por essa informação”, ela escreveu em um fórum sobre demência. “Não consigo evitar esse sentimento esmagador de pavor e tristeza por saber que nunca mais poderei ‘des-saber’ isso.”

Em suas pesquisas, Solberg e Ortiz se depararam com casos em que indivíduos que morreram em acidentes de trânsito passaram por autópsias que revelaram outras condições assintomáticas. Um homem de cerca de 40 anos, que faleceu em um desses acidentes, foi diagnosticado com uma doença renal genética. Uma jovem de 23 anos foi identificada como portadora de câncer renal.

Idealmente, tanto as equipes médicas quanto os familiares deveriam saber de antemão o que a pessoa gostaria — seja sobre a realização de uma autópsia, testes genéticos ou sigilo sobre sua saúde. As diretivas antecipadas permitem que as pessoas deixem claras suas vontades quanto aos cuidados de fim de vida. No entanto, apenas cerca de um terço da população dos EUA possui uma. E essas diretivas tendem a focar nos cuidados antes da morte, não depois.

Solberg e Ortiz acreditam que elas deveriam ser ampliadas. Uma diretiva antecipada poderia especificar como a pessoa deseja que suas informações de saúde sejam compartilhadas após sua morte. “Falar sobre a morte é difícil”, diz Solberg. “Para médicos, pacientes, famílias — pode ser desconfortável.” Mas é algo importante.

Em 17 de março, um juiz do Novo México atendeu a um pedido de um representante do espólio de Hackman para selar fotos da polícia, imagens de câmeras corporais e os registros médicos de Hackman e Arakawa. O investigador médico está “temporariamente impedido de divulgar… os Relatórios de Autópsia e/ou Relatórios da Investigação da Morte do Sr. e da Sra. Hackman”, segundo o site Deadline.

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