A tecnologia DLT/Blockchain possibilita a representação digital dos mais variados ativos, de grãos a pedras preciosas, permitindo o fracionamento desses ativos e a sua distribuição com aumento de liquidez, inclusão financeira, compartilhamento da propriedade de ativos, redução de custos e de intermediários na cadeia. Ainda, os ativos digitais representam uma maior eficiência operacional, possibilitando o compartilhamento da infraestrutura, redução de intermediários, automação de processos de compliance, liquidação automática e a facilidade de câmbio entre diferentes ativos.
No entanto, apesar dos inúmeros benefícios trazidos pela implementação de tal tecnologia, o processo legislativo não consegue acompanhar a velocidade das inovações tecnológicas, sendo processos complexos e demorados. Nesse sentido, algumas empresas têm maior resistência a se aventurar em mercados não regulados, trazendo desafios — por ora — para sua adoção em âmbito institucional.
No Brasil os reguladores do setor financeiro, em especial a CVM e o Banco Central têm adotado uma postura de colaboração com o mercado, desde a criação de laboratórios que permitem a incubação e apoio a projetos como o LIFT (Bacen) e LAB (CVM), até a criação do Sandbox Regulatório, permitindo um maior contato com essas novas tecnologias e modelos de negócio. Dessa forma, o regulador apresenta uma visão estratégica de longo prazo no intuito de assegurar o aumento da concorrência, melhoria dos produtos e desenvolvimento do mercado.
Nessa linha, desde a publicação da “Agenda BC#” pelo Banco Central em 2019, a instituição deu início a uma gestão estratégica visando destravar o crescimento do país e incentivar o aumento da participação do setor privado na economia. Pela “Agenda BC#” o Banco Central passou a atuar de forma estruturada em inclusão, competitividade, transparência e educação financeira. Ainda, o Banco Central desenvolveu o Laboratório de Inovação Financeira e Tecnologia (Lift) como um ambiente de colaboração com suporte para desenvolvimento de negócios, anunciou o Sandbox regulatório, o Open Banking, o Pix e, mais recentemente, com a publicação das diretrizes para digitalização do Real com a criação da chamada Central Bank Digital Currency (CBDC).
Apesar dos avanços por parte dos reguladores financeiros e de projetos de lei em tramitação no legislativo, o Brasil ainda carece de uma efetiva regulação específica para os ativos digitais que permita a utilização de todo potencial trazido pelo uso de DLT/Blockchain.
Contudo, vale destacar que o cenário não é de todo desfavorável, de forma que a ausência de uma regulação específica para os ativos digitais não necessariamente representa a impossibilidade do desenvolvimento de novos modelos de negócio, como, inclusive, já vemos acontecer no Brasil, representando, na verdade, uma dificuldade de adoção em âmbito institucional, dada a resistência de muitas empresas de se aventurarem em mercados não regulados. Ainda, a presença e o crescente interesse de players globais no mercado brasileiro, aliado ao ingresso de investidores tradicionais no setor, conferem maior segurança e credibilidade tanto ao mercado em si, quanto ao regulador para eventual inovação regulatória.
Assim, apesar da ausência de regulação representar um desafio para a adoção institucional dos ativos digitais, por outro lado, ela pode representar uma grande oportunidade para players se aventurarem nesse ambiente e estruturarem seu modelo de negócio — observadas as eventuais limitações existentes — de forma que no momento de uma eventual alteração legislativa já estarão à frente de seus competidores, com modelo de negócio já validado pelo mercado.
Nessa linha, e seguindo o princípio da legalidade previsto no artigo 5º da Constituição Federal, não havendo vedação expressa em lei para oferta de ativos digitais, em tese, a oferta é livre, razão pela qual temos diversas empresas e produtos em operação de forma regular no país, oferecendo ativos digitais de quotas de consórcios e crédito carbono a tokens de clubes de futebol. Contudo, a ausência de uma vedação expressa e/ou regulação específica não significa a oferta livre de todo e qualquer ativo digital, sendo necessária a análise das normas já existentes que possam impactar a oferta pretendida.
Dessa forma, a emissão de ativos digitais dependerá da análise da natureza jurídica do ativo digital a ser ofertado, o que poderá exigir a observância de toda uma regulação própria do mercado de capitais.
A CVM tem como atribuição a regulamentação e fiscalização do mercado de valores mobiliários. Dessa forma, a análise da sujeição de qualquer atividade à competência da CVM e, consequentemente, à sua regulamentação, aprovação e fiscalização, passa necessariamente pela análise do objeto dessa atividade e sua qualificação como valor mobiliário. Dito isso, não é todo ativo digital que deve estar sob o controle e fiscalização da CVM, mas apenas aqueles caracterizados como valor mobiliário.
No Brasil, a exemplo do modelo norte americano, temos uma definição legal de valor mobiliário que elenca um rol, não exaustivo, de ativos que seriam caracterizados como tal. Isso porque, o artigo 2º da Lei nº 6.385/76, traz uma definição abrangente e que permite certa maleabilidade das instituições reguladoras e fiscalizadoras, ampliando o conceito de valor mobiliário sem a necessidade de modificação da norma. Além de prever as hipóteses clássicas como ações, debêntures, bônus de subscrição, derivativos e cotas de fundos de investimentos, a lei inclui no rol de valores mobiliários os contratos de investimento coletivo, classificando-os como: “quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”1.
Nesse âmbito, feita a análise do caso e determinado que o ativo digital possui natureza de valor mobiliário, deverá o emissor submeter sua oferta às regras do mercado de capitais brasileiro. Qualquer oferta de valor mobiliário no Brasil, independente do formato, seja por meio de ativos digitais ou pela tokenização de ativos tradicionais, somente poderá ser colocada publicamente a mercado se observados os critérios, limites e regramentos previstos nas Instruções CVM 400, 476 ou 588, seja por meio de registro da oferta ou de seu emissor, na forma prevista na Instrução CVM 400, ou ainda por meio da dispensa de registro da oferta e/ou do emissor também nos parâmetros da mesma Instrução CVM 400, ou ainda nos formatos de dispensa automática de registro previstas nas ofertas regradas pelas instruções CVM 476 (ofertas públicas de valores mobiliários distribuídas com esforços restritos) ou CVM 588 (oferta pública de distribuição de valores mobiliários de emissão de sociedades empresárias de pequeno porte realizada com dispensa de registro por meio de plataforma eletrônica de investimento participativo — crowdfunding).
Para enfrentar essas questões e tentar equalizar as alterações trazidas pelo novo padrão tecnológico, a CVM lançou o Sandbox regulatório. Trata-se de um ambiente experimental criado pelo regulador com o propósito de fomentar o desenvolvimento de novos produtos e serviços, sob sua supervisão e controle, a fim de viabilizar a execução de testes de modelos de negócios inovadores, com redução das exigências regulatórias.
Espera-se que a CVM divulgue até 30 de junho de 2021 os projetos aprovados para participar do Sandbox, com expectativa de que sejam selecionadas iniciativas que utilizando-se de DLT/Blockchain apresentem uma nova roupagem para os ativos digitais com natureza de valor mobiliário, o que possibilitará eventuais atualizações da regulação para aproveitamento completo desse novo padrão tecnológico.
Por todas essas razões, o mercado brasileiro apresenta-se com um grande potencial para o desenvolvimento e ampliação das ofertas de ativos digitais, pendente apenas um avanço de cunho regulatório em relação à possível oferta de valores mobiliários na forma de tokens em DLT/Blockchain, para que tenhamos a adoção instituição dos ativos digitais.
Este artigo foi produzido por Rodrigo Borges, Advogado, Fintech Specialist pela Universidade de Oxford, Membro fundador da Oxford Blockchain Foundation e colunista da MIT Technology Review Brasil.