Aproveitando este mês em que a MIT Technology Review Brasil publicou uma edição inteira sobre Dados, na qual tive o enorme prazer de colaborar, lembrei-me do “mito do dado” do filósofo Wilfrid Sellars. Quero explorar um pouco essa questão, especialmente em um momento em que o debate sobre a “crise da verdade” está tão em evidência. Talvez o melhor título para essa reflexão fosse:
Uma verdade narrada: dados, verificabilidade e as histórias que nos moldam
Por muito tempo, acreditamos que os dados poderiam nos guiar a uma verdade objetiva. Essa ideia carrega um apelo poderoso, já que, diante de um mundo caótico, repleto de opiniões conflitantes, os dados seriam uma âncora de estabilidade. Não é à toa que vivemos na chamada era dos dados, onde “dados brutos” são tratados como matéria-prima essencial para decisões que vão desde políticas públicas até campanhas de marketing e sistemas automatizados baseados em algoritmos e inteligência artificial. Ser data-driven (orientado por dados) tornou-se um jargão amplamente utilizado nos ambientes corporativos, justificando processos de decisão como seguros e confiáveis.
Mas será que confiar nos dados é tão seguro quanto imaginamos? Ou será que a informação que consumimos é apenas mais uma narrativa construída?
A ilusão do dado puro
Wilfrid Sellars, filósofo do século XX, apresentou uma visão intrigante ao questionar o que realmente são os dados. Ele denominou de “mito do dado” a crença de que nossos sentidos ou inferências poderiam oferecer uma base pura e neutra para o conhecimento. Para Sellars, não existem “dados brutos”. Sempre que interpretamos algo, seja a cor do céu, os números de um gráfico ou as respostas de um algoritmo, nós utilizamos conceitos que já trazemos conosco. Em outras palavras, os dados nunca chegam até nós sem mediação: são moldados pelo modo como os coletamos, armazenamos, organizamos e, principalmente, interpretamos.
Na era da informação e da inteligência artificial, essa perspectiva é ainda mais relevante. Pense nos algoritmos que conduzem nossas interações digitais. Eles não apenas processam dados, mas criam significados: escolhem o que chega até nós, priorizam narrativas e moldam percepções. Para Sellars, isso não é apenas uma questão técnica, mas profundamente filosófica. Consumimos histórias, ou seja, narrativas criadas por quem, de alguma forma, controla os sistemas de interpretação.
Aliás, o último livro de Yuval Harari, Nexus: uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial (2024), aborda essa questão ao traçar a história da informação e o modo com que as narrativas moldaram a humanidade até a época atual. O avanço da tecnologia amplificou a capacidade de criar e disseminar histórias, mas também trouxe vários novos desafios, como a saturação de informações e a manipulação de percepções. No contexto da era dos dados, Harari destaca que os algoritmos passaram a desempenhar o papel de autores invisíveis, moldando narrativas personalizadas que, embora eficazes em captar nossa atenção, muitas vezes obscurecem os limites entre a verdade e a interpretação.
Essa ideia reforça a tese de que, no mundo atual, não basta entender os dados:, é essencial compreender as intenções por trás das histórias que eles contam, pois, quem controla as narrativas, controla também o futuro da humanidade.
A busca pela verificabilidade
Por outro lado, o filósofo britânico A.J. Ayer, defensor do empirismo lógico, oferece uma perspectiva distinta. No livro Language, Truth, and Logic (1936), ele escreve: “The criterion which we use to test the genuineness of apparent statements of fact is the criterion of verifiability.” Em outras palavras, o valor de uma afirmação está em sua verificabilidade. A ideia é simples: se algo pode ser verificado empiricamente, podemos confiar em sua legitimidade. A princípio, essa visão parece resolver o problema apontado por Sellars. Se conseguimos testar e confirmar os dados, podemos escapar das armadilhas da interpretação. Mas será que isso é suficiente?
No mundo digital, a verificabilidade nem sempre garante neutralidade. Imagine um algoritmo de recomendação: seus resultados podem ser verificáveis, já que os dados utilizados são reais e os cálculos corretos. Contudo, a seleção do que é recomendado reflete vieses nos dados originais, escolhas interpretativas e até objetivos do sistema.
Narrativas no mundo dos dados
O grande paradoxo da era dos dados é que, quanto mais dados temos, menos eles parecem neutros. Por exemplo, ao explorar um tema no ChatGPT, percebemos que os dados utilizados já são narrados, pois o próprio sistema se retroalimenta de respostas geradas.
Byung-Chul Han, no livro Psicopolítica (2020), argumenta que os dados não apenas descrevem o mundo, mas o reconfiguram. Em plataformas digitais, os dados são cuidadosamente selecionados para maximizar nosso engajamento, construindo narrativas que não buscam a verdade, mas a atenção. Essa crítica complementa Sellars e desafia as limitações do empirismo lógico de Ayer. Mesmo dados verificáveis são influenciados por escolhas de coleta, organização e interpretação, que refletem valores, interesses e estruturas de poder.
Se aceitarmos que os dados fazem parte de uma narrativa, as implicações são profundas. Primeiro, é necessário reconhecer que os dados, por si só, não possuem significado intrínseco, eles só se tornam informação quando interpretados. Isso significa que aqueles que controlam a coleta, o processamento e a disseminação dos dados têm o poder de moldar a percepção coletiva da realidade. Em segundo plano, a crença de que mais dados automaticamente nos aproximam da verdade deve ser desconstruída. Em muitos casos, o excesso de dados pode reforçar vieses, criando uma falsa sensação de precisão enquanto obscurece as lacunas ou interpretações alternativas. Por fim, a era da verdade narrada exige uma postura crítica em relação à informação que consumimos. Devemos questionar quem são os autores dessas narrativas, quais dados foram priorizados ou ignorados e quais interesses, sejam conscientes ou inconscientes, influenciam essas decisões. Sem essa crítica ativa, corremos o risco de nos tornarmos consumidores passivos de histórias projetadas para manipular nossas crenças e comportamentos.
Para além da objetividade
Os dados são fascinantes porque carregam a promessa de um acesso direto e objetivo à realidade, como se fossem espelhos puros refletindo o mundo. Contudo, como evidenciado aqui, essa promessa é, em grande parte, uma ilusão. O que consumimos não são dados “brutos”, mas histórias moldadas por conceitos, valores e interesses que nem sempre são explícitos. Essa realidade nos força a encarar os dados não apenas como ferramentas de precisão técnica, mas como veículos narrativos carregados de poder simbólico e impacto social.
Uma analogia útil para entender essa dinâmica é a do iceberg. Os dados representam a parte submersa: a estrutura invisível que dá sustentação à narrativa, mas que nem sempre é vista ou compreendida. A informação, por sua vez, é a parte que emerge, visível à superfície, que pode ser percebida pelas pessoas de diferentes formas, dependendo do ângulo que observam. No entanto, essa parte visível do iceberg é apenas uma pequena fração do todo, que recebe atribuições e interpretações. A base submersa, composta pelas escolhas de coleta, processos de organização, interesses subjacentes e vieses, é o que realmente molda e define o que emerge. Isso significa que, muitas vezes, a forma como enxergamos a verdade é apenas o reflexo superficial de um conjunto mais complexo e invisível de decisões e interpretações.
Isso, entretanto, não significa que devemos rejeitar os dados ou desacreditar a ciência e a tecnologia que deles dependem. Pelo contrário, reconhecer as limitações e nuances da objetividade nos dá a oportunidade de utilizar os dados de forma mais responsável e crítica. Precisamos ir além de uma confiança cega em métricas e análises, adotando práticas que questionem as fontes, os processos e os interesses que moldam a produção e interpretação de dados. A alfabetização em dados torna-se essencial, assim como a transparência nas metodologias e o incentivo a debates éticos e filosóficos sobre o uso da informação.
A busca pela verdade exige mais do que a aceitação passiva de evidências apresentadas. Ela requer esforço ativo para interpretar, contextualizar e, acima de tudo, questionar. Isso porque as histórias contadas pelos dados podem servir a interesses diversos, e cabe a nós decidir quais delas queremos amplificar, quais queremos transformar e quais devemos contestar. A verdade, neste cenário, não é necessariamente uma conclusão final sobre algo, mas uma construção coletiva, crítica e contínua, a partir dos dados. Assim, a era da informação demanda mais do que análise, demanda também consciência, reflexão e ação. Porque, no fim, os dados, que não são apenas números e registros verdadeiros, são pedaços do mundo usados para narrar aquilo que escolhemos ver e, por extensão, aquilo que nos tornamos através da informação que consumimos e retransmitimos.