Medicina de Precisão – Decisões clínicas baseadas na variabilidade pessoal e em dados futuros
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Medicina de Precisão – Decisões clínicas baseadas na variabilidade pessoal e em dados futuros

A ciência avança para oferecer soluções personalizadas a cada paciente, mas ainda existe o desafio de tornar esses recursos acessíveis a todos.

Uma molécula radioativa de Lutécio 177 se acopla a um receptor de membrana específico de células malignas. A molécula é então internalizada e leva a célula maligna à sua morte, com ganho de sobrevida para o paciente frente a outros tratamentos tradicionais. A estratégia que nos faz lembrar o cavalo de madeira construído pelos gregos na guerra de Troia já é uma realidade na medicina atual. Esse é apenas um entre inúmeros exemplos do que a medicina de precisão trouxe como avanço terapêutico.

A chegada da medicina de precisão tem sido prevista desde o projeto Genoma Humano que decifrou o código genético humano. Embora não haja um consenso sobre sua definição, a medicina de precisão visa a promoção da saúde e melhores modelos assistenciais levando em consideração a variabilidade individual, aprimorando o conhecimento sobre uma doença, com mais precisão tanto em diagnóstico quanto em tratamento.

Nossa geração cresceu em meio a uma medicina centrada nas doenças, e não nos pacientes, e com tratamentos estabelecidos para todos aqueles com determinada patologia, sem se preocupar com as individualidades de cada sujeito. Dados históricos mostram que, no século XVIII, foi proposta a ooforectomia (retirada dos ovários) para mulheres com câncer de mama localmente avançado, tendo sido observada resposta favorável na mama, nos casos positivos para receptores hormonais. Já era uma forma, para os parâmetros da época, de medicina de precisão. Muitos anos após, o que temos visto então, é uma nova maneira de olhar para a medicina, considerando a variabilidade individual, não somente da genética, mas também de fatores ambientais e estilo de vida, focando no melhor para o indivíduo e para populações.

Trastuzumabe, o primeiro medicamento oncológico a ter como alvo um defeito genético considerado responsável pelo crescimento tumoral, foi aprovado nos EUA em 1998, para o tratamento do câncer de mama. Em 2008, cinco medicamentos eram considerados personalizados nos Estados Unidos, definidos como aqueles cuja bula informa sobre a resposta ao tratamento estar relacionada à composição genética individual. Esse número passou para 106, no ano de 2014, e atingiu 286 medicamentos em 2020. Apesar do claro avanço, alguns questionamentos são feitos sobre o porquê não termos avançado ainda mais. A resposta provável se encontra no fato de que a maioria das doenças não deriva de uma mutação genética simples, mas sim de riscos poligênicos, associados a fatores ambientais e hábitos pessoais.

Predição, rastreamento e tratamento

A medicina de precisão é capaz de permear três pilares cruciais em saúde: predição, rastreamento e tratamento.

A predição diz respeito à avaliação do risco genético de um indivíduo, identificando sua propensão ao desenvolvimento de determinada doença. Um exemplo bastante difundido é o de mulheres que realizam mastectomia profilática por risco familiar após detecção do gene BRCA mutado. Hoje, a predição pode ser feita através de um simples exame de sangue, chamado PREDICTA, que avalia 563 genes em indivíduos saudáveis. Tais genes são capazes de identificar riscos de desenvolvimento de câncer, doenças cardiovasculares, e distúrbios de coagulação, metabólicos, imunes, genéticos e raros. O exame também avalia o perfil de farmacogenômica, predizendo a toxicidade a determinados tratamentos. De acordo com Dr. Fernando Moura, oncologista clínico e coordenador médico do programa de medicina de precisão do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), os pacientes após a realização do teste serão acompanhados e monitorados por cinco anos. “É importante manter esse acompanhamento porque pode haver alguma alteração que hoje não tenha significância clínica, mas que com o tempo pode se tornar um risco conhecido para o indivíduo.”

O rastreamento, também chamado de screening ou diagnóstico precoce, já é bem estabelecido, por exemplo, para os cânceres de mama, colorretal, colo uterino e próstata, com métodos e exames tradicionais. “Mas o que deve acontecer nos próximos anos é a detecção por simples exame de sangue de fragmentos de DNA tumoral circulante, também chamada de biópsia líquida. Ela permitirá o diagnóstico precoce de diversos tipos de neoplasias, como as de esôfago, fígado, ovário e pâncreas, com especificidade de 99% e sensibilidade de 50% em estágios mais precoces a 75-80%, em estágios avançados.”, diz Dr. Fernando. O exemplo promissor é o teste de detecção de câncer DELFI, que avalia a fragmentação de DNA tumoral circulante, permitindo rastreio e diagnóstico precoce a um custo acessível. O DELFI utiliza inteligência artificial (IA) para identificar estruturas incomuns de DNA na amostra de sangue.

O terceiro momento diz respeito à personalização do tratamento. No começo dos anos 2000 tínhamos apenas quimioterapia e radioterapia como opções terapêuticas na oncologia. Hoje, através de sequenciamento de células malignas, identificam-se alterações genômicas que podem ter alguma forma alvo-específica de tratamento, conferindo aos pacientes um melhor desfecho e com menor toxicidade. Ainda não há tratamentos para todas as alterações genômicas identificadas, mas esse número vem crescendo de forma muito rápida.

Teranóstica, termo que une diagnóstico e tratamento, utiliza uma molécula radioativa primeiro para identificar, e depois para agir no tratamento de tumores. A acoplagem de Lutécio 177 é feita ao receptor de célula maligna PSMA (receptor de superfície celular específico da célula maligna). Com a formação deste conjugado, o receptor da célula maligna internaliza a molécula radioativa, levando a célula maligna à apoptose, ou sua morte. Publicações científicas mostram ganho de sobrevida global frente aos tratamentos tradicionais em alguns tipos de câncer.

Quando apenas a genética não é suficiente: necessidade de dados em larga escala

“Nós não viabilizaríamos a medicina de precisão apenas com a capacidade isolada de processamento de informações de um médico”, diz o Dr. Edson Amaro Jr, superintendente de análise e ciência de dados do HIAE. O papel de tratar o paciente, que era elaborado intrinsicamente na cabeça do médico, passa a ser agora executado em parte por instrumentos computacionais. “A capacidade de gerar esse apoio de maneira eficiente nasceu com a evolução tecnológica, basicamente com algoritmos de redes neurais, dos quais o mais comum é o aprendizado de máquina, e mais recentemente Deep Learning”, ele complementa.

O volume de informações científicas existente hoje está acima do que médico consegue processar. A conjunção da complexidade desses dados (Big Data) e sua curadoria passa então a ser feita com apoio de instrumentos. Esse arcabouço instrumental é fundamental para aparelhar as práticas de medicina de precisão. Alguns algoritmos são capazes de destilar essa informação e trazê-la no contexto do paciente. “Por exemplo, quando fazemos testes genéticos, temos a capacidade de levar para o médico não só o resultado sobre haver ou não determinada variação genética, mas o que isso significa no contexto do paciente e do atual conhecimento da literatura científica atual.”, explica o Dr. Edson.

A evolução das informações genéticas

Diferente do que tínhamos à época do projeto Genoma Humano (genomas de quatro pessoas), hoje temos o genoma de centenas de milhares de pessoas. Aqui, o dever é: o que faço com tudo isso? Dados estão sendo destilados e finalmente algumas soluções começam a aparecer. Mas a medicina de precisão requer soluções personalizadas para cada paciente. O exame precisa dizer não somente se determinado gene está expresso ou não, mas o que isso significa. A avaliação do risco poligênico precisa ser fortemente alicerçada pela IA e Big Data. Para avaliar o risco de uma pessoa que tenha uma herança genética complexa, dependente de múltiplas interações entre genes e meio ambiente, essa complexidade passa a ser tratada com IA.

É preciso capturar não somente a expressão genética do indivíduo, mas também seus hábitos, nível educacional, adesão e autocuidado. A essa análise, dá-se o nome de Predictive Analytics. Juntar isso à base genética e fornecer ao médico caminhos viáveis de interação aumenta a eficiência porque permite a escolha de caminhos com êxitos mais prováveis. Aqui, estamos diante de Prescriptive Analytics. As duas formas de análise de dados, preditiva e prescritiva começam a entrar na cultura médica.

Decisões baseadas no futuro

Outro ponto de grande interesse é que, na medicina de precisão, o médico precisa lidar com ferramentas e aprender a tomar decisões baseadas no futuro. As decisões costumavam ser tomadas com base no passado, na nossa experiência ou no que a comunidade científica nos trouxe. Olhar agora para o futuro indica que não se deseja que aconteçam desfechos desfavoráveis para o indivíduo. Apenas bons desfechos são visados, em uma tentativa de mudança dinâmica do que vai acontecer com o paciente. A essa forma de interação, chamamos de Inteligência Aumentada. Para alterarmos de fato o futuro, não basta ter um resultado em mãos. É preciso agir frente ao paciente de forma precisa e no momento correto dentro do processo médico. A integração de informações e a visão global precisam ser inseridas no contexto clínico.

Quando a velocidade de incorporação de tecnologias não acompanha a velocidade de inovação

Um dos maiores desafios atuais à prática da medicina de precisão é o acesso. Hoje, no Brasil, não há um processo específico nas agências reguladoras ou de avaliação de novas tecnologias em saúde para a medicina de precisão, porém, se o tratamento considerado de precisão estiver destinado a tratar uma doença rara, ele segue os critérios de fast track para droga órfã. Vanessa Teich, superintendente de economia da saúde do HIAE, acredita que é possível a criação de um racional de avaliação de benefícios de terapias oncológicas direcionadas por testes, com o objetivo de mostrar o valor de novas terapias dentro do contexto da medicina de precisão. “Quatro grandes fatores definiriam a custo-efetividade nesse protocolo: o preço do teste; o percentual de pacientes que apresenta a mutação na população; o ganho clínico que o novo tratamento traz em relação ao padrão e o custo do tratamento. Grandes ganhos em sobrevida, mesmo que o percentual da população com a mutação seja baixo, podem valer a pena. Para mutações de grande prevalência, mesmo com pequeno ganho clinicamente significativo, pode fazer sentido testar também.”, ela explica. Se as novas terapias tiverem o potencial de trazer mais ganho para os pacientes, elas terão mais probabilidade de ser aprovadas, tanto na obtenção de registro de comercialização, quanto na definição de preço, e de obter sucesso no processo de avaliação de reembolso nos sistemas de saúde público ou privado.

A adesão a protocolos pré-definidos de diagnóstico e tratamento é uma informação de extrema relevância nesse contexto. “Se conseguirmos garantir que protocolos estão sendo seguidos, que a medicina de precisão está sendo oferecida de fato aos pacientes que mais se beneficiarão, sem desperdícios ou indicações imprecisas, a negociação com as fontes pagadoras poderá ser facilitada.”, complementa Vanessa.

Ao hospital, cabe o papel de levantar dados sobre a performance dessas novas tecnologias, gerando informações que podem auxiliar em futuros processos de reembolso. Outra função que o hospital pode desempenhar é o de intermediador entre a operadora e o fabricante, nos acordos de compartilhamento de risco.

O Brasil no cenário de inovação

O Brasil se mostra hoje com grande potencial para desenvolvimento de soluções na área de biotecnologia aplicada à saúde, com atrativo mercado em potencial, capital humano qualificado e relevante público consumidor. Porém, como barreiras, ainda são identificadas questões relacionadas ao baixo investimento, falta de cultura empreendedora e de conhecimento profundo sobre o desenvolvimento de negócios, ou mesmo sobre todas as etapas necessárias para o desenvolvimento de produtos e registros na área.

Nesse contexto, o Einstein Biotech Innovation Program, lançado em novembro de 2021, traz como premissa promover o desenvolvimento do ecossistema de inovação e empreendedorismo em biotecnologia aplicada à saúde, capacitando empreendedores e pesquisadores para captação de recursos financeiros, negociação com parceiros estratégicos, visão de desenvolvimento de produto, conhecimento em questões regulatórias e estratégia de patenteabilidade. O programa conta ainda com mentores nacionais e internacionais, e acesso a laboratórios de alta tecnologia, que permitam o desenvolvimento do produto de ponta a ponta, nas etapas in vitro, pré-clínica e clínica. Para Camila Hernandes, head do Einstein Biotech Innovation Program, “Precisamos de parceiros que, como nós, acreditam que juntos podemos transformar o setor na América Latina. Esse é o futuro que queremos construir.”

O que podemos esperar da medicina de precisão

Usando o câncer de pulmão metastático como exemplo, Dr. Fernando se mostra otimista. “Em 2002, o estudo ECOG 1594 mostrava quatro opções de quimioterapia, com medianas de sobrevida global de 8 meses. No ano passado, um medicamento oral para mutação EGFR apresentou 38 meses de sobrevida, e com menor toxicidade.” De acordo com Dr. Edson, “Temos muito mais oportunidades do que barreiras ao uso da IA e Big Data. Talvez esteja faltando mais criatividade no uso dessas soluções na nossa realidade, no nosso contexto. E acredito que as soluções guiadas pela adoção da tecnologia para problemas relevantes e atuais falarão mais alto e ajudarão a vencer barreiras de custo e complexidade.”

Em um ponto todos concordam: a grande preocupação nesse processo de transformação, é que seja equânime. Se não houver o cuidado de melhorar a viabilidade no acesso dos pacientes às melhores opções de tratamento, podemos piorar a desigualdade social.


Este artigo foi produzido por Roberta Arinelli, Medical Director na ORIGIN Health Co. e Editora-executiva da MIT Technology Review Brasil.

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