Uma startup japonesa de publicação está utilizando o modelo de linguagem avançado da Anthropic, Claude, para ajudar na tradução de mangás para o inglês. Com isso, a empresa consegue lançar um novo título para o público ocidental em poucos dias, em vez dos dois a três meses que uma equipe humana levaria.
A Orange foi fundada por Shoko Ugaki, um verdadeiro entusiasta de mangás que, segundo o vice-presidente de produto Rei Kuroda, possui cerca de 10.000 títulos em casa. Agora, a empresa quer que mais pessoas fora do Japão tenham acesso a essas obras. “Espero que possamos fazer um ótimo trabalho para nossos leitores”, afirma Kuroda.
Porém, nem todos estão satisfeitos. A empresa irritou muitos fãs de mangás que enxergam o uso de IA para traduzir essa arte tradicional como mais uma ofensiva na batalha contínua entre empresas de tecnologia e artistas. “Por mais bem-intencionada que essa empresa possa ser, acho a ideia de usar IA para traduzir mangás de mau gosto e insultante”, diz Casey Brienza, socióloga e autora do livro Manga in America: Transnational Book Publishing and the Domestication of Japanese Comics.
O mangá é uma forma de quadrinho japonês que existe há mais de um século. Títulos de sucesso costumam ser traduzidos para outros idiomas e alcançam uma audiência global significativa, especialmente nos Estados Unidos. Alguns, como Battle Angel Alita ou One Piece, são adaptados para anime (versões animadas dos quadrinhos) ou produções live-action, tornando-se filmes de grande bilheteria ou sucessos da Netflix. O mercado de mangás nos EUA foi avaliado em cerca de US$ 880 milhões em 2023, com estimativas de crescimento para US$ 3,71 bilhões até 2030. “É um mercado de grande crescimento agora”, observa Kuroda.
A Orange quer conquistar uma parte desse mercado internacional. Apenas cerca de 2% dos títulos publicados no Japão chegam aos Estados Unidos, segundo Kuroda. Para a empresa, o problema é que a tradução de mangás feita por humanos leva muito tempo.
A solução da Orange envolve ferramentas de IA que automatizam várias etapas do processo de tradução, como extrair texto japonês dos painéis do mangá, traduzi-lo para o inglês, criar uma nova fonte, reposicionar o texto em inglês nos quadrinhos e revisar erros de tradução ou digitação. Combinando IA e supervisão humana, a empresa afirma ser capaz de traduzir um título em cerca de um décimo do tempo necessário para tradutores e ilustradores trabalhando manualmente.
“Honestamente, a IA comete erros”, admite Kuroda. “Às vezes ela interpreta mal o japonês. Erra também na arte. Por isso acreditamos que a combinação de humanos e IA é o que realmente importa.”
O mangá é uma arte complexa. As histórias são contadas por meio de uma combinação de imagens e palavras, que podem incluir descrições, vozes de personagens ou efeitos sonoros. Esses elementos podem aparecer em balões de fala ou espalhados pelas páginas, e sentenças inteiras podem ser divididas entre vários painéis.
Além disso, os mangás abrangem uma diversidade de temas e narrativas, como romances escolares, gangues e assassinatos, super-heróis, alienígenas e gatos. “Essa complexidade torna o trabalho de localização extremamente desafiador”, afirma Kuroda.
O processo da Orange geralmente começa com uma imagem digitalizada de uma página. O sistema identifica quais partes contêm texto japonês, copia e apaga esse texto dos painéis. Em seguida, os trechos são combinados em sentenças completas e enviados ao módulo de tradução, que não apenas traduz para o inglês, mas também rastreia onde cada fragmento estava na página original.
Como o japonês e o inglês têm ordens de palavras muito diferentes, os trechos precisam ser reorganizados, e o novo texto em inglês deve ser posicionado em locais distintos, sem comprometer a sequência das imagens.
“De modo geral, as imagens são a parte mais importante da história”, diz Frederik Schodt, tradutor premiado de mangás, que publicou sua primeira tradução em 1977. “Nenhuma linguagem pode contradizer as imagens, então não é possível ter a mesma liberdade que se tem ao traduzir um romance.”
A Orange testou vários modelos de linguagem, incluindo um desenvolvido internamente, antes de escolher o Claude 3.5. “Estamos sempre avaliando novos modelos”, diz Kuroda. “No momento, o Claude nos oferece o tom mais natural.”
O Claude também possui uma estrutura de agentes que permite a colaboração de sub-modelos para realizar tarefas complexas. A Orange utiliza essa estrutura para gerenciar as diversas etapas do processo de tradução.
A Orange distribui suas traduções por meio de um aplicativo chamado Emaqi (um trocadilho com “emaki”, os antigos pergaminhos ilustrados japoneses considerados precursores do mangá). A empresa também planeja atuar como prestadora de serviços de tradução para editoras americanas.
No entanto, a recepção entre os fãs nos Estados Unidos tem sido controversa. Durante o Anime NYC, uma convenção americana de anime realizada neste verão, a tradutora japonesa-inglês Jan Mitsuko Cash postou no Twitter: “Uma empresa como a Orange não tem lugar em uma convenção que hospeda o Manga Awards, que celebra mangás e profissionais da indústria. Se você concorda, incentive @animenyc a banir empresas de IA de expor ou realizar painéis.”
Casey Brienza compartilha a mesma opinião. “Trabalhos na indústria cultural, incluindo tradução, que no fim das contas trata de traduzir intenções humanas, e não meras palavras em uma página, já são mal remunerados e precários”, afirma. “Se é esse o rumo que as coisas estão tomando, só posso lamentar por aqueles que passarão de ganhar pouco a não ganhar nada.”
Outros também criticaram a Orange por economizar em aspectos importantes do processo. “O mangá usa texto estilizado para representar os pensamentos internos que o [protagonista] não consegue verbalizar completamente”, comentou outro fã no Twitter. “Mas a Orange não pagou um redator ou um letrista para recriar isso adequadamente. Eles também simplesmente ignoraram alguns textos.”
A Orange reconhece que a tradução de mangás é uma questão sensível, segundo Kuroda. “Acreditamos que a criatividade humana é absolutamente insubstituível, e é por isso que todo trabalho assistido por IA é rigorosamente revisado, refinado e finalizado por uma equipe de pessoas.”
A empresa também afirma que os autores cujos trabalhos foram traduzidos apoiam sua abordagem. “Estou genuinamente satisfeito com o resultado da versão em inglês”, diz Kenji Yajima, autor de Neko Oji: Salaryman reincarnated as a kitten! (Neko Oji: Um funcionário renascido como um gatinho!). “Como artista de mangá, ver meu trabalho compartilhado em outros idiomas é sempre emocionante. É uma chance de me conectar com leitores que nunca imaginei alcançar.”
Frederik Schodt, tradutor premiado de mangás, também vê um lado positivo. Ele observa que os Estados Unidos estão inundados de traduções feitas por fãs, muitas vezes de baixa qualidade. “O número de traduções piratas é enorme”, diz. “É como um universo paralelo.”
Ele acredita que o uso de IA para simplificar o processo de tradução é inevitável. “É o sonho de muitas empresas no momento”, afirma. “Mas vai exigir um investimento enorme.” Para Schodt, traduções realmente boas vão precisar de modelos de linguagem treinados especificamente em mangás. “Não é algo que uma pequena empresa conseguirá fazer sozinha.”
“Se isso será economicamente viável agora, é algo que ninguém sabe ao certo”, conclui Schodt. “Há muito exagero publicitário em torno disso, mas os leitores terão o julgamento final.
Por:Will Douglas Heaven
Will é editor sênior de IA na MIT Technology Review, cobrindo assuntos sobre novas pesquisas, tendências e pessoas por trás dela