Como a Geração Distribuída desafia modelos e altera o papel do consumidor
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Como a Geração Distribuída desafia modelos e altera o papel do consumidor

Brasil se apresenta como protagonista do mercado de GD, apesar dos desafios em conciliar expansão acelerada com modernização regulatória e técnica.

Imagine um cenário em que você decide quanto consome, produz e, até mesmo, compartilha da sua energia. Isso já é uma realidade em algumas partes do mundo. Com a expansão da Geração Distribuída (GD), os modelos centralizados começam a ser desafiados, ao mesmo tempo em que transformam o papel do consumidor. Surge, no entanto, um dilema: estamos diante de um empoderamento necessário ou de uma fragmentação que ameaça a estabilidade do sistema?

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Nesse contexto, Ignacio Romero, cofundador da consultoria Onred, aponta que a GD representa “uma mudança cultural essencial”. Para ele, “as grandes usinas não são suficientes para cumprir as metas climáticas. A energia distribuída permite que os usuários participem em massa da transição energética”. Após décadas de operação centralizada por grandes empresas, a geração distribuída protagoniza uma transformação no modo como a sociedade produz e consome energia.

O mercado de GD global foi avaliado em quase US$ 350 bilhões, no último ano, e deve ultrapassar os US$ 380 bilhões até o fim de 2025, segundo dados do Relatório de “Análise de Tendências, Participação e Tamanho do Mercado de Geração Distribuída” da Straits Research. O documento aponta, ainda, que para o período de previsão observado – entre 2025 e 2033 – a expectativa é de um crescimento médio para o setor de 10,9% ao ano.

O levantamento traz, também, informações sobre as regiões do mundo onde há expectativa pelo crescimento mais expressivo da Geração Distribuída. Diante da exigência por energia contínua voltada aos projetos de construção civil e infraestrutura, a região Ásia-Pacífico se apresenta como um dos principais vetores de expansão. Contudo, a GD tem assumido um papel importante como motor da transição energética na América Latina e o Brasil tem se colocado na dianteira desse processo. Números da Associação Brasileira de Energia Solar (ABSOLAR) indicam que, na última década, a Geração Distribuída nacional já atraiu R$ 74 bilhões em investimento, com mais de 125 mil novos sistemas conectados à rede. De acordo com o BI-GD da ANEEL, existem, hoje, mais de 3,7 milhões de sistemas de GD instalados. Em julho de 2015, eram menos de 1 milhão.

Apesar do cenário de avanço, a GD brasileira ainda enfrenta desafios relevantes tanto sob o aspecto econômico, quanto técnico e regulatório. Aumentos de tarifas para aqueles que ainda não tem acesso ao sistema, a intermitência das fontes renováveis e o estabelecimento do marco legal da microgeração e minigeração distribuída (Lei 14.300/2022), ainda exigem soluções mais equilibradas.

A consolidação de modelos de geração distribuída ao redor do mundo exige o enfrentamento de desafios estruturais que vão além da expansão tecnológica. Tornar esse sistema mais inclusivo, seguro e financeiramente sustentável passa por soluções que conciliem inovação, regulação e equilíbrio entre os diferentes agentes do setor. Nesse processo, observar experiências internacionais pode trazer aprendizados valiosos.

Do caos à coordenação: a integração bem-sucedida da GD no exterior

A experiência da Austrália com Geração Distribuída (GD) está entre os principais do mundo. Com início nos anos 2000, o projeto foi impulsionado por políticas de incentivo à energia solar fotovoltaica. Essa foi uma resposta adotada pelo Poder Público à crescente preocupação com as mudanças climáticas. De acordo com o grupo Climatebiz, formado por acadêmicos e pesquisadores que atuam na área de tecnologia verde e energia limpa, o país da Oceania recebe uma grande quantidade de radiação solar. Em média, são registrados de 3,8 a 6,3 horas de pico de sol por dia ao longo do ano – período em que a intensidade da luz solar atinge seu nível máximo e a produção de energia fotovoltaica se torna mais eficiente.

Diante desse cenário, o governo federal e os estados implementaram subsídios para a instalação de painéis solares residenciais, além de esquemas de feed-in tariffs (tarifas de incentivo, em tradução livre), a fim de garantirem remuneração aos consumidores que injetassem energia excedente na rede. Com forte adesão da população, o modelo encontrou terreno fértil especialmente nos subúrbios das cidades, locais onde havia mais espaço para instalação desses sistemas. Segundo dados da Australian Energy Regulator (AER) e do Clean Energy Regulator, o número de sistemas solares instalados ultrapassa os 3,6 milhões, o que faz da Austrália o país com a maior taxa de penetração de energia solar em telhados do mundo, com cerca de 1 em cada 3 residências equipadas com painéis.

A expansão da GD, embora expressiva, ocorreu inicialmente de forma descentralizada e pouco coordenada. Nos primeiros anos, a ausência de um planejamento integrado entre os operadores de rede, reguladores e governos estaduais gerou desafios técnicos relevantes, como o aumento da variabilidade na tensão da rede e problemas de estabilidade. À medida que o volume de geração solar crescia, surgiam limitações na capacidade de absorção e controle por parte das distribuidoras.

Esse processo de expansão revelou, também, um efeito colateral crítico ligado à GD: o curtailment. Esse fenômeno ocorre quando há redução ou até desligamento forçado da geração renovável por incapacidade da rede em absorver toda a energia produzida. Ele emerge, sobretudo, em contextos de alta penetração solar e baixa demanda – como nos períodos diurnos de menor consumo – e está diretamente relacionado à variabilidade da geração, aos limites técnicos das redes de distribuição e à ausência de mecanismos de coordenação entre os agentes do setor. Por lá, a combinação de radiação intensa e adesão massiva ao solar em telhados levaram ao estabelecimento de limites rígidos para exportação e à realização de cortes automáticos em dias de alta insolação.

Como solução, o governo australiano se viu obrigado a revisar seu modelo regulatório e ampliar o papel de órgãos como a Australian Energy Market Operator (AEMO), que passou a atuar na integração mais sofisticada da GD com o sistema elétrico central. Além disso, foi criado o Distributed Energy Integration Program (DEIP), um fórum colaborativo entre reguladores, empresas e sociedade civil com foco em acelerar a integração técnica, regulatória e econômica da geração distribuída.

A introdução de tecnologias como medidores inteligentes, sistemas de gerenciamento de energia doméstica e plataformas de resposta à demanda tornaram possível equilibrar melhor a Geração Distribuída com o consumo. Ao mesmo tempo, houve a implementação das Virtual Power Plants, conjuntos de pequenos geradores e baterias interligadas. As chamadas VPPs permitiram o uso coordenado dos recursos energéticos distribuídos na rede, contribuindo para a estabilidade do sistema. De acordo com o Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO), essas inovações “transformaram a GD de um problema técnico a uma solução estratégica para a transição energética”.

No entanto, o avanço da geração distribuída também trouxe desafios econômicos. Como o modelo tarifário tradicional australiano foi estruturado com base em receitas fixas cobradas via tarifas volumétricas (por kWh consumido), a redução da demanda de energia oriunda da rede causou desequilíbrios no custeio da infraestrutura elétrica. Isso levou ao chamado “espiral da morte das redes”, onde os custos fixos começaram a recair sobre um número menor de consumidores, elevando as tarifas para os que não adotaram GD.

Esse problema também foi levantado na pesquisa Distributional Effects of Net Metering Policies and Residential Solar + Storage Adoption, do MIT Center for Energy and Environmental Policy Research (CEEPR). Nesse estudo, Andrés Inzunza, gerente de consultoria de soluções e sustentabilidade da Engie Impact LATAM e ex-aluno do MIT CEEPR, e Christopher Knittel, professor de Economia Aplicada na MIT Sloan, investigam os impactos econômicos e de distribuição na adoção da GD combinados aos esquemas de medição líquida, nos diferentes modelos tarifários adotados nos Estados Unidos.

A partir dos dados de cerca de 100 mil moradores da cidade de Chicago, os pesquisadores simularam diferentes níveis de penetração de sistemas solares e de armazenamento, além de outras configurações tarifárias e regimes de net metering, com o objetivo de avaliar de que forma essas variáveis afetam a conta de luz dos consumidores e a redistribuição de custos dentro do sistema elétrico. Dessa forma, os resultados apontaram que os consumidores, sob os regimes net metering e com base no consumo, que adotaram os recursos energéticos distribuídos reduziram em até 71% seus gastos com energia.

Por outro lado, essa economia ocorre em detrimento dos consumidores que não adotam tais tecnologias e acabam arcando com parte dos custos fixos da rede. Além disso, o estudo aponta que quanto maior a adesão, maior o impacto nas contas dos consumidores não adotantes desse sistema: “em cenários de alta penetração (45% de adesão), os não adotantes podem ver suas contas aumentarem em até 18%”, diz a pesquisa.

GD no Brasil: avanço acelerado e desordenado

Para além dos investimentos – apresentados no início desse artigo -, o Brasil se posiciona como um dos protagonistas globais na expansão da Geração Distribuída (GD), devido aos aspectos climáticos. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o país apresenta um dos maiores índices de radiação solar no mundo, assim como a Austrália. Dados apontam para uma média anual de 5,5 horas por dia de pico solar, podendo apresentar variações positivas significativas em regiões como o Nordeste e o Centro-Oeste. Essa vantagem natural tem favorecido a rápida expansão da GD, majoritariamente solar, refletindo o crescente protagonismo do consumidor na matriz energética.

Apesar desse crescimento expressivo, a expansão da GD brasileira tem ocorrido de maneira desordenada. A concentração geográfica dos sistemas revela desigualdades regionais no acesso às tecnologias, e a infraestrutura de distribuição em algumas áreas – especialmente no Norte e em regiões remotas – ainda não está preparada para absorver fluxos de energia da rede para o consumidor e vice-versa. Além disso, a questão tarifária também se apresenta como um desafio, como mencionado anteriormente.

Entre as empresas que vêm buscando soluções inovadoras para esses dilemas, destaca-se a Energisa. Com 120 anos de atuação, o grupo desempenha um papel estratégico na modernização da distribuição de energia e no desenvolvimento de soluções regulatórias adaptativas. Através da (re)energisa, a empresa desenvolve projetos voltados à transição energética, com foco em GD, Mercado Livre de Energia e serviços para economia de baixo carbono.

Dentre as iniciativas para o mercado de Geração Distribuída está o sandbox tarifário, chamado de “Conta Inteligente”, conduzido em parceria com i4 Economic Regulation e um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e fiscalizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O projeto é voltado aos consumidores de baixa tensão das classes comercial e residencial, que vão testar dois modelos tarifários: a “Tarifa Melhor Hora” (com variação do custo do consumo de energia de acordo com a hora do dia) e o modelo convencional.

“O projeto piloto está sendo implementado em São Paulo, na Paraíba e no Tocantins. Vamos avaliar um grupo com pouco mais de mil consumidores e mais um grupo de controle para que possamos analisar se esse sinal econômico realmente consegue induzir uma mudança de comportamento desses consumidores. Porque não basta ter uma modernização técnica do sistema, se ainda usamos um sistema de tarifação arcaico. É preciso modernizá-lo também”, afirmou Fernando Maia, Vice-presidente de Regulação e Relações Institucionais da Energisa.

Em relação ao curtailment, o Brasil já começa a vivenciar um cenário semelhante ao australiano. Segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), em 2024, até 3% da energia renovável injetada foi cortada por sobrecarga nas redes — chegando a 50% em determinadas horas, em alguns parques do Nordeste. De acordo com o relatório de 2025 do Grupo de Trabalho do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico, do qual o ONS participa, as projeções são ainda mais preocupantes: se nenhuma medida for tomada, o curtailment médio da geração solar poderá ultrapassar 20% entre 2026 e 2029.

Fernando Maia alerta que o crescimento desordenado da GD tem se tornado uma ameaça ao sistema nacional. De acordo com o executivo da Energisa, geradores de energia renovável – em especial a solar – do Nordeste e do norte de Minas Gerais são os mais afetados por esse cenário.

“Chegamos em um ponto em que as consequências não são (apenas) para as distribuidoras de energia elétrica, mas para todo o sistema, principalmente para os geradores de energia renovável, como a solar, que ficam, na sua grande maioria, no Nordeste e, também, no norte de Minas. (Eles) estão sofrendo o corte da sua geração entre 9:30h e 15:30h. Estão sendo impedidos de gerar energia porque a micro e mini GD injetam (energia) descontroladamente no sistema”, reduzindo a carga e também porque estamos em um cenário de sobre oferta de energia no sistema.

Para enfrentar esse desafio, estão em discussão medidas como a realização de leilões para a expansão da malha de transmissão, o aprimoramento dos mecanismos de corte proporcional aplicáveis à GD e a criação de sinalizações econômicas que estimulem o autoconsumo nos momentos de maior geração, além das experiências já citadas de indução do comportamento do consumidor por meio de sinais tarifários. Essas iniciativas buscam reduzir o desperdício, aliviar a pressão sobre a rede e preservar a viabilidade econômica da geração distribuída no país.

Um exemplo de ação que pode ajudar na melhoria desse cenário está sendo desenvolvido pelo Grupo Energisa, em Palmas, no Tocantins. A Virtual Power Plant (VPP) funciona como uma solução de armazenamento da energia gerada pelas placas e que não é consumida no horário de maior incidência solar e menor consumo, oferecendo flexibilidade e confiabilidade ao sistema. O projeto desta planta virtual de geração e gestão de energia é desenvolvida em uma parceria das área de Inovação, Regulatório e (re)energisa – marca do Grupo que atua na Geração Distribuída e no Mercado Livre de Energia.

“Com investimento superior a R$ 20 milhões via programa de P&D da Aneel, o Grupo Energisa testa a VPP, que é inovadora, com o objetivo de viabilizar novas conexões de geração distribuída, aumentar a resiliência da rede, postergar investimentos em infraestrutura e subsidiar futuras evoluções regulatórias”, explica o vice-presidente de Soluções Energéticas do Grupo Energisa e líder da (re)energisa, Guilherme Perdigão.

Os testes já demonstram ganhos como a estabilização da oferta e da demanda, os benefícios para reguladores, distribuidoras e consumidores, além do potencial de replicação e monetização da solução.

O progresso da Geração Distribuída no Brasil tem como desafio central a criação de um marco regulatório robusto e flexível, capaz de promover a coexistência entre diferentes fontes e perfis de consumidores. Como discutido no artigo “Adição energética e o desafio da integração de novas fontes”, o futuro não será feito de substituições abruptas, mas de adições complexas de fontes solares, eólicas, hidráulicas e térmicas.

Nesse novo arranjo, o consumidor deixa de ser um agente passivo e passa a integrar uma cadeia energética mais complexa e interdependente. O protagonismo do usuário, portanto, não se resume à produção de energia, mas à sua atuação ativa em um sistema mais dinâmico, descentralizado e colaborativo.

Quanto aos formuladores de políticas públicas para o setor, estes devem visar uma regulação que reconheça a multipotencialidade da matriz brasileira, incentive a inovação sem onerar excessivamente os consumidores mais vulneráveis e promova uma governança energética capaz de conciliar crescimento, inovação, estabilidade e inclusão.

Por fim, a transição energética deve buscar uma construção gradual, baseada em somas inteligentes que envolvam diretrizes técnicas, políticas e sociais. Nesse ponto, a Geração Distribuída deve ser compreendida não como um fim em si mesma, mas como parte estratégica de um novo pacto energético nacional.

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