Oferecido por
A paulistana Juliene Fernandes nasceu sem a pele do joelho para baixo. Apesar dos sinais evidentes, o diagnóstico de Epidermólise Bolhosa Simples (EBS) chegou após um mês de vida. A EB é uma doença genética rara e hereditária, em que o paciente nasce com uma mutação em uma proteína importante para a ligação das camadas da pele, fazendo com que o órgão fique suscetível a traumas e lesões. Para essas pessoas, o processo de cicatrização tende a ser lento. Quando os machucados ou bolhas se tornam crônicos, aumentam as chances de infecção generalizada e de surgimento de câncer de pele.
Hoje fonoaudióloga e com 33 anos de idade, Juliene relata que o maior impacto na sua rotina é na locomoção, pois ela tem dificuldade para caminhar. No entanto, a doença hereditária deixou uma marca muito mais profunda na vida da paciente: a morte do filho Miguel, apenas nove dias após o nascimento.
“Eu digo que fui vítima da falta de conhecimento médico. Meu filho nasceu em 2015 com uma bolha em cada calcanhar e a médica, quando viu, se assustou. Eu disse que era EB, só que foram oito horas de parto e eu desmaiei. Quando acordei, tinham levado ele para a incubadora com febre de quase 40 graus. Não era para ele ter ido para a incubadora. Colocaram um acesso intravenoso e foram administrados vários antibióticos muito fortes, como se fosse uma infecção. Eu não fui ouvida em nenhum momento”, lamenta.
Com a filha, que hoje tem 15 anos, a história foi diferente, mesmo que a jovem ainda tenha grandes obstáculos para sobrepor enquanto pessoa com doença rara. Como vice-presidente da DEBRA Brasil, organização que auxilia pessoas com Epidermólise Bolhosa, Juliene abraçou a missão de conscientizar e disseminar conhecimento. A entidade coordena um cadastro nacional de EB e tem o registro de mais de mil brasileiros com a doença, embora estime-se que o número real chegue ao dobro disso.
“O que eu vejo é que é muito difícil conseguir tratamento adequado, ter acesso aos curativos etc. Eu vejo mães com crianças sem tratamento, sem um norte. As famílias do interior têm muita dificuldade, às vezes chegam no pronto-socorro com a criança e ninguém sabe o que fazer. O que nós queremos é ter acesso a todo e qualquer tratamento disponível”, destaca Juliene.
A Epidermólise Bolhosa ainda é uma doença sem cura conhecida, mas que pode e deve ser acompanhada de forma multidisciplinar com tratamentos e curativos especiais para controle das feridas, alívio da dor e impedimento do avanço de lesões graves que possam atingir mucosas e órgãos internos, agravando o quadro de saúde do indivíduo portador dela.
Pesquisas para tratar Epidermólise Bolhosa avançam
No Instituto de Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein, está em fase experimental um estudo que deve beneficiar pacientes diagnosticados com EB Distrófica Recessiva. Segundo a pesquisadora Priscila Matsumoto Martin, que atua na investigação, esse é o tipo mais notificado no Brasil, devido a sua gravidade.
“Há mais de 20 proteínas que já foram descritas por terem envolvimento com os diferentes tipos de Epidermólise Bolhosa. Dependendo da proteína, a doença ganha uma classificação: Epidermólise Bolhosa Simples (EBS); Epidermólise Bolhosa Juncional (EBJ); Epidermólise Bolhosa Distrófica (EBD); ou Síndrome de Kindler. A nossa pesquisa, no momento, é bem focada em um grupo de pacientes com EB Distrófica Recessiva que tem uma mutação específica no gene do colágeno VII”, explica. A Epidermólise Bolhosa Distrófica apresenta sintomas graves: as bolhas são profundas e se formam entre a derme e a epiderme, causando cicatrizes e, muitas vezes, perda da função do membro. É uma das formas que deixa mais sequelas.
O tratamento proposto usa terapia gênica em duas frentes de trabalho. Uma delas é a criação de um enxerto com pele artificial produzida por meio da técnica de edição genética com a tecnologia de Editor de Bases (do inglês, Base Editor). O objetivo é fazer a conversão da alteração genética das células do paciente, ou seja, retirar uma amostra de células do paciente, manipular geneticamente em laboratório, montar uma pele artificial e fazer um enxerto em áreas afetadas para que elas tenham capacidade de se regenerar. “A intenção é corrigir a pele para ficar saudável, então o colágeno que não é sintetizado por essas pessoas vai passar a ser produzido na pele naquele ponto. Significa que a pessoa consegue tratar uma ferida, mas não significa que ela não vai mais ter feridas ao longo da vida. Futuramente, também pensamos em desenvolver uma pomada que possa ser aplicada diretamente na pele afetada e que consiga entregar as ferramentas para modificar as células no próprio paciente”, conta a pesquisadora.
Vyjuvek é o nome do medicamento desenvolvido pela farmacêutica Krystal Biotech e que foi a primeira terapia gênica para o tratamento de EB aprovada pela Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória norte-americana. A aprovação ocorreu em agosto de 2023. Os dados apresentados pela empresa apontam que este tratamento, baseado em uma pomada contendo as ferramentas de edição gênica, reduz em 50% o tempo de fechamento das feridas, mantendo-as assim por um período de até um ano, o que é considerado um resultado muito positivo.
A outra abordagem da pesquisa do Einstein usa as mesmas ferramentas de edição genética para tentar produzir uma molécula de colágeno funcional que consiga ser sintetizada sem o pedaço da proteína que está mutada. “Temos prova de conceito de que isso funciona. Adicionaríamos uma modificação para a célula pular esse trecho do gene que tem a mutação, conseguindo produzir um colágeno que mantenha suas funções, mesmo sem um pedaço. É interessante pensando em escalonamento da estratégia para outras mutações da EB”, afirma a cientista do Einstein.
Não há ainda perspectiva de quando o Instituto deve avançar para os testes clínicos no projeto, que tem financiamento do Ministério da Saúde por meio de edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contudo, Priscila destaca a importância do estudo no cenário das doenças raras. “Há sete anos, não víamos nenhum estudo clínico como essa pomada que foi aprovada pela FDA. Então, há uma expectativa muito grande de que, com essas novas tecnologias e investimento em pesquisa, possamos ter mais produtos sendo aprovados nos próximos 10 anos. A Epidermólise Bolhosa ainda é muito desafiadora em termos de cura. Não estamos pensando nisso com esse projeto, mas sim em uma melhoria de qualidade de vida e ainda uma maneira importante de evitar carcinoma a longo prazo e feridas que podem formar sepse [conjunto de manifestações graves em todo o organismo produzidas por uma infecção]”, destaca.
Filantropia de risco alavanca busca pela cura
Filantropia de risco é o nome dado ao movimento que vem crescendo no mundo de negócios financeiros para nortear financiamentos de impactos sociais e ambientais. Basicamente é uma forma de filantropia que se concentra no financiamento de organizações e/ou programas em estágio inicial, porém com potencial de alto impacto. É diferente da filantropia tradicional, porque envolve mais que apenas doação: os filantropos engajam, fornecendo orientação, conselhos e, no caso de pessoas públicas e influentes, usam isso para atrair outros talentos para determinadas causas. A filantropia de risco também se utiliza do Venture Capital (VC), quer dizer, os doadores assumem uma participação acionária, geralmente minoritária, mas que lhes dá um incentivo financeiro.
O modelo é a base da EB Research Partnership, a maior organização global dedicada a financiar pesquisas para tratar e curar a Epidermólise Bolhosa. A EBRP busca ativamente os projetos de pesquisa mais promissores por meio de um conselho consultivo científico. Foi assim que a organização fez um grande aporte de investimento na farmacêutica Krystal Biotech, acelerando o desenvolvimento da pomada Vyjuvek.
Sob a liderança do atual CEO, Michael Hund, a EBRP saiu de um cenário de dois para mais de 40 ensaios clínicos considerados promissores para a doença rara. No final de 2023, durante o encontro Science in Society, da Chan Zuckerberg Initiative (fundada em 2015 para ajudar a resolver desafios como a erradicação de doenças), Hund destacou que, diferente de outras doenças raras, a ciência fez descobertas relevantes sobre a Epidermólise Bolhosa, portanto é preciso impulsionar esse conhecimento.
“Nós sabemos que é uma doença monogênica, causada por uma mutação genética no gene colágeno 7 (COL7A1). Temos nosso alvo certo, temos a direção de onde precisamos ir, sabemos como resolver, só precisamos acelerar o caminho para alcançar esse resultado”, destacou o executivo na ocasião.