DAO: um novo modelo de organização
Governança

DAO: um novo modelo de organização

A descentralização permitida pela tecnologia Blockchain permitiu a formatação das Organizações Autônomas Descentralizadas. Quais seus efeitos sobre o ambiente regulatório e os desafios para a implementação no mundo dos negócios?

Em 2008, quando da publicação de seu whitepaper, pouco se imaginava o impacto das transformações que o Bitcoin e, consequentemente, a tecnologia Blockchain gerariam ao mercado, não só em relação à transferência digital de valores, como na forma de se fazer negócios, interagir e gerir organizações.

Essas transformações são decorrentes da descentralização permitida pelo emprego da tecnologia Blockchain. É justamente em razão da utilização desta tecnologia que hoje costuma-se dizer que estamos entrando na era da Web 3.0, na qual passaremos a experimentar, cada vez mais, plataformas e serviços construídos sob a lógica da descentralização, baseados na Blockchain.

Ao analisar a estrutura por trás do Bitcoin, verifica-se que o sistema desenvolvido por Satoshi Nakamoto consiste em um conjunto de regras pré-programadas, as quais são executadas automaticamente, uma vez preenchidos os seus requisitos, sendo permitido a todos os participantes da rede auditar as regras a qualquer tempo, além de sugerir alterações, observadas as regras de consenso pré-definidas no sistema.

Assim, nota-se que a rede bitcoin consiste na primeira organização autônoma descentralizada, em que inexiste a figura de um ente de controle central responsável por definir e executar suas regras. A sua arquitetura se mostra como o primeiro experimento viável de uma organização descentralizada, de forma autônoma, não havendo um único grupo de pessoas responsáveis pelo seu funcionamento, ficando a gestão da rede a cargo de todos os seus participantes, sem divisões hierárquicas.

Diante dessas características, em 2013, Vitalik Buterin, o criador da rede Ethereum – principal rede utilizada para o desenvolvimento e utilização de aplicações descentralizadas –desenvolveu o conceito de uma entidade organizacional descentralizada e autônoma que denominou de DAC (“Corporações Autônomas Descentralizadas” do inglês Decentralized Autonomous Corporation). A ideia de Vitalik era desenvolver companhias que atuassem de forma distribuída, com controle, gestão e decisões distribuídos entre os participantes da organização sem hierarquia.

O conceito de DAC foi sendo aprimorado ao longo dos anos, até que passou a ser intitulado de DAO (“Organizações Autônomas Descentralizadas” do inglês Decentralized Autonomous Organization). Atualmente, entende-se por DAO uma organização que funcione sem gerenciamento hierárquico, pautada em regras definidas por meio de Smart Contracts, em que os participantes exercem seus direitos por meio de tokens emitidos pela própria organização.

Em regra, as DAOs funcionam sob códigos abertos, possibilitando a qualquer pessoa interessada auditar seus códigos de programação e entender a sua organização de forma clara. Pela lógica da descentralização, as decisões em uma DAO ocorrem por votação dos detentores de tokens de acordo com suas regras de consenso. Assim, o protocolo da DAO deve estabelecer o quórum para as tomadas de decisão, de forma que a execução de determinadas atividades dependerá do voto afirmativo dos detentores de uma certa quantidade de tokens.

Como vimos, a ideia de uma DAO é possibilitar a participação direta dos detentores de tokens em todas as decisões da organização, inclusive permitindo sugerir questões para serem levadas para votação. Com o intuito de evitar a propositura de questões de pouca relevância ao negócio, muitas DAOs estabelecem que a submissão de questões para votação dependerá do pagamento de tokens pelo interessado.

Inegável que as DAOs são mais um passo na evolução dos tipos de organização, possibilitando, por meio do emprego da tecnologia Blockchain a participação direta em processos decisórios (micro e macro) e a estruturação de organizações efetivamente globais e distribuídas.

Apesar das organizações autônomas descentralizadas demonstrarem um enorme potencial para inúmeras estruturas corporativas, a sua implementação, do ponto de vista jurídico/regulatório, não é tão simples quanto a ótica tecnológica.

Na prática as DAOs têm enfrentado muitas dificuldades no âmbito operacional, visto que a maioria das pessoas e empresas ainda não estão preparadas e inseridas no âmbito da web 3.0 e do universo dos tokens, trazendo inúmeras dificuldades de adaptação de uma DAO frente a pequenas e simples necessidades de uma corporação comum, tal como a contratação de colaboradores, abertura de contas em bancos ou, ainda, o recolhimento de tributos.

Como sabemos, o ordenamento jurídico não foi estruturado imaginando a possibilidade de se criar uma organização com controle e administração distribuídos, sem endereço fiscal, com regras automáticas e sem uma figura e/ou um grupo de figuras centrais responsáveis pela gestão e administração da organização. Por essa razão, as DAOs têm experimentado todo tipo de dificuldade no relacionamento com outras organizações, pessoas e autoridades.

Visando trazer algum grau de segurança jurídica às DAOs, em 2021, o Estado do Wyoming nos Estados Unidos, foi a primeira jurisdição a aprovar uma legislação específica às organizações autônomas descentralizadas. De acordo com o texto legal, as DAOs podem ser registradas junto aos órgãos do governo de Wyoming, sendo equiparadas às sociedades limitadas LLC (Limited Liability Company), com a designação de LAO (Limited Liability Autonomous Organization).

Ainda, na referida jurisdição, para serem legalmente reconhecidas, as DAOs precisam identificar em seus estatutos sociais os Smart Contracts utilizados para controle da DAO, bem como informar qualquer atualização ou alteração nos Smart Contracts utilizados, a fim de possibilitar a todos os interessados de participar de tal organização conhecerem, em detalhe, todas as regras e condições a que estarão sujeitos.

Não obstante o reconhecimento legal das DAOs, essa modalidade de organização continua enfrentando dificuldades no âmbito federal, uma vez que a Securities and Exchange Commission – órgão equivalente à CVM nos Estados Unidos – impediu o registro da emissão de tokens por DAOs legalmente constituídas e reconhecidas pelo estado de Wyoming.

No Brasil, assim como na maioria dos demais países, as DAOs não possuem um reconhecimento legal, de forma que a sua implementação não será reconhecida como uma organização legalmente válida, considerando a legislação vigente. Além disso, levando em conta o atual ordenamento jurídico brasileiro, seria necessário enfrentar a questão da responsabilidade quanto aos negócios e atividades desempenhadas por uma DAO, uma vez que inexiste uma figura central de controle.

Outro desafio para estruturação de uma DAO no país reside na natureza jurídica dos tokens de governança por ela emitidos. A rigor, os tokens emitidos por uma DAO, que conferem ao seu detentor poder de voto nas deliberações e direito de participação nos eventuais resultados dos negócios desenvolvidos, independente da forma em que tais resultados são distribuídos — seja na forma de tokens ou de moeda fiduciária —, podem ser caracterizados como valores mobiliários, na forma do artigo 2º da Lei nº 6.385/76.

Assim, ainda que ocorra o reconhecimento da validade jurídica das DAOs, como ocorrido em Wyoming, faz-se necessária uma definição quanto à possibilidade de oferta/distribuição de seus tokens, uma vez que a atual legislação de mercado de capitais traz algumas obrigações incompatíveis com o processo de tokenização por meio da tecnologia Blockchain, o que será tema de experimentação e análise da CVM por meio do Sandbox Regulatório como já abordado no artigo “Tecnologia e Regulação Impulsionando a Inovação no Mercado de Capitais”.

Apesar do enorme potencial das DAOs, a princípio não são todos os tipos de negócios que comportariam uma descentralização e distribuição do processo decisório sem divisões hierárquicas, sob o risco de redução da agilidade da organização e aumento da burocracia na gestão do negócio. Contudo, para modelos de negócio que não dependam de decisões operacionais diárias, a DAO poderia se mostrar um excelente mecanismo, na medida em que, por meio da mecânica de tokens, poderia facilitar o processo de captação de recursos, além de permitir maior engajamento dos investidores por meio da participação direta nas tomadas de decisão.


Este artigo foi produzido por Rodrigo Borges, Advogado, Fintech Specialist pela Universidade de Oxford, Membro fundador da Oxford Blockchain Foundation e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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