Oferecido por
Calorias gastas em um exercício físico, batimentos cardíacos, quantidade de horas em uso de um equipamento eletrônico e tempo de produtividade são exemplos de monitoramento incorporados à rotina de parte da população brasileira. Atualmente, basta ter em mãos hardwares comuns, como smartwatches e smartphones, para captar um arsenal de informações valiosas para a saúde individual.
A possibilidade de acompanhamento da rotina baseada em dados é fruto da acessibilidade trazida pelo Big Data. O conceito está presente há mais de duas décadas no mundo, mas é reinventado constantemente para que se possa analisar informações e utilizá-las de maneira cada vez mais inteligente, eficiente e, principalmente, real.
Os relógios inteligentes já são capazes de avisar quando há riscos relacionados à ocorrência de batimentos cardíacos fora da normalidade com base na análise dos dados somada a metodologias preditivas. Nesse caso, o alerta é uma oportunidade para o usuário tomar iniciativas de prevenção e tratamento. Esse benefício não é apenas individual, mas pode – e deve – ser coletivo.
A coleta de dados de usuários de uma mesma cidade, por exemplo, torna possível uma análise sobre a probabilidade de infarto em determinada população. Assim, o dado se transforma em informação estratégica e pode preparar o sistema de saúde a partir de medidas como a realocação de recursos financeiros e humanos, além de consolidar a necessidade de políticas públicas específicas, como de conscientização sobre doenças cardíacas, fatores de risco e hábitos saudáveis.
Nessa jornada, um acessório tecnológico, muitas vezes visto apenas como bem de consumo, ganha espaço como uma ferramenta de monitoramento de necessidades de saúde de uma população. Essa é a revolução dos dados.
O Big Data transformou o modo como entendemos e lidamos com a saúde e, nessa área, também tem consonância com uma terminologia específica: dados de vida real ou real world evidence (RWE).
Protagonismo brasileiro
De maneira geral, a América Latina tem despendido um esforço significativo para disponibilizar fontes de dados que subsidiem a tomada de decisão em saúde. A RWE é utilizada em diferentes setores da saúde, como na avaliação de tecnologias em saúde (ATS), na regulação, na farmacovigilância, no financiamento de novas tecnologias e nas negociações do mercado.
Um estudo realizado pela Takeda Brasil demonstra que há protagonismo do Brasil no cenário latino-americano, com mais de 50 sistemas de informação em saúde listados na literatura que trabalham de forma autônoma ao Departamento de Informática do SUS (DataSUS). Esses conjuntos de dados estruturados, compreendendo bases distintas, cumprem diferentes propósitos e consolidam a informação de cerca de 150 milhões de brasileiros que são atendidos no sistema.
O diretor-executivo de Acesso ao Mercado e Public Affairs da Takeda, Eduardo Almeida, reforça que o grande diferencial do Brasil é a disponibilidade de um grande volume de informações em plataformas de acesso aberto.
“O DataSUS é o maior exemplo de fonte de dados de mundo real do Sistema Único de Saúde. Além disso, bases de dados de vigilância epidemiológica, como as relacionadas ao registro compulsório de algumas doenças, como Dengue e Covid-19, são importantes referências para o controle e construção de políticas públicas”, avalia.
Por outro lado, uma das principais barreiras identificadas é a falta de informações clínicas capazes de responder a questões relacionadas à efetividade de tratamentos disponíveis no país, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS). O executivo também destaca a necessidade de organização de dados da saúde suplementar.
“Sistemas informatizados e universais de prontuários eletrônicos estão amplamente em discussão no Brasil, sobretudo após a criação da Secretaria de Saúde Digital no Ministério da Saúde. Além disso, aprimorar a comunicação entre as bases de dados, como SIA SUS, SIM, SIH SUS, pode ajudar na construção de respostas alternativas de curto a médio prazo. Por fim, gostaria de destacar a importância de termos um serviço único de dados que poderia reunir informações da saúde suplementar, porque hoje ainda há poucos dados disponíveis das operadoras de saúde”, analisa o diretor.
Um exemplo do uso de RWE no país é um estudo recente com dados provenientes do Sistema de Informações Hospitalares (SIH), do DataSUS, que demonstrou redução da taxa de hospitalizações de uma tecnologia de segunda linha em relação à outra, de primeira linha, no tratamento de esclerose múltipla, considerada uma doença rara. O tratamento de segunda linha tem taxa anualizada inferior ao tratamento de primeira linha.
Os dados foram obtidos por meio de uma descrição de padrões de tratamento e seleção dos coortes para avaliação de efetividade. Foram considerados 2.876 padrões e comparados por meio de técnicas de cálculo da probabilidade (escore de propensão e ponderação pela probabilidade inversa).
O então diretor-executivo Rafael Fortes, que atuou na implementação do processo de excelência em avaliação de tecnologia em saúde da Takeda e hoje responsável pela unidade de negócios da Oncologia, destaca a atuação da companhia nos processos de incorporação de medicamentos para tratamento de doença de Fabry, no SUS, e angioedema hereditário, na saúde suplementar.
Adicionalmente aos ensaios clínicos randomizados foram apresentados nos referidos processos de incorporação dados de vida real junto aos dossiês clínicos submetidos à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) – fórum responsável por recomendar ou não a oferta de medicamentos no sistema público – e à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que define o rol de procedimentos e eventos de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde.
Em novembro de 2023, a equipe da Takeda participou de uma audiência qualificada com representantes da agência de avaliação de tecnologias em saúde do Reino Unido (NICE) e do Ministério da Saúde da Arábia Saudita para compartilhar a experiência nesses dois processos de incorporação. O encontro aconteceu durante o ISPOR Europe, um dos principais eventos mundiais de economia da saúde, realizado em Copenhague, na Dinamarca.
“A Takeda apresentou na ISPOR dois cases de sucesso de uso de dados de vida real em avaliação de tecnologia em saúde que contribuíram para a recomendação positiva da incorporação dos produtos, um no mercado público e outro no privado. Isso demostra o quanto temos inovado no uso de dados de vida real nas últimas submissões e aprovações de reembolso por parte da Conitec e da ANS”, comenta Rafael.
Ampliação do uso de dados de vida real
Para que a análise de dados se transforme em evidência científica, é preciso construir diretrizes e um calabouço regulatório para conduzir a RWE seguindo orientações jurídicas e éticas, com padrões consolidados de análise e recursos humanos capacitados para que esses dados não sejam enviesados.
Se utilizados de maneira correta, dados de vida real podem ser vantajosos de diversas maneiras: quando aplicados como base para estudos clínicos; para auxiliar na tomada de decisão de protocolo de tratamento; para fornecer novas informações para doenças raras ou negligenciadas; para trazer maior segurança e controle de farmacovigilância; além de levarem em conta as diferenças regionais e as informações individuais como as diferenças socioeconômicas, culturais e o impacto delas na assistência à saúde e qualidade de vida.
Hospitais, órgãos de avaliação de tecnologia em saúde e agências regulatórias já reconhecem a importância desse nível de evidência em situações pontuais e possuem diretrizes específicas para seu uso. As áreas terapêuticas que têm utilizado dados de vida real na tomada de decisão em saúde estão geralmente relacionadas a condições crônicas como oncologia, neurologia e reumatologia.
As doenças raras também são avaliadas com apoio desse recurso devido a dificuldades éticas por trás da realização de ensaios com essas populações. Com um banco de dados, é possível entender mais sobre a jornada do paciente e até encontrar soluções de diagnósticos, tratamentos mais efetivos, novos protocolos e diretrizes para a ciência. Trata-se de uma forma de deixar no passado a análise de casos isolados para ampliar o olhar para situações e padrões convergentes.
Lacunas regulatórias
Apesar de a metodologia de captação, avaliação e valorização de utilização desses serem reconhecidas, atualmente, os dados de vida real são classificados de força menor quando comparados a estudos clínicos tradicionais ou a uma revisão sistemática em situações como a de avaliação de incorporação de tecnologias nos sistemas de saúde.
A Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora norte-americana, criou um programa para avaliar o uso potencial de RWE e apoiar a aprovação de uma nova indicação para um medicamento já aprovado ou para ajudar a apoiar ou satisfazer a pós-aprovação de medicamentos requisitos de estudo.
A FDA aponta que a metodologia vem sendo utilizada de forma positiva para monitorar e avaliar a segurança pós-comercialização de medicamentos aprovados, porém, o uso para apoiar a eficácia em fase estudos é ainda limitada.
Em 2017, o Ministério da Saúde publicou uma diretriz de avaliação de desempenho de tecnologias em saúde, propondo a reavaliação do desempenho de tecnologias incorporadas utilizando estudos de vida real, de forma a esclarecer a efetividade clínica e auxiliar na tomada de decisão quanto à manutenção da tecnologia ou seu desinvestimento dentro do sistema público.
Contudo, as iniciativas regulatórias ainda têm potencial de serem exploradas e unificadas em uma diretriz global. Em artigo publicado na MIT Technology Review Brasil, Gustavo Mendes, diretor de Assuntos Regulatórios, Qualidade e Ensaios Clínicos no Butantan, explica que há ainda divergências sobre o conceito e sobre as terminologias utilizadas para caracterização de dados de vida real entre as agências reguladoras do mundo.
“Utilizar dados de vida real para decisões regulatórias nada mais é do que gerar evidências sobre a efetividade ou segurança de um produto a partir da análise dessas informações. No entanto, várias lacunas precisam ser solucionadas para que, nesse processo, exista a confiabilidade exigida pela ciência. Com o avanço tecnológico, a coleta de informações passou a ser mais simples, mas também menos controlada sob a ótica da pesquisa”, escreveu.
De acordo com o pesquisador, quando a tecnologia de dados surgiu, a produção desse tipo de evidência ficava restrita ao monitoramento feito por desenvolvedores e pesquisadores, mas, especialmente após a pandemia a pandemia da Covid-19, o conceito ganhou outra dimensão.