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Uma premissa brilhante do DeFi, ou finanças descentralizadas (um termo que abrange criptomoedas e projetos de blockchain relacionados à troca de valores) é que, ao distribuir e automatizar operações e remover o poder de intermediários, como bancos, pode oferecer um sistema mais resiliente às forças globais, capaz de sobreviver a eventos que castigam os mercados tradicionais, como guerras e recessões econômicas. Alguns especialistas do setor até sugeriram que as criptomoedas poderiam ser uma boa aposta de investimento para superar uma potencial recessão.
Agora, essa teoria da resiliência está sendo posta à prova em nosso atual clima financeiro precário, com o mercado tradicional caindo drasticamente e as ações das grandes empresas de tecnologia despencando. E os resultados não são bons.
O Bitcoin e o Ethereum despencaram em meados de abril e não foram os únicos. À medida que caíam as ações de empresas de tecnologia “Web2”, como Amazon e Netflix, as ações da Coinbase, uma das três principais plataformas de troca de cripto, e a Robinhood, que apoia a negociação de moedas digitais, também caíram. Até mesmo a popular proof of stake, Solana, teve sua moeda depreciada em cerca de 80% desde sua alta histórica em novembro. Mas a grande queda veio na semana do dia 9 de maio, quando a principal stablecoin algorítmica TerraUSD (UST) despencou drasticamente. Um investimento de US$100 em UST naquela segunda-feira valia apenas US$18 no domingo de manhã; a mesma quantia em seu token irmão, Luna, agora vale centavos. Stablecoins, ou moedas estáveis, como o nome sugere, são projetadas para serem as rochas do ecossistema de criptomoedas, atreladas fortemente a ativos do mundo real como o dólar. As bolsas usam stablecoins para compensar a volatilidade de outras moedas, e os investidores em cripto podem preferi-las como uma aposta mais segura para guardar seu dinheiro. Elas serviram sua função muito bem até agora, embora as questões sobre a segurança do consumidor e seu potencial de atividade ilícita certamente tenham chamado a atenção dos reguladores.
Entretanto, stablecoins algorítmicas são diferentes. Elas são um experimento de DeFi, pois não estão atreladas à moeda fiduciária e não possuem ativos de garantia para estabilizar seu valor. Em vez disso, elas geralmente são sustentadas por um segundo token, em uma equação matemática bastante complicada. Por exemplo, a criptomoeda Terra equilibra variações no valor da stablecoin aumentando ou diminuindo a oferta de tokens Luna por meio de incentivos; os investidores podem lucrar com essas trocas, o que, em teoria, os mantém negociando tokens nos valores que o algoritmo prevê. Mas muito disso são apenas especulações. Bem antes da queda da Terra, stablecoins algorítmicas costumavam ser vistas como sendo muito menos estáveis do que as normais. Até Sam Bankman-Fried, CEO da plataforma de negociação de cripto FTX e um notável “cripto bilionário”, argumentou no Twitter que os dois tipos de stablecoins são tão distintos de uma perspectiva funcional e de risco que ” [R] ealmente, não devemos usar a mesma palavra para todas essas coisas”.
Então, por que continuar com stablecoins algorítmicas? Porque, supostamente, elas são o Santo Graal do DeFi: uma unidade de valor estável ‘elegante’ de autocorreção independente, como a água que naturalmente se nivela. Elas agradam os puristas de Bitcoin pois as stablecoins algorítmicas tentam evitar o que as normais como a Tether e a USDC dependem para funcionar: um elo com o mundo real e os mercados tradicionais. Elas operam apenas com códigos, além, obviamente, dos negociantes humanos que o sistema presume que agirão de maneira previsível. Se as stablecoins algorítmicas funcionarem como prometido, elas podem provar que os códigos são o futuro das Finanças, dando credibilidade à visão de mundo da cripto.
Inicialmente, parecia que o experimento da Terra poderia funcionar. Em fevereiro, a Terra fechou um acordo de patrocínio multimilionário com o time de beisebol Washington Nationals. Há pouco mais de três meses, em março, sua blockchain, que era a sétima mais valiosa do mundo, havia se tornado a segunda rede mais usada, destronando a Ethereum. Mas no dia 9 de maio, as coisas saíram do controle. Alguém pode ter causado a queda no valor do UST por agir contra as previsões do algoritmo. Em seguida, a moeda caiu para muito abaixo do valor de US$1 que foi projetada para manter por conta de saques bancários motivados por um medo muito humano.
Quando a UST chegou a US$0,37 no dia 12, a empresa que a gerencia, a Terraform Labs, chegou a tomar a decisão drástica de temporariamente interromper as transações em sua rede para se proteger contra um declínio adicional. Em seguida, as congelou novamente da noite para o dia, impedindo que os detentores dos tokens pegassem o pouco que restou e fugissem. Desde que a rede foi reiniciada, o valor da UST da Terra continuou a flutuar bem abaixo de US$0,50; o Luna ficou pouco acima de zero.
Cada empresa do ecossistema de cripto tem suas próprias explicações para seus fraquejos. O tão esperado novo mercado de NFT da Coinbase teve um desempenho abaixo do esperado no final de abril, o que pode ter afastado os investidores e prejudicado o preço das ações. A Luna Foundation Guard, organização sem fins lucrativos que mantém a Terraform Labs, acumulou US$ 3,5 bilhões em Bitcoin até o início de maio e então parece ter vendido uma parte de seu estoque para se manter à tona quando o preço do UST começou a cair. Ambas as decisões podem ter contribuído para as quedas no valor do Bitcoin. Alguns apoiadores da Terra/Luna até acusaram a BlackRock e a Citadel de manipular intencionalmente o mercado para forçar a queda da UST, um boato tão cruel que suscitou uma resposta das empresas, afirmando que não estavam envolvidas no evento. Ademais, há a questão da gestão. O CoinDesk reportou que o CEO da Terraform Labs também já havia estado por trás de uma outra experiência algorítmica que fracassou; talvez sua liderança fosse outro buraco no barco da stablecoin.
Juntando todas essas peças defeituosas, tem-se um sistema experimental vulnerável às mesmas tendências de mercado que as finanças tradicionais, só que sem regulamentação rigorosa ou fortes medidas de proteção. O custo dessa confusão foi de aproximadamente US$ 270 bilhões em criptoativos perdidos. Até mesmo a Tether, uma poderosa stablecoin não-algorítmica, ficou brevemente abaixo de seu nível de US$1 durante aquela semana, indicando que as stablecoins padrão podem estar sujeitas à volatilidade. E o impacto de toda essa atividade provavelmente não será limitado pela fronteira da cripto.
Com bancos lançando criptoprodutos e stablecoins não-algorítmicas que dependem do Dólar de papel para mantê-las estáveis, a indústria de cripto está claramente “presa” de várias maneiras ao resto do mercado financeiro; a questão agora é se as moedas em queda, por sua vez, arrastarão as ações tradicionais para baixo. Em janeiro, Paul Krugman previu no The New York Times que os criptoativos podem ser as novas hipotecas subprime, ovos podres que têm o poder de estragar todo o mercado. Na semana seguinte, investidores individuais de cripto afirmaram já terem perdido todas as suas economias. E a situação ainda pode piorar.
Todavia, mesmo com as redes sociais se enchendo de memes debochados e meios de comunicação céticos chamando isso de o início do “inverno” da cripto, um termo usado quando as tecnologias passam por um período prolongado de desinteresse público e falta de inovação, executivos e investidores de cripto não estão apenas apostando que o ecossistema de cripto retornará aos seus dias de glória. Eles estão se planejando para isso. Até mesmo a palavra “inverno” implica que haverá uma primavera para aqueles dispostos a esperar. No dia 11 de maio, o fundador da Terra, Do Kwon, postou uma carta em formato de thread no Twitter para a comunidade Terra, descrevendo seu plano para ressuscitar a stablecoin e garantindo que ela daria a volta por cima. “Tropeços de curto prazo não definem o que você pode realizar”, escreveu ele. “É como você reage que importa”. O fundador da Coinbase, Brian Armstrong, também alega estar com foco total no futuro, já que as ações da empresa se recuperaram, depois de perderem metade do seu valor. Em um memorando interno que Armstrong publicou, ele disse que “a volatilidade é inevitável. Não podemos controlá-la, mas nos preparamos para ela… eu só sei que vamos superar isso, e sairemos mais fortes do que nunca se nos concentrarmos no que importa: construir.”
Muitos fiéis da cripto estão a bordo dessa jornada. A filosofia predominante dos entusiastas da Web3 é representada pela sigla HODL, sigla em inglês para “Hold on for dear life” ou em tradução livre, “Segure-se com toda a sua força”. Isso não é somente para o bem da comunidade de cripto, mas também para preservar o valor de seus próprios investimentos durante uma queda. Alguns “Lunáticos”, como os fãs e proprietários de Terra/Luna se autodenominam, estão de fato segurando firme. O plano de Kwon de recuperar completamente a Terra significa sacrificar uma enorme quantidade de tokens Terra, tendo um custo significativo aos proprietários de Terra e Luna. No dia 15 de maio, mais do que 60% dos detentores de tokens de governança votaram a favor do plano; ele precisava somente de 40% para passar, e a votação estava marcada para terminar no dia 17 de maio.
Para investidores e executivos, a próxima manobra será convencer o resto do mundo de que a cripto, principalmente o Bitcoin e as stablecoins, ainda são experimentos saudáveis. Eles com certeza têm boas razões para fazer isso: a crença pode realmente impulsionar os mercados de cripto sem garantia. Em um comunicado oportuno na quinta-feira 12 de maio, a Lightspark, startup de Lightning network do Bitcoin, fundada por um veterano do finado projeto de stablecoin da Meta, anunciou que havia recebido financiamento dos grandes nomes da Web3, Andreessen Horowitz e Paradigm, entre outros. Naquele mesmo dia, Bankman-Fried revelou que havia feito um grande novo investimento na Robinhood, a plataforma de investimentos oscilante; na sexta-feira, as ações subiram 22%. Mais anúncios dos figurões de cripto visando aumentar a confiança (e as ações) ainda podem vir.
O que ainda não se sabe é se o dinheiro real que ainda está fluindo para essa indústria, fruto de capitalistas de risco e fiéis, pode aquecê-la durante os tempos gelados, e, se ela conseguir encontrar seu caminho de volta para o sol, quantos acólitos, e até mesmo investidores do mercado regular, serão sacrificados para as águas geladas antes disso?