O que é o AirBnB? Um gigante do setor de consumo ou um player imobiliário? Uma alternativa à hotelaria ou um marketplace online? É uma empresa inovadora de tecnologia para viagens ou uma líder em hospitalidade voltada à comunidade?
E a Apple? Pode ser definida como uma empresa de produtos eletrônicos de consumo, saúde, tecnologia, pagamentos, entretenimento, aplicativos, software, hardware ou IA? A Tesla é uma fabricante automotiva, uma empresa de energia limpa, uma produtora de baterias, uma marca de estilo de vida, uma empresa de robótica, uma empresa de IA ou uma influenciadora?
As fronteiras entre os setores, antes delimitadas, estão se mesclando. Da agricultura à construção, as indústrias estão convergindo, fundindo-se e transformando-se. Mercados verticais antes separados agora colaboram em novos ecossistemas, desafiando as classificações tradicionais. Líderes, investidores e analistas precisam adotar novos filtros para avaliar as empresas e seus campos.
Seis paradigmas estão empurrando as indústrias para longe das suas definições prontas:
- Transformação radical: os negócios estão se transformando em sua essência, impulsionados por tecnologias convergentes. Estão ocorrendo mudanças radicais nas cadeias de valor, criando campos inteiros nesse processo.
- Muita complexidade para ser reduzida: subsegmentos categóricos e rígidos não refletem o nosso mundo complexo, onde tudo está interligado.
- Ciclos de vida compactados impulsionam o fim das tendências: à medida que o ritmo das mudanças se acelera, os ciclos de vida do setor se compactam.
- Além das fronteiras tradicionais: observe novos padrões na margem; novos campos começam na periferia.
- Ecossistemas perturbam os sistemas econômicos: com modelos de negócios como sistema, os concorrentes se transformam em parceiros, os fornecedores se tornam investidores e os clientes projetam seu futuro com você.
- Campos mínimos viáveis (MVF): a tecnologia, a transição energética e o poder envolvente das narrativas da mídia definirão todas as empresas.
Os seis paradigmas da nova era da indústria
1. Transformação radical: da automação à cognição
A cognição, a combinação inteligente da Internet das Coisas (IoT), o 5G, os sensores, a robótica e a IA tornam tudo cada vez mais inteligente por meio da conectividade. Qualquer coisa que possa ser automatizada, cognificada, descentralizada, digitalizada, desintermediada ou virtualizada será. Essas mudanças vão redistribuir bilhões de dólares em valor, à medida que todos os aspectos da economia (desde as indústrias até as profissões) são radicalmente transformados.
Anos de automação industrial estão amadurecendo em uma transformação radical. Os ambientes não só se tornam automatizados, como também desenvolvem a capacidade de aprender e de se adaptar por meio da IA, combinada com interações entre humanos e robôs.
A fusão de aprendizado de máquina, engenharia genética e robótica está revolucionando a descoberta de medicamentos, à medida que plataformas de IA em biotecnologia transformam radicalmente a indústria farmacêutica. Da mesma forma, no setor de tecnologia de alimentos, o desenvolvimento de plataformas mantidas por IA permite a criação de fontes alternativas de proteínas e nutrientes cultivados em laboratório.
A NotCo é uma startup chilena que usou aprendizagem de máquina baseada em IA para desenvolver Giuseppe, um “chef” de cozinha. que substitui ingredientes convencionais por outros à base de plantas. Alguns ingredientes podem parecer ilógicos até mesmo para as equipes humanas mais experientes em pesquisa e desenvolvimento.
O NotMilk, leite vegetal da NotCo à base de proteína de ervilha, é vendido em milhares de lojas nos EUA. O conjunto de dados proprietários cada vez maior da NotCo (perfis de sabores de milhares de ingredientes vegetais) tem um foco em B2B para acelerar a pesquisa e desenvolvimento de marcas de alimentos, fornecedores de ingredientes e provedores de tecnologia.
A NotCo é uma empresa de tecnologia de alimentos, uma empresa do setor de consumo, uma produtora de laticínios, uma fabricante de alimentos, uma empresa agrícola, uma empresa de tecnologia, uma plataforma de IA ou um algoritmo?
Convergências semelhantes de tecnologias autorreforçadas estão redefinindo indústrias inteiras, desde alimentação até construção e setor automotivo. No processo, esses “setores” radicalmente transformadores podem começar a assemelhar-se uns aos outros.
2. O mundo é complexo demais para ser redutível
Como um mecanismo de relógio meticulosamente elaborado, a visão newtoniana do mundo apresenta um universo em que podemos dissecar e remontar as suas partes constituintes. Durante séculos, essa perspectiva ressoou na nossa compreensão dos negócios e das indústrias, com a crença de que sistemas previsíveis governavam ambos.
No entanto, uma vez reconhecida a natureza complexa do mundo, a noção de dissecar e remontar partes inteiras de indústrias como se fossem de Lego é ilusória. Não podemos mais tratar os transportes, a energia, o setor aeroespacial, os materiais, a tecnologia ou a urbanização como elementos separados, porque eles estão profundamente interligados. Embora a física newtoniana nos sirva bem para construir pontes e lançar foguetes, o nosso ambiente complexo não pode ser reduzido a partes isoladas para construir as cidades vivas e sustentáveis do amanhã.
3. Ciclos de vida compactados
O aumento da hipervelocidade tem implicações profundas no panorama das indústrias. Esta era de ciclos de vida compactados reduz a vida útil dos produtos, substituindo-os por minitendências rápidas que transformam a dinâmica das indústrias.
Os efeitos da rede e a digitalização remodelam os setores. O que costumava levar décadas agora leva meses (ou semanas). Isso reduz os custos de desenvolvimento e democratiza a capacidade dos atores emergentes lançarem novos produtos e ideias. Fronteiras tradicionais se desintegram à medida que empresas emergentes em hipercrescimento contornam estruturas legadas e eliminam intermediários das cadeias de valor.
4. Além das fronteiras tradicionais
Ao limitar nossa análise competitiva a setores específicos da maneira como estão hoje, corremos o risco de perder o foco.
O Slack liderou o segmento de software de colaboração em equipe, criando a base da comunicação moderna no local de trabalho. Zoom, WhatsApp e WeChat reinventaram a comunicação com novos modelos de negócios às custas de antigos líderes do setor, como Ericsson, Nokia, AT&T e Vodafone.
Apesar das suas vantagens financeiras e estratégicas, os líderes estabelecidos dos setores não são os que mais inovam. Em vez disso, quem vem de fora é que rompe barreiras. A Beyond Meat e a Impossible Foods lideraram o avanço no segmento de proteínas alternativas, desafiando as indústrias de carne e laticínios. Plaid, Square e Stripe revolucionaram os ecossistemas de pagamento online e móvel, desafiando gigantes de processamento tradicionais como JP Morgan, Mastercard ou PayPal. Da mesma forma, fornecedores de direção autônoma e IA de ponta, como Mobileye e NVIDIA, estão impulsionando o futuro dos carros inteligentes. A SpaceX e a Blue Origin surgem como parceiras essenciais para o programa espacial de última geração da NASA, redefinindo o cenário aeroespacial.
Empresas de carnes e laticínios cultivados em laboratório receberam investimento significativo devido à visibilidade junto aos consumidores. Essas mesmas startups também produzem frango, bacon, peixe, sushi, carne Wagyu e foie gras em laboratório. A partir daí, passamos para uma ampla gama de produtos desenvolvidos dessa forma, à medida que a fabricação digital ultrapassa os limites da impressão em 3D, com aplicações que vão desde órgãos bioimpressos até casas.
Assim como os hambúrgueres e laticínios cultivados em laboratório de hoje em dia, no futuro poderemos criar diamantes sem depender da mineração, bem como produtos farmacêuticos, compostos químicos e medicamentos, ou até mesmo órgãos, em ambientes controlados. No processo de imaginar o que é possível, surgem campos inteiramente novos.
Enquanto você está ocupado lutando por melhorias incrementais, alguém chegará e criará um novo mercado. Essas empresas emergentes e ágeis não apenas vão puxar o seu tapete: elas vão te deixar sem chão.
5. Ecossistemas revolucionam sistemas econômicos
Os ecossistemas confundem os limites dos modelos de negócios fixos. Sem delimitações claras entre as indústrias, pode não haver uma direção estratégica “correta” óbvia. Em um mundo digital, desmaterializado e sem intermediários, não existem concorrentes diretos. Seus concorrentes também podem ser seus maiores parceiros, fornecedores, clientes e investidores.
A Meta fez parceria com a EssilorLuxottica para produzir óculos Ray-Ban inteligentes equipados com IA multimodal, assim como controles de voz, gestos e toque. Os óculos do futuro farão chamadas, transmitirão vídeos e permitirão fazer videoconferência com hologramas, conforme os óculos forem substituindo o smartphone, as opções de entretenimento, os recursos de videoconferência, seu personal trainer e até mesmo o optometrista.
Enquanto isso, a Amazon compete com a UPS ao controlar sua logística, a Fedex lança suas próprias plataformas de comércio eletrônico, a Tesla cria suas próprias soluções de armazenamento de energia e a Apple se torna um fabricante integrado de semicondutores que concebe seu próprio chip de última geração.
As empresas e os seus modelos devem evoluir para apoiar a experimentação, agindo como catalisadores da inovação. Os modelos de negócios como sistema (BMaaS) são ecossistemas emergentes que apoiam a mudança para uma economia sustentável, acolhem a colaboração, o codesenvolvimento e a cocriação, e respondem a desafios sociais complexos aproveitando ecossistemas abertos. Esses BMaaS vivos têm uma capacidade inata de mudar criativamente dentro dos seus ecossistemas.
À medida que os ecossistemas interagem, ocorrem mudanças radicais nos sistemas econômicos.
6. Campos mínimos viáveis (MVF): tecnologia, energia e mídia
Tecnologia, energia e mídia impulsionam todas as empresas: esses grandes temas substituem as convenções dos setores. Toda empresa precisa de um DNA forte nessas três áreas. Chamamos essa combinação de campos mínimos viáveis (MVF):
- Tecnologia e IA: para permanecerem competitivas, as empresas devem construir desde já recursos tecnológicos avançados, adotando a jornada da IA de “automação” para “transformação” radical. À medida que as tecnologias convergem, as barreiras entre indústrias estabelecidas são destruídas, provocando mudanças fundamentais nas tecnologias subjacentes, nos modelos de negócio e nas cadeias de valor. Setores se interseccionam, dissolvendo as fronteiras tradicionais e permitindo o surgimento de novos campos e combinações.
- Energia e natureza: todas as empresas precisarão ser inovadoras em transição energética, pois o “verde” é o novo digital. Para mitigar as mudanças climáticas e alcançar a descarbonização, a sustentabilidade transformará todas as atividades (produção, cadeias de suprimentos, pós-vendas) e redefinirá os modelos de negócios, assim como aconteceu com o digital.
- Mídia e narrativas: com o aumento da conectividade, as empresas precisam ter DNA midiático. O acesso direto às partes interessadas pode ajudar a informar, influenciar e impulsionar narrativas. Alinhar-se em um mundo instantâneo exige uma narrativa impactante. Com a IA gerando preocupações sobre manipulação e vieses, as narrativas genuínas tornam-se ainda mais cruciais. Narrativas autênticas podem inspirar valores sociais e demonstrar responsabilidade, alinhando as aspirações humanas a um futuro transparente e sustentável.
Foco nos fundamentos
Embora toda empresa deva adotar a tecnologia, apenas ter “DNA tecnológico” não é suficiente para se tornar uma verdadeira empresa de tecnologia. Uma experiência do usuário sólida, comércio eletrônico com recomendações de IA e efeitos de rede não qualificam necessariamente um negócio como uma empresa de tecnologia nem justificam avaliações financeiras infundadas.
Os observadores de mercado mais exigentes não devem perder de vista os fundamentos ao avaliarem marcas da internet que queimam dinheiro para impulsionar um crescimento superficial de curto prazo em mercados quase sem barreiras de entrada. Vender carros usados, móveis ou mantimentos online não torna valioso um negócio de baixa margem voltado ao consumidor.
A criação de valor surge com mudanças fundamentais no mercado, propriedade intelectual relevante e adoção sólida pelo mercado, aliada a uma economia unitária atraente em escala. Para serem sustentáveis, os modelos de negócio orientados por tecnologia precisam de receitas recorrentes e fluxos de caixa positivos.
A tecnologia e a IA são ingredientes essenciais, mas não existe uma fórmula mágica para se manter competitivo no mundo de hoje. Nenhum algoritmo pode salvar uma oferta insípida de produtos irrelevantes ou preços insustentáveis.
Narrativa como superpoder
Compartilhar mensagens autênticas e antecipar informações erradas que possam surgir sobre o seu negócio é fundamental. Ser transparente e proativo é uma estratégia central quando a percepção é tudo e a informação se amplifica em alta velocidade.
Informações, narrativas e desinformação afetam profundamente os lucros. Quando as partes interessadas, os consumidores e os funcionários entendem a história, confiam na visão e respeitam os valores, é mais provável que aceitem as suas ofertas.
Narrativas bem construídas são naturalmente atraentes. Uma pesquisa do neuroeconomista Paul Zak descobriu que um neuroquímico chamado ocitocina serve como um importante sinal neural de que é “seguro se aproximar dos outros”. A ocitocina é produzida quando há confiança e gentileza entre os indivíduos, o que motiva a colaboração. As histórias certas provocam a síntese da ocitocina, aumentando a nossa empatia.
Na nossa era de meios de comunicação manipulados, compreender como a informação molda as decisões e cria ou destrói valor é crucial para as empresas.
Setores liminares impulsionam a polinização cruzada
As empresas e os seus respectivos campos estão se tornando mais liminares. Os espaços entre as indústrias estão crescendo e evoluindo.
Agora que a digitalização já amadureceu, todas as empresas precisam se tornar um híbrido digital. Não existe uma “estratégia digital” independente; existe apenas a “estratégia”. Qualquer tipo de marketing inclui marketing digital: não existe “online” versus “offline”. Essa hibridização combina simultaneamente o físico, o digital, o aumentado, o virtualizado e o imersivo.
Para a Amazon, não há distinção entre o streaming do Prime Video e o comércio eletrônico, já que os espectadores podem comprar produtos e roupas dos personagens das séries. Vivemos em um mundo digital de setores híbridos: varejo, entretenimento, educação, físico, digital. Não existe uma “indústria” única: existe o “interdisciplinar”.
À medida que as tecnologias se difundem, elas se tornam indistinguíveis do ambiente que as rodeia. Com os avanços na miniaturização, o poder da computação se torna virtualmente invisível, às vezes até integrado aos nossos corpos. Com o aumento das interações entre campos como a biologia e a nanotecnologia, a tecnologia pode tornar-se indistinguível da natureza.
O futuro é híbrido. Em um mundo liminar, não existem fronteiras entre setores.
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Sobre o autor
Por Roger Spitz, autor best-seller da série em quatro volumes The Definitive Guide to Thriving on Disruption e Disrupt With Impact: Achieve Business Success in an Unpredictable World, dos quais este artigo é derivado. Presidente da Techistential (estratégia prospectiva) e fundador do Disruptive Futures Institute (think tank) em San Francisco, Spitz é consultor especialista da Global Foresight Network do World Economic Forum. Também é sócio da Vektor Partners, um fundo de capital de risco (Palo Alto, Londres), assim como ex-líder global de fusões e aquisições de tecnologia do BNP Paribas, onde prestou consultoria em mais de 50 transações com valor de negócio de US$ 25 bilhões.