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A burocracia estatal, muitas vezes, ainda está alicerçada em processos obsoletos e ineficientes. Uma realidade que apresenta desafios significativos para órgãos públicos em todas as esferas de governo. E que, confrontada com soluções tecnológicas como a automação, a digitalização e a análise de dados, escancara a necessidade da modernização da administração pública para eficácia dos serviços e, assim, melhor atender ao cidadão. Dessa forma, gestores públicos agora enfrentam uma decisão fundamental: juntar-se à vanguarda na adoção de soluções inovadoras viabilizadas pela tecnologia ou perder o timing e ficar para trás, sujeitando-se a críticas por atraso e ineficiência.
De fato, a digitalização emergiu como peça-chave para essa modernização. O tema vem ganhando destaque na agenda de governos e organismos internacionais. Para a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), por exemplo, as tecnologias digitais oferecem várias oportunidades para melhorar a prestação de serviços governamentais, aumentar a transparência, facilitar os canais de comunicação com os cidadãos e promover a inovação pública. Desse modo, recomenda na Agenda Digital para a América Latina e o Caribe (eLAC) que os países adotem estratégias de Transformação Digital em nível governamental.
Já um estudo recente da McKinsey aponta que o uso eficiente de ferramentas digitais é fundamental para os governos que buscam alcançar transformações significativas em suas políticas, regulamentações e serviços aos cidadãos. Esse imperativo surge em um contexto em que a demanda sobre governos e suas forças de trabalho é cada vez maior, tornando as mudanças não apenas necessárias, mas também urgentes. O mesmo estudo revela que cerca de 80% das principais iniciativas de mudança no setor público não conseguem atingir seus objetivos, enfatizando, assim, a importância da digitalização como uma aliada crucial nas transformações governamentais, possibilitando novos meios de comunicação, gestão e entrega de serviços.
A cientista de dados Aline Riquetti Emídio, especialista em soluções de prevenção à fraude e Inteligência Artificial no SAS, sublinha a relevância perene da tecnologia no contexto da administração pública. Ela destaca que as soluções baseadas em tecnologias emergentes vieram para ficar, provando ser um catalisador indispensável para o desenvolvimento de órgãos governamentais e países como um todo. “O Estado é, sem dúvida, a maior ‘empresa’ existente. Isso se dá não apenas pelo volume de informação que detém, mas também pela importância crítica das decisões que toma. Uma decisão errada pode significar o desperdício de vacinas, ou, pior ainda, a perda de vidas. Portanto, cada decisão tem um impacto profundo e amplo, afetando um grande número de pessoas — toda a população, na verdade”, afirma a especialista, argumentando que esse é o principal motivo para que o setor público nunca deveria ficar atrás da iniciativa privada. “Ao contrário, deve sempre se esforçar para estar na vanguarda, investindo em tecnologia que lhe permita processar e utilizar o volume maciço de dados que tem à disposição. Ao fazer isso, ele será capaz de prestar o melhor serviço possível aos cidadãos”, analisa.
No Brasil, os avanços nesse sentido foram recompensados no ano passado, quando o país foi reconhecido pelo Banco Mundial como o segundo país do mundo com a mais alta maturidade em serviços públicos digitais, atrás apenas da Coreia do Sul. A avaliação foi feita pelo GovTech Maturity Index 2022, que considera o estado da transformação digital dos serviços públicos em 198 economias globais. Como observadora do cenário brasileiro há mais de uma década, Aline Riquetti afirma que, aqui, nota-se um padrão emergente nos últimos anos. De um cenário marcado por certa resistência à adoção de tecnologia, ela tem visto cada vez mais órgãos públicos procurando se atualizar, impulsionados pelos sucessos tecnológicos de outros gestores.
Para ela, essa é uma mentalidade que evidencia que a aceitação da tecnologia está ganhando terreno nas estruturas de todas as esferas de governo. “Hoje, vemos uma transformação na maneira como o setor público se posiciona. A pressão para se tornar mais eficiente e atualizado está aumentando. Governadores e gestores de estado estão percebendo a necessidade de se tornarem referência em eficiência e uso de tecnologia. Seja por meio da implementação de cidades inteligentes ou pela otimização de processos, como a renovação de CNH, eles estão estabelecendo um novo padrão de atendimento ao cidadão. Esse novo padrão está gerando uma competição positiva entre os estados e cidades, criando um benchmark para a prestação de serviços públicos. Isso está transformando a percepção de que o governo está sempre um passo atrás da iniciativa privada”, afirma.
Aline lembra ainda que, se a digitalização aumenta a acessibilidade, rapidez e precisão dos serviços, e a automatização pode reduzir erros e liberar recursos humanos para atividades mais complexas, o fortalecimento de uma cultura orientada a dados aplicada aos serviços públicos é especialmente crucial devido à magnitude das operações e o número de pessoas afetadas por elas. Utilizando dados para orientar políticas e práticas, os serviços públicos podem se tornar mais eficientes, eficazes e responsivos às necessidades do cidadão. Além disso, esse princípio pode reduzir o desperdício, maximizar recursos e melhorar os resultados.
Desafios para ir além
Apesar dos muitos avanços, no entanto, Aline ressalta que ainda há uma série de desafios a serem superados. O primeiro está na mudança de mentalidade dos gestores. Ela destaca que para construir um governo eficiente, é preciso mobilizar pessoas, softwares de qualidade e hardware, ou seja, a capacidade para processar dados. No entanto, também é preciso alguém com visão, capaz de identificar e enfrentar os gargalos do processo. Assim, por mais que o instinto inicial seja tentar resolver problemas internamente, chega um momento em que os gestores precisam entender que a tecnologia é essencial para resolver não apenas os problemas atuais, mas também os futuros.
Dessa forma, segundo Aline, a capacidade de pensar além de sua própria gestão e contribuir para a eficiência a longo prazo do estado é crucial. “A adoção da tecnologia como ferramenta de transformação é uma decisão política. Quando a alta gestão está sensibilizada para a importância da tecnologia e passa essa visão para seus subordinados, a implementação da mesma torna-se mais fluida. Portanto, é vital ter lideranças avançadas e que incentivem o uso de tecnologia para um governo mais eficiente e moderno”, avalia.
O segundo desafio, argumenta Aline, é a implementação das tecnologias em si. Muitas vezes, as equipes estão sobrecarregadas e pode haver resistência a dedicar tempo ao desenvolvimento de novas tecnologias. Essa resistência pode ser fruto de uma falta de visão a longo prazo: a compreensão de que um investimento agora pode levar a ganhos significativos no futuro é fundamental.
Nesse sentido, Aline chama a atenção para a importância de haver flexibilidade para ajustar a tecnologia de acordo com as necessidades de cada entidade, bem como a capacidade de reunir e analisar informações de várias fontes. “A mesma tecnologia que é usada para prever o estoque de chocolates para uma distribuidora antes do Dia das Mães pode ser empregada para calcular a quantidade de medicamentos necessários em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Portanto, a tecnologia se molda às necessidades do negócio, não o contrário.
O SAS fez um trabalho muito interessante junto à polícia de um país que usa a solução para identificar quadrilhas através de redes de relacionamento. Isso ajuda a força policial a mapear conexões entre indivíduos com base em ligações telefônicas ou registros em boletins de ocorrência comuns. Da mesma forma, a Secretaria de Finanças do município do Rio de Janeiro usa nossa tecnologia para combater a evasão fiscal, identificando padrões comportamentais nos registros de notas fiscais emitidas em diferentes municípios, ou reunindo informações dispersas de várias fontes, oferecendo aos auditores um panorama completo de uma situação, otimizando assim o trabalho deles”, relata.
O terceiro desafio é a questão legal em torno do compartilhamento de informações entre diferentes órgãos do governo. Com a vigência da LGPD, é preciso assegurar que o compartilhamento de dados entre órgãos governamentais seja realizado respeitando as diretrizes dessa lei. Embora recentemente tenha sido validada uma norma que permite o compartilhamento de dados entre órgãos públicos, a atenção ao que diz a legislação deve sempre ser redobrada.
Além disso, segundo a especialista, é importante considerar as implicações éticas do uso de tecnologia e dados. Questões como a privacidade dos dados e o potencial viés em algoritmos, precisam ser cuidadosamente consideradas. “Se estamos falando de utilizar algoritmos para embasar decisões que podem afetar a vida de pessoas, é fundamental que haja garantias de que esses algoritmos não estejam baseados em preconceitos e que respeitem a privacidade e os direitos dos cidadãos. Portanto, a implementação dessas tecnologias não deve apenas focar na eficiência, mas também em garantir que sejam eticamente sólidas e justas”.
Equidade e justiça social
Diante de tudo isso, Aline afirma que a cultura orientada a dados, muitas vezes discutida em termos de melhorias de eficiência e eficácia, também tem um potencial significativo para impactar a equidade e justiça social nos serviços prestados aos cidadãos. “Apesar de o combate à evasão fiscal trazer um retorno financeiro mais palpável, a equidade social, embora menos quantificável, é uma meta igualmente relevante. Nesse sentido, a tecnologia orientada por dados pode ser usada para definir políticas públicas mais efetivas. Por exemplo, a análise de dados pode orientar a localização de novas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) ou a distribuição de equipamentos médicos essenciais, garantindo que sejam direcionados para as áreas mais necessitadas”, exemplifica.
Além disso, Aline aponta que os dados podem ser utilizados para avaliar a eficácia de políticas existentes, particularmente no setor de saúde, em que a intervenção precoce e preventiva pode evitar custos futuros. Também podem ser aplicados na identificação de indivíduos que têm direito a benefícios assistenciais, mas que por diversas razões ainda não estão na base de dados. Com o uso de perfis de dados, é possível identificar e alcançar essas pessoas, trazendo-as para dentro do sistema. Assim, à medida em que a sociedade evolui e exige cada vez mais dos serviços públicos, essa modernização por meio da digitalização e da automação pode liberar os servidores para responder a esses desafios de maneira mais eficaz.