Na comédia Office Space de 1999, um programador chamado Peter Gibbons diz a um terapeuta que cada dia de sua vida é pior que o anterior, refletindo um sentimento que, infelizmente, muitos profissionais reconhecem. O humor da cena esconde uma realidade amarga: o esgotamento mental que permeia a vida de 62% da população global e 32% da população brasileira. Neste contexto, surge uma questão importante: o que a tecnologia, que molda tanto nossas vidas profissionais, significa para a saúde mental corporativa?
Veja o caso da Izabella Camargo, uma jornalista que virou notícia quando sofreu um “apagão” enquanto apresentava o quadro da previsão do tempo num telejornal. Ela estava exausta, sobrecarregada e perdeu mais do que sua postura durante a transmissão ao vivo. Em entrevista publicada em 2022 pelo portal Meio & Mensagem, ela revelou que depois do episódio foi direto ao psiquiatra, sob risco de convulsão, e recebeu seu primeiro diagnóstico de burnout. A experiência de Izabella ilustra de forma contundente a complexa relação entre o trabalho, o estresse e a saúde mental, especialmente em um ambiente cada vez mais permeado pela tecnologia. Com o tempo – e uma segunda crise -, o estresse crônico desencadeou uma série de problemas em seu corpo, incluindo insônia e complicações hormonais e vasculares, que resultaram em uma cirurgia para corrigir a renovação venosa da jornalista.
Esse é apenas um dos exemplos que nos leva às próximas perguntas: acima dos indivíduos, como as empresas encaram o burnout? Além disso, qual a responsabilidade corporativa na promoção da saúde mental dos seus colaboradores? E, o mais importante, como a tecnologia pode ajudar a prevenir e combater essa condição?
As respostas não são simples. Para as empresas, não se importar com a qualidade de vida e o bem-estar dos funcionários pode ser uma estratégia extremamente arriscada. Além de lidar com os custos de absenteísmo e turnover, as chances de adquirir uma má reputação no mercado são altíssimas. Isso impacta diretamente o employer branding da marca, diminuindo o estímulo à vontade das pessoas trabalharem na organização. Com um alto índice de burnout, a tendência é que fique cada vez mais difícil atrair, captar e reter talentos, ao mesmo tempo que facilita a queda da produtividade dos colaboradores.
As raízes do problema
Combater o esgotamento mental exige mais do que boa intenção; é preciso entender as causas. São elas:
Alta pressão no ambiente laboral: diante da hipercompetitividade do mercado, é fácil ver o quão rápido a pressão pode aumentar sobre a força de trabalho. Afinal, para ter sucesso, os funcionários devem entregar performance e resultados em uma frequência que extrapola suas capacidades cognitivas. Segundo os resultados de 2021 da Mental Health UK, 46% dos profissionais chegaram a níveis extremos de estresse em comparação com 2022.
Cultura de trabalho excessivo: longas jornadas geralmente são vistas como sinônimo de dedicação em culturas que promovem o trabalho excessivo. Consequentemente, esse modelo insustentável coloca em segundo plano o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, com longas jornadas de trabalho se tornando a norma. No Reino Unido, 44% do estresse ou depressão no trabalho são causados por alta carga laboral.
Ritmo acelerado de inovação e exigências contínuas de capacitação: para ser relevante no mundo corporativo, as empresas dependem de uma força de trabalho que esteja sempre atualizada. Essa necessidade de crescimento contínuo coloca ainda mais pressão sobre os funcionários, que precisam cumprir com suas cargas de trabalho, além de buscar alternativas para atender às demandas contínuas de aprendizagem.
Desafios do trabalho remoto e a confusão entre trabalho e vida pessoal: se por um lado há benefícios significativos em oferecer oportunidades remotas para funcionários, por outro, o novo modelo de trabalho confundiu os limites entre trabalho e vida pessoal. Não à toa, a falta de tempo livre foi o principal motivo de esgotamento para 40% dos millennials no Reino Unido em 2021. A ausência de limites claros entre trabalho e vida pessoal aumenta o risco de esgotamento, mesmo entre os profissionais mais dedicados.
A desigualdade de gênero causa maior esgotamento em mulheres: segundo a Mental Health UK, quase um em cada quatro adultos do país luta contra o estresse. Mas o ‘Burnout Report’ de 2024 da instituição revela uma realidade ainda mais complexa: as mulheres parecem carregar um peso maior. 93% delas apresentam estresse extremo em comparação com 88% dos homens, e elas também são menos propensas a se afastar do trabalho para cuidar de sua saúde mental.
O papel do Estado no combate ao burnout
Sob a ótica jurídica, o ideal é combater as raízes do problema para evitar complicações mais graves no futuro. Isso porque a legislação trabalhista brasileira garante ao trabalhador o direito ao afastamento por motivo de saúde, com o empregador assumindo a responsabilidade financeira pelos primeiros 15 dias de afastamento. Após esse período, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) assume o posto e concede o auxílio-doença caso o afastamento se prolongue.
Como explica o professor Otávio Pinto e Silva, do Departamento de Direito do Trabalho e Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP, o afastamento por doença ocupacional interrompe o contrato de trabalho e garante ao trabalhador a reintegração ao seu cargo após a recuperação. Sendo assim, o papel dessa legislação é proteger o trabalhador e assegurar que ele não seja prejudicado financeira e profissionalmente durante o período de afastamento por motivo de saúde.
No entanto, quando o funcionário retorna, algumas empresas podem considerá-lo incapacitado para o trabalho e optar pela dispensa. Nesses casos, o trabalhador pode recorrer à Justiça do Trabalho, alegando a Síndrome de Burnout como justificativa para a indenização por danos causados pelas condições laborais.
De olho no problema, a Câmara dos Deputados aprovou recentemente o Projeto de Lei 1.464/22, que cria a Política Nacional de Atenção Integral à Síndrome de Burnout no SUS. Considerando que o Brasil é o país mais ansioso do mundo e o quinto mais depressivo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o objetivo do PL é usar a estrutura do Sistema Público de Saúde para reduzir o risco de burnout na população. A iniciativa, embora positiva, chega tardiamente e precisa ser complementada por ações concretas das empresas, visto que a responsabilidade pela prevenção e combate à doença não pode ser transferida apenas para o Estado. É fundamental que as organizações se engajem ativamente na criação de ambientes de trabalho que promovam a saúde mental dos funcionários, por meio de suporte psicológico e programas de gestão de estresse e bem-estar.
Tecnologia preditiva como aliada (ou inimiga)
Quando falamos em saúde mental no trabalho, a tecnologia oferece os dois lados da moeda. Ela pode ser uma ferramenta que contribui para o esgotamento dos funcionários, como também uma solução que ajuda a reduzir o esforço cognitivo, melhorando o bem-estar, e, por consequência, a produtividade.
Um exemplo notável nesse sentido é a ferramenta capaz de identificar sinais do burnout através da voz, lançada recentemente pela empresa americana Sonde Health. O Sonde Cognitive Fitness detecta e monitora alterações na atividade cognitiva e no esforço de estresse em tempo real e promete ajudar as organizações a manter o bem-estar dos funcionários, revelando precocemente possíveis mudanças cognitivas.
No geral, empregar tecnologias preditivas como essa tem potencial para virar o jogo de negócios que, hoje, não sabem enfrentar a dura realidade do burnout. Contudo, ao optar pelo uso da tecnologia, as organizações devem ficar alertas para garantir uma implementação que, de fato, beneficie os trabalhadores. Caso contrário, será apenas mais um mecanismo de controle com vantagens exclusivas para as empresas.
Logo, para evitar que organizações transfiram a responsabilidade da doença para o funcionário, é indispensável que o aparato jurídico do país acompanhe esse avanço de perto. Só assim, será possível garantir que a inovação focada em burnout veio para ajudar a economizar tempo e a otimizar a carga de trabalho das pessoas, em vez de sobrecarregá-las ainda mais.
Repensando as relações de trabalho
O avanço tecnológico, sem dúvida, trouxe uma série de inovações para o ambiente corporativo, mas a pergunta que fica é: até que ponto essas tecnologias realmente melhoraram as condições da força de trabalho em nível global? A falta de uma resposta significativa demonstra que a inovação tecnológica, por si só, não resolve os problemas relacionados ao excesso de trabalho. Se não formos cuidadosos, corremos o risco de ver a tecnologia se tornar uma ferramenta que, em vez de aliviar a carga dos trabalhadores, apenas intensifica o controle e a pressão sobre eles.
Não importa o quanto a tecnologia avance; o que precisa mudar é a nossa relação com o trabalho. Precisamos repensar como a utilizamos para garantir que ela sirva para humanizar o ambiente laboral, não para torná-lo pior. Sem esse cuidado, o que criarmos pode acabar servindo apenas para sobrecarregar ainda mais o trabalhador e aprofundar a desigualdade entre ele e a empresa.
Em última análise, a verdadeira inovação não está apenas em desenvolver novas ferramentas, mas em transformar a cultura de trabalho, de modo que o foco esteja sempre no bem-estar e na dignidade do trabalhador. Somente assim a tecnologia será uma aliada, e não uma inimiga.
Referências:
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