Tecnologia e dados para aprimorar linhas de cuidado para doenças raras
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Tecnologia e dados para aprimorar linhas de cuidado para doenças raras

Uso de dados e ações coordenadas entre União, estados e municípios são ferramentas para garantir mais sucesso na jornada de pacientes com doenças raras.

Em um país continental como o Brasil, a construção e execução de políticas públicas de saúde que atendam a toda a população de forma equitativa é um desafio. Os obstáculos estão postos para inúmeras condições, e são mais desafiadores em doenças raras.

Segundo o Ministério da Saúde, doenças raras afetam um pequeno grupo de pessoas em comparação a outras doenças prevalentes na população geral. A Portaria nº 199, de 30 de janeiro de 2014, que institui a Política Nacional, definiu que essas doenças atingem até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos.

Ainda de acordo com a pasta, as doenças raras são geralmente crônicas, degenerativas e até incapacitantes, e afetam a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias. De acordo com a European Medicines Agency (EMA), entre 6 mil e 8 mil doenças raras são documentadas atualmente.

Diante da complexidade do assunto, cabe aos gestores de saúde definirem estratégias para oferecer aos pacientes as melhores alternativas de diagnóstico e tratamento para as doenças. Certas doenças ainda não têm uma linha de cuidado definida pelas autoridades de saúde, fator que acaba dificultando a execução das políticas públicas nas esferas federal, estadual e municipal.

Desafios na linha de cuidado

Segundo definição do Ministério da Saúde, linhas de cuidado são padronizações técnicas que organizam a rotina do itinerário do paciente em toda a rede de atenção à saúde, desde a atenção primária até a especializada. Permeando atividades de prevenção, tratamento, até reabilitação; a serem desenvolvidas por equipe multidisciplinar em cada serviço de saúde.

Um dos casos emblemáticos é o do Distúrbio do Espectro da Neuromielite Óptica (DENMO). O DENMO é uma doença autoimune rara e debilitante, causada por surtos graves e recorrentes no sistema nervoso central (SNC) que podem resultar em incapacidades permanentes, como a perda de visão e paralisia, podendo levar à morte em casos mais graves. Como os sintomas são muito diversos, passando por dificuldades motoras até problemas de visão, não é incomum que o paciente passe por mais de um especialista até que se chegue as primeiras suspeitas da doença.

“O oftalmologista com frequência recebe esse paciente pela primeira vez, mas não só, o ortopedista também pode fazer esse papel no caso de um espasmo tônico medular, um sintoma medular. O gastroenterologista pode receber um paciente com uma síndrome de área pós-tremula que é náuseas, vômitos, porque o paciente não vai procurar o neurologista, então partindo de um pressuposto muito simples, precisamos pensar na jornada do paciente pela base e a base ultrapassa os muros da neurologia”, reflete a neurologista e especialista em neuroimunologia Milena Pitombeira.

Ao contrário do que ocorre em outras doenças neurológicas autoimunes, como a esclerose múltipla, os pacientes com DENMO normalmente não se recuperam totalmente após os surtos, que tendem a ser irreversíveis ou apenas parcialmente reversíveis. Entre os pacientes diagnosticados com neuromielite óptica, 41% podem ficar cegos de pelo menos um olho no período de cinco anos após o início dos sintomas; e se um tratamento não for iniciado, dados dão conta de que metade precisarão de cadeiras de rodas neste período.

Um artigo publicado em 2019 pela American Academy of Neurology mostra que mais de 40% dos pacientes com DENMO relatam um erro inicial de diagnóstico, com resultado positivo para esclerose múltipla. O diagnóstico diferencial de DENMO e esclerose múltipla é importante, pois os tratamentos para a esclerose múltipla podem ser ineficazes e até agravar a condição no DENMO. A situação pode ser explicada pela falta de acesso às tecnologias para identificação da doença.

“Já temos tecnologia no Brasil para o diagnóstico, temos muitos laboratórios treinados, por exemplo, estamos falando do teste Aquaporina IGG pelo método baseado em célula e temos infinitos laboratórios preparados para isso no âmbito público e privado, mas esse teste não é disponível facilmente, não está disponível no SUS ainda, existe uma batalha para que isso aconteça”, destaca Milena.

Pós- diagnóstico, outro obstáculo passa a ser o tratamento. Em 2023, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso de medicamentos com indicação em bula (on label) para a doença. Os fármacos, no entanto, ainda não estão disponíveis no SUS, pois também precisam passar pela análise da Conitec. Os medicamentos tampouco estão disponíveis no sistema privado.

Ação conjunta de todos os atores

Diante da complexidade que engloba o tema das doenças raras, é imprescindível definir estratégias que atendam a todas as esferas envolvidas no SUS. É o que defende Wênia Brito, gerente-executiva de Assistência Farmacêutica da Secretaria de Estado de Saúde da Paraíba (SES-PB).

Wênia avalia que a jornada dos pacientes raros não engloba só o tratamento, mas toda uma estrutura de saúde. “Não fica só na assistência farmacêutica. Vai desde o acesso à possibilidade de consulta, exames diagnósticos, encaminhamentos, além dos hiatos e janelas que se criam entre um encaminhamento e outro até fechar o diagnóstico”, afirma.

A gestora complementa: “Em todas essas discussões, a gente precisa trazer para perto as três instâncias gestoras do SUS, uma discussão da construção de políticas de Estado, e não de governo. Algo que fique, que as próximas gerações vão lapidar, fazer correções”.

Wênia utiliza o exemplo do estado da Paraíba como modelo de sucesso na coordenação entre a unidade federativa e os municípios. O estado organiza, anualmente, caravanas em alusão ao mês de conscientização da Esclerose Múltipla — doença rara que tem sintomas semelhantes ao DENMO. Organizadas pela neurologista Bianca Oliveira, coordenadora do Centro de Referência de Esclerose Múltipla da Paraíba (Crem-PB), as caravanas percorrem três macrorregiões e 16 regiões de saúde da Paraíba. O objetivo é levar conhecimento para os profissionais de saúde de cada área, além de mapear, conhecer e orientar pacientes que convivem com esclerose múltipla.

“A grande dificuldade que a gente encontrou foi no diagnóstico. Os pacientes tinham diagnósticos errados. A própria médica se coloca à disposição para receber essas pessoas. Existe uma suspeita na porta e aí se encaminha para o centro de referência. Viu-se a necessidade não só de levar o conhecimento aos gestores, mas de se colocar na construção de coisas pequenas, como preenchimento de receitas e de laudos de avaliação de medicamentos de alto custo”, explica.

Para Wênia, o modelo demonstra a importância da integração entre as gestões municipais e estadual no enfrentamento às doenças raras. A ação teve tanto sucesso que, de acordo com a gestora, a coordenadora do projeto também decidiu fazer caravanas voltadas para o DNMO.

A gerente-executiva da SES-PB argumenta que modelos de coordenação e integração como o da Paraíba podem se estender para a esfera federal com o auxílio de dados. “A gente tem construído este diário, esse dossiê, para mostrar a experiência do estado, como o estado construiu a linha de cuidado. É interessante e importante iniciar este pontapé. A linha de cuidado é transversal”, defende Wênia.

Tecnologias podem ser aliadas

O uso de dados e da tecnologia para a construção de linhas de cuidado e para auxiliar a jornada do paciente também é defendido por Milena Pitombeira, que é também pesquisadora do Comitê Brasileiro de Tratamento e Pesquisa em Esclerose Múltipla (BCTRIMS).

O comitê tem como objetivo promover pesquisas e debates sobre doenças neuroimunológicas, especialmente da esclerose múltipla e da neuromielite óptica. O grupo atua na discussão sobre novos tratamentos, diagnóstico das doenças e capacitação de profissionais brasileiros. Para Milena, o compartilhamento de informações entre gestores de saúde das três esferas, pesquisadores e a sociedade civil é importante para garantir sucesso na jornada dos pacientes.

“A gente vive às cegas. Ser gestor é estar em uma posição ingrata, porque todo mundo vai dizer que o gestor não facilita, não ajuda. Mas você tem dados para mostrar ao gestor? Consegue dizer a ele como ele pode se programar, quantos somos, qual vai ser a nossa necessidade de medicação? Muitas vezes a gente não consegue fazer isso. A gente tem que se unir a eles enquanto equipe assistencial, centros de pesquisa, pacientes e associações. Em um país continental não é tão fácil assim estabelecer grandes bases de dados. É só através da união de todos os setores que a gente consegue chegar em um volume de dados que seja consistente o suficiente para que a gente possa guiar e ajudar as políticas de saúde, sejam elas públicas ou privadas. Para que a gente consiga subir rapidamente os degraus de aprovação de tecnologia junto ao Ministério da Saúde, a gente precisa de dados”, analisa.

Uma das linhas de atuação do comitê é o Registro Brasileiro de Neuromielite Óptica (NMO-RG), um sistema computadorizado que reúne dados epidemiológicos e clínicos de pacientes com o diagnóstico de DNMO. O objetivo é reunir informações para que os profissionais da área conheçam a distribuição geográfica, étnica e clínica da doença. A plataforma é aberta e gratuita para todos os médicos do Brasil e da América Latina.

“São dados que vão desde o momento do diagnóstico à testagem, de onde aquele paciente é acompanhado, quantos anos ele tem. A primeira síndrome, a situação inicial, muitas vezes determina qual jornada ele vai seguir. São fatores importantes para a gente entender quem são as pessoas que desenvolvem NMO no Brasil. Com base nesse registro geral, a gente acaba conseguindo fazer outras perguntas. Uma boa pesquisa responde uma pergunta e abre mais dez. E é isso que a gente tem que fazer com banco de dados”, afirma Milena.

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