Depois de um longo dia de trabalho, você chega em casa não se sentindo muito bem. “Cansaço ou estresse”, logo pensa. Toma um remédio para a dor de cabeça e decide seguir normalmente com sua rotina doméstica ou se jogar no sofá para tentar apreciar um momento de lazer. Com o passar das horas, o mal-estar evolui para sintomas mais graves e você procura um atendimento médico. Corre em direção ao telefone, documentos, chave do carro e, claro, a carteira de plano de saúde, e se dirige a um hospital para ser atendido.
Ao receber o diagnóstico de um profissional junto com a receita ou pedidos de exames, é comum algumas questões passarem na sua cabeça como: “Quanto vai me custar esse remédio?” ou “Quanto custaria esse atendimento e esses exames caso eu não tivesse um plano de saúde?”. Mas alguma vez você já se perguntou qual é o modelo de remuneração praticado pelo sistema de saúde do qual faz parte? Essa questão, que em um primeiro momento pode parecer não trazer efeitos diretos sobre você, vai sim influenciar a sua saúde muito mais do que você poderia imaginar. E estamos falando de impacto na sua saúde, e não no seu bolso.
O surgimento de novas biotecnologias nas últimas décadas trouxe indiscutíveis ganhos em sobrevida, saúde e qualidade de vida para os pacientes, desde que tenham sua eficácia e sua segurança comprovados e, principalmente, quando utilizadas no momento correto e em indicações precisas. Mas os avanços tecnológicos trouxeram o ônus de altos custos e um cenário em que gastos com saúde crescem mais rapidamente do que a economia global. Segundo a Organização Mundial da Saúde, tais gastos representam cerca de 10% do PIB mundial. Diante do avanço tecnológico sanitário e da maior oferta de opções de tratamento, a preocupação central se tornou a sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi fundado em 1988, com acesso integral, universal e gratuito aos seus serviços. Em paralelo, empresas de assistência médica a funcionários de determinadas empresas começaram a surgir na década de 1960, dando início à criação do Sistema de Saúde Suplementar, que tem hoje uma taxa de cobertura de 24,98% da população brasileira, com 48,4 milhões de beneficiários e 736 operadoras em atividade no Brasil.
Quem são os principais atores da Saúde Suplementar?
A Saúde Suplementar é formada por beneficiários, prestadores de serviço, profissionais de saúde, fornecedores de medicamentos, insumos, exames e devices, e operadoras de planos e seguros privados de assistência médica, sendo regulada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Na relação direta entre operadoras e prestadores, entram então os modelos de remuneração.
Usou, pagou
O modelo de remuneração fee for service teve início nos anos 1930, nos Estados Unidos e ainda é, até hoje, a forma de pagamento mais praticada no Brasil. Nele, o prestador de serviços é remunerado por procedimento. A conta enviada à operadora traz cada item utilizado com o paciente, de acordo com tabelas de preços previamente acordadas entre as partes. Neste modelo, quanto mais itens de cuidado forem utilizados, sejam eles exames, procedimentos ou materiais, maior será a remuneração ao prestador. Traz-se então um certo conforto para o prestador, que não fica sob grande risco, mas uma grande imprevisibilidade para as operadoras. Não há incentivo à padronização dos cuidados, nem à qualidade dos serviços prestados. E o que pode ocorrer com o paciente neste modelo? O fee for service cria um estímulo à superutilização de serviços de saúde. Assim, pode haver situações em que pessoas sejam submetidas a procedimentos ou exames não fundamentais (ou até inadequados ao seu quadro clínico). Como tal modelo também não incentiva que os resultados, ou desfechos do paciente sejam mensurados, o desempenho acaba não sendo considerado. O reembolso depende da quantidade do atendimento, e não da sua qualidade. O consumo de recursos é estimulado, mesmo que, em alguns casos, não haja evidência de que tais cuidados sejam clinicamente necessários. Caso haja necessidade de nova hospitalização ou cirurgia após uma complicação ou resultado indesejado oriundo da primeira abordagem, as operadoras pagarão integralmente por todos esses recursos. É preciso ter atenção para que a população não vincule excessos com qualidade do atendimento.
Como mais uma consequência deste modelo, dados do Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS) mostram que itens indevidos são cobrados em 12% a 18% das contas hospitalares e que 25% a 40% dos exames laboratoriais solicitados não seriam necessários. Em 2017, os gastos com fraudes e desperdícios representaram R$ 27,8 bilhões (19,1% do total de despesas assistenciais das operadoras), com cerca de R$ 15 bilhões atribuídos a fraudes em contas hospitalares e R$ 12 bilhões em exames não necessários.
Este cenário compromete não só as finanças da Saúde Suplementar, onerando cada vez mais os contratantes de planos de saúde, mas também a qualidade da assistência que é prestada aos pacientes.
Como evoluíram os modelos de remuneração
As mudanças nas formas de remuneração começaram a buscar o controle do avanço desenfreado de custos e seus consequentes impactos sobre os beneficiários. Surgiram então os modelos que funcionam como pacotes, como as diárias globais e pacotes para determinados procedimentos cirúrgicos, por exemplo. Se no fee for service estávamos diante de um cenário de estímulo à superutilização de recursos, aqui temos o extremo oposto. Pacotes favorecem o subtratamento, a alta precoce e a seleção de doentes de menor risco, já que quanto mais grave for o paciente, maior a possibilidade de necessitar de mais cuidados e recursos. Neste modelo, da mesma forma que no fee for service, não há incentivo à mensuração dos desfechos clínicos e de valor para o paciente.
Entre os modelos de remuneração, o que não deveria ser colocado de lado é o desempenho dos prestadores e o valor agregado que é entregue ao paciente, tanto em desfechos tradicionais, como sobrevida e taxas de infecção, quanto também naqueles que representam valores fundamentais para o indivíduo, incluindo qualidade de vida, preferências e outros desfechos clínicos secundários relevantes para o paciente. Neste sentido, surgem os modelos de pagamento baseados em valor.
Valor em saúde é definido como a relação entre os resultados que importam para os pacientes e o custo para atingir esses resultados, considerando-se também a pertinência do procedimento em questão. A remuneração baseada em valor prioriza a melhoria da atenção à saúde, aliada à redução de custos desnecessários.
O pagamento por performance, por exemplo, funciona como um incentivo aos melhores cuidados, podendo vir acoplado ao fee for service, estimulando o pagamento adicional para aqueles prestadores com melhores desempenhos. O DRG (Diagnosis Related Groups) permite que valores de pacotes sejam ajustados de acordo com a gravidade e complexidade do paciente em questão.
O modelo bundle incentiva um melhor cuidado, uma vez que o valor pago pela hospitalização engloba todo o ciclo de cuidado da jornada do paciente. Caso ele venha a apresentar complicações decorrentes de procedimentos mal-sucedidos, ou decisões inadequadas, o prestador não receberá além do valor pré acordado, o que estimula uma maior preocupação com a qualidade do atendimento. No capitation, o prestador paga um valor fixo por pessoa em determinado grupo populacional. Quanto mais for investido em prevenção e quanto mais precocemente potenciais doenças forem diagnosticadas, menor será a complexidade dos pacientes no médio e longo prazo. Na atenção básica, ele é mais facilmente aplicável. Em alta e média complexidade, o prestador passa a correr um risco muito maior. No pagamento por orçamento global, toda a programação orçamentária de determinada população, considerando todos os serviços prestados a ela, é repassada à unidade de saúde pela fonte pagadora em períodos pré-determinados, como um ano, por exemplo. Apesar de trazer previsibilidade financeira, o prestador pode ter uma demanda maior do que a prevista, evitando pacientes com maior complexidade e levando ao subcuidado de seu grupo. A aferição dos indicadores de qualidade se faz fundamental para evitar tais danos. O modelo de compartilhamento de risco permite a avaliação do desempenho de determinadas tecnologias, como medicamentos, devices ou insumos, no ambiente de mundo real, compartilhando então o risco de potencial ineficiência entre o fabricante e a fonte pagadora.
É importante destacar que não há um único modelo ideal de remuneração dentro de um sistema de saúde. Para situações específicas, modalidades diferentes de pagamento podem melhor se adequar. Para doenças crônicas e pacotes cirúrgicos, o bundle pode ser uma boa opção. Para pacientes na atenção primária, o capitation é indicado. Para novas tecnologias que ainda apresentam determinado grau de incerteza quanto à sua efetividade, o compartilhamento de risco seria adequado. Até mesmo o fee for service pode ser bem indicado, em situações em que se deseja estimular a utilização de algum serviço que provavelmente não ocorreria dentro de modelos com pacotes como, por exemplo, visitas domiciliares de pacientes na atenção básica.
Desafios à mudança
Alguns desafios surgem para a aplicação dos modelos de remuneração mais adequados do que o fee for service ou pacotes simples. Para eles, a coleta de informações é fundamental. Sem dados, sem indicadores, não se pode avaliar a performance nem o valor entregue ao paciente. Operadoras precisam investir, então, na coleta de dados de qualidade, análise de big data e uso de inteligência artificial. É necessária a inclusão não somente de dados internos das instituições, mas também de outros pontos de atendimento, como laboratórios, clínicas de imagem e emergências. Além disso, são fundamentais os dados de desfechos clínicos e desfechos reportados pelos pacientes. Outros desafios para a saúde incluem a redução de desperdícios e maiores investimentos em prevenção e atenção primária. Pacientes precisam entender que desperdícios, exames, consultas e procedimentos mal indicados ou em exagero não são benéficos nem mesmo para eles. Profissionais de saúde precisam ter a mesma consciência, além de ter como foco a melhor performance possível em relação a seus pacientes, quebrando uma potencial resistência a mudanças. Prestadores, fornecedores e operadoras precisam encontrar o equilíbrio, onde haja ganhos para todos os envolvidos. Qualidade e custo precisam estar conectados durante todo o ciclo de cuidado da população.
É possível manter o paciente como objetivo central?
Modelos de remuneração impactam de forma relevante os modelos de assistência à saúde, e isto é inegável. Sozinhos podem não ser capazes de trazer todas as mudanças que o sistema precisa para garantir o balanço entre qualidade e sustentabilidade, mas todos os atores envolvidos na Saúde Suplementar precisam estar engajados e buscando o mesmo objetivo: um equilíbrio na utilização de diferentes modelos de remuneração para cada situação em que melhor se encaixe, buscando não só a sustentabilidade do setor, mas, principalmente, o melhor desfecho possível para o paciente.
Este artigo foi produzido por Roberta Arinelli, Medical Director na ORIGIN Health Co. e colunista da MIT Technology Review Brasil.