Na RightsCon, em Taiwan, ativistas encaram o recuo dos EUA na promoção dos direitos digitais
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Na RightsCon, em Taiwan, ativistas encaram o recuo dos EUA na promoção dos direitos digitais

O governo dos Estados Unidos passou de protagonista no apoio a uma internet aberta e segura para um exemplo de como desmontá-la.

Nos dias 24 a 27 de fevereiro, juntei-me a mais de 3.200 ativistas de direitos digitais, formuladores de políticas tecnológicas, pesquisadores e alguns representantes de empresas de tecnologia em Taiwan, na RightsCon, a maior conferência mundial sobre direitos digitais.

Conferências de direitos humanos podem ser, no mínimo, desanimadoras. Elas evidenciam a situação de Davi contra Golias: pequenas organizações da sociedade civil lutando para colocar os direitos humanos no centro das decisões sobre tecnologia, frequentemente desafiando as prioridades de governos e empresas de tecnologia muito mais poderosos.

Mas a RightsCon de 2025, a 13ª edição desde que o evento começou como Conferência de Direitos Humanos do Vale do Silício em 2011, pareceu especialmente urgente. Isso se deveu, principalmente, ao desmantelamento chocante e rápido do governo federal dos EUA por meio da iniciativa DOGE – Department of Government Efficiency, liderada por Elon Musk, e às repercussões que isso pode ter em todo o mundo.

Na conferência, os cortes na USAID (uma das maiores agências de ajuda humanitária do mundo) foram uma das principais preocupações; a agência de desenvolvimento tem sido, por muito tempo, um dos maiores financiadores mundiais de iniciativas em direitos digitais — de garantir o funcionamento da internet durante eleições e crises globais até apoiar linhas diretas de segurança digital para defensores de direitos humanos e jornalistas alvos de vigilância e ataques hackers. Agora, a agência enfrenta cortes orçamentários superiores a 90% sob a administração Trump.

A retirada de financiamento representa uma ameaça existencial para a comunidade internacional de direitos digitais — e acompanha outras tendências preocupantes para quem apoia uma internet livre e segura. “Infelizmente, estamos testemunhando a erosão… do multissetorialismo, com restrições à participação da sociedade civil, retrocessos democráticos em todo o mundo e empresas abandonando políticas e práticas que sustentam os direitos humanos”, disse Nikki Gladstone, diretora da RightsCon, em seu discurso de abertura.

Cindy Cohn, diretora da Electronic Frontier Foundation (EFF), que defende as liberdades civis digitais, foi mais direta: “A escala e a velocidade dos ataques aos direitos das pessoas são inéditas. É de tirar o fôlego”, disse ela.

Mas não são apenas os cortes de financiamento que vão restringir os direitos digitais globalmente. Como vários palestrantes destacaram ao longo da conferência, o governo dos EUA deixou de liderar o apoio a uma internet aberta e segura para se tornar um exemplo de como desmantelá-la. Eis o que os participantes estão observando:

As políticas da administração Trump estão sendo usadas como arma em outros países

No dia 25 de fevereiro, pouco antes do início da RightsCon, autoridades policiais da Sérvia invadiram os escritórios de quatro organizações locais da sociedade civil voltadas à responsabilização governamental, citando acusações (não comprovadas) de Musk e Trump sobre fraudes na USAID.

“O Departamento Especial de Anticorrupção… da Sérvia entrou em contato com o Departamento de Justiça dos EUA para obter informações sobre a USAID referentes ao uso indevido de fundos, possível lavagem de dinheiro e gasto inadequado de verbas dos contribuintes americanos na Sérvia”, explicou Nenad Stefanovic, promotor de justiça, em uma transmissão de TV anunciando a ação.

Para os participantes da RightsCon, foi um exemplo claro — e familiar — de como regimes opressores encontram ou inventam motivos para perseguir críticos. Agora, ao usar as justificativas da administração Trump para revogar o financiamento da USAID, esperam obter uma aparência adicional de credibilidade.

Ashnah Kalemera, gerente de programas da CIPESA, uma ONG de Uganda que promove tecnologia para participação cívica na África, afirma que os ataques de Trump e Musk à USAID estão criando narrativas falsas que “justificam prisões, intimidações e a contínua repressão às organizações da sociedade civil — organizações que, obviamente, já não possuem os recursos para continuar seu trabalho”.

Yasmin Curzi, professora da FGV Direito no Rio de Janeiro e especialista em direito digital, afirma que a política americana também está sendo usada como arma nos assuntos internos do Brasil. Lá, disse ela, figuras da direita vêm erguendo cartazes em protestos com frases como “Trump, salve-nos!” e “Protejam nossos direitos da Primeira Emenda”, que o país sequer possui. Em vez disso, o Marco Civil da Internet busca equilibrar a proteção à privacidade e à liberdade de expressão com responsabilidades criminais para certos tipos de conteúdo nocivo, incluindo desinformação e discurso de ódio.

Apesar das diferenças legais, no fim de fevereiro o Trump Media & Technology Group, que opera a rede Truth Social, e a plataforma de vídeo Rumble tentaram impor proteções ao estilo americano de liberdade de expressão no Brasil. Eles processaram o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes por banir um influenciador digital brasileiro que fugiu para os EUA para evitar a prisão sob acusações de disseminar desinformação e discurso de ódio. Truth Social e Rumble alegam que Moraes violou as leis americanas de liberdade de expressão.

(Um juiz americano decidiu posteriormente que, como o tribunal brasileiro ainda não havia oficialmente notificado a Truth Social e a Rumble conforme exigido por tratado internacional, o processo era prematuro e as empresas não precisavam cumprir a ordem; o juiz não comentou o mérito do caso, embora as empresas tenham alegado vitória.)

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As plataformas estão menos dispostas a se engajar com comunidades locais

Além do risco de Trump e Musk inspirarem ações semelhantes em outros países, palestrantes também expressaram preocupação de que suas provocações e uso de linguagem e imagens desumanizantes estimulem mais ódio (e ataques) online, justo quando as plataformas estão reduzindo a moderação humana de conteúdo. Especialistas alertam que sistemas automatizados de moderação, treinados em conjuntos de dados em inglês, não conseguem detectar muito desse discurso de ódio.

Na Índia, por exemplo, já houve casos em que plataformas reconheceram a necessidade de moderadores que falem línguas locais, mas falharam em implementá-los — o que levou à violência no mundo real. Agora, a atitude de alguns usuários da internet lá se tornou “Se o presidente dos EUA pode fazer isso, por que eu não posso?”, questiona Sadaf Wani, gerente de comunicação da ONG indiana IT for Change, que organizou um painel sobre discurso de ódio e IA na RightsCon.

Como apontado em seu painel, esses ataques online ocorrem em paralelo ao aumento da moderação de conteúdo automatizada — e até mesmo inteiramente baseada em IA —, treinada principalmente em dados da América do Norte, o que torna o sistema menos eficaz para detectar linguagem problemática em outros idiomas. Mesmo os modelos de linguagem mais avançados ainda têm dificuldades em identificar gírias locais, contexto cultural e uso de caracteres não ingleses. “A IA não é tão inteligente quanto parece, então você pode usar truques bem óbvios e básicos para escapar da detecção. Acho que isso também está amplificando ainda mais o discurso de ódio”, explica Wani.

Outros participantes, incluindo Curzi e Kalemera, relataram tendências semelhantes em seus países — e afirmam que mudanças na política das plataformas e a ausência de equipes locais tornam a moderação ainda mais difícil. Segundo Curzi, as plataformas costumavam ter humanos no processo com os quais os usuários podiam interagir. Ela destacou os esforços de moderação de conteúdo no Twitter, que considerava relativamente eficazes no combate ao discurso de ódio até que Elon Musk comprou a plataforma e demitiu cerca de 4.400 trabalhadores terceirizados — incluindo toda a equipe que trabalhava com os parceiros de moderação de conteúdo no Brasil.

Curzi e Kalemera afirmam que a situação piorou desde então. Em 2024, Trump ameaçou o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, declarando que ele “passaria o resto da vida na prisão” se a Meta tentasse interferir — ou seja, checar fatos — nas alegações sobre as eleições de 2024. Em janeiro, a Meta anunciou que substituiria seu programa de checagem de fatos por notas comunitárias no estilo da plataforma X, movimento amplamente visto como capitulação à nova administração.

Pouco depois da segunda posse de Trump, plataformas sociais não compareceram a uma audiência sobre discurso de ódio e desinformação realizada pelo Advocacia Geral da União (AGU) do Brasil. Embora fosse esperado da X, o mesmo posicionamento não era esperado da Meta, segundo Curzi. “Desde o início da segunda administração Trump, não podemos mais contar com elas [as plataformas] nem para o mínimo”, acrescenta. Meta e X não responderam aos pedidos de comentário.

O recuo dos EUA está criando um vácuo moral

Há ainda o simples fato de que os Estados Unidos já não podem ser considerados no apoio a defensores de direitos digitais ou jornalistas sob ataque. Isso cria um vácuo, e não está claro quem mais está disposto — ou é capaz — de ocupá-lo, disseram os participantes.

Os EUA costumavam ser “o principal apoio para jornalistas em regimes repressivos”, tanto financeiramente quanto moralmente, disse uma treinadora de jornalismo durante uma sessão de última hora adicionada ao cronograma para tratar da crise de financiamento. O fato de que agora não há para quem recorrer, acrescentou ela, torna a situação atual “sem comparação com o passado”.

Mas isso não significa que tudo seja pessimismo. “Você podia sentir a solidariedade e a comunidade”, afirmou Cohn, da EFF. “E ter a conferência em Taiwan, que vive sob a sombra de um governo muito poderoso e muitas vezes hostil, pareceu especialmente apropriado.”

De fato, se houve um tema que se repetiu durante o evento, foi o desejo compartilhado de repensar e desafiar quem detém o poder.

Várias sessões, por exemplo, focaram em estratégias para enfrentar tanto plataformas de Big Tech indiferentes quanto governos repressivos. Durante a sessão sobre IA e moderação de discurso de ódio, participantes concluíram que uma maneira de criar uma internet mais segura seria organizações locais desenvolverem modelos de linguagem localizados, específicos em contexto e idioma. No mínimo, disse Curzi, poderíamos migrar para outras plataformas menores, que estejam alinhadas aos nossos valores, porque, neste momento, “as grandes plataformas podem fazer o que quiserem”.

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