Q+A Diego Santoro – CAR-T: a história contada por 29 mil vidas
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Q+A Diego Santoro – CAR-T: a história contada por 29 mil vidas

O gerente-geral da Gilead Kite para a região Internacional fala sobre
resultados, desafios e o futuro do medicamento de terapia avançada
CAR-T no Brasil e no mundo.

Por trás de cada célula do corpo humano, há uma história. Resultado da convergência entre imunologia e engenharia genética, o medicamento de terapia avançada CAR-T é considerado uma das inovações mais disruptivas da medicina contemporânea. A terapia utiliza células do próprio paciente, geneticamente modificadas em laboratório e depois reinfundidas no organismo, para identificar e destruir apenas células tumorais. Ao reconfigurar o sistema imunológico para atuar de forma direcionada, essa abordagem oferece uma nova perspectiva de vida a pessoas com cânceres hematológicos agressivos e refratários – e, no futuro, pode ampliar seu alcance para outros tipos, como os tumores sólidos.

Diante da complexidade envolvida na produção e na aplicação desse tratamento altamente personalizado, a Gilead Kite estruturou um modelo verticalizado que vai desde a fabricação do vetor viral utilizado no produto até o acompanhamento da infusão hospitalar no paciente. Essa estratégia garante mais segurança, rastreabilidade e agilidade ao processo terapêutico.

O principal produto da companhia foi aprovado pela primeira vez em 2017, pela Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória norte-americana. O estudo ZUMA-1 que embasou o registro sanitário para o tratamento de linfoma de grandes células B (LGCB), apontou para uma taxa de resposta objetiva de 82%, sendo que 58% dos pacientes apresentaram remissão completa da doença. No Brasil, a terapia foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2022.

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, Diego Santoro, gerente-geral da Gilead Kite para a região Internacional, compartilha os aprendizados e desafios acumulados ao longo dessa jornada, com base na história de mais de 29 mil pacientes tratados globalmente. À frente da introdução do CAR-T da Gilead Kite no Brasil — e com atuação em mercados no Oriente médio e Asia, Santoro traça um panorama sobre o presente e o futuro dessa inovação.

MIT Technology Review Brasil: Como tem sido sua trajetória à frente da Gilead Kite na região Internacional e quais foram os principais aprendizados ao liderar a introdução do CAR-T no Brasil?

Diego Santoro: O CAR-T é um medicamento inovador que trouxe muitas novidades para o sistema de saúde. Do ponto de vista regulatório, como não existia essa terapia antes, o primeiro obstáculo foi classificá-la. Aqui, no Brasil, a Anvisa entendeu que se trata de um medicamento, assim como na maior parte do mundo.

Depois, surgiram muitos outros desafios. Por ser uma terapia personalizada, em que as células do próprio paciente são a matéria-prima do medicamento, é preciso garantir que essa coleta seja feita de maneira adequada, para que as células sejam transformadas no produto e retornem ao mesmo paciente. E, claro, que tenham o efeito esperado. Vemos resultados muito significativos com os dados de vida real que temos hoje.

Entrei na Gilead Kite há quatro anos e a primeira etapa foi estruturar o time no Brasil para receber o medicamento de terapia avançada CAR-T. Por se tratar de uma tecnologia altamente inovadora, não havia experiência prévia no mercado. Foi necessário montar um time multidisciplinar do zero, com profissionais das áreas de acesso, regulação, hematologia, qualidade e logística.

A partir do momento em que estruturamos o time, começamos a trabalhar no material para a submissão regulatória. Surgiram algumas perguntas, e contamos com o apoio do time global, que nos ajudou a responder à Anvisa de forma ágil. Conseguimos uma aprovação rápida, antes mesmo do que esperávamos.

Em seguida, veio a submissão de preço para avaliação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), uma etapa obrigatória após o registro do produto. Quando o sistema não está preparado para esse tipo de tecnologia, o que acontece? Ela acaba sendo categorizada sem regras muito bem estabelecidas. Ao contrário do processo de registro sanitário, essa etapa demorou mais do que o previsto. E acredito que isso tenha a ver com o nível de preparação.

A Anvisa se preparou para receber essa terapia; nós também nos preparamos. A etapa de precificação foi diferente e isso acabou prolongando o tempo, gerando discussões importantes sobre como precificar medicamentos de dose única, com efeitos que podem durar mais de cinco anos, baseados em dados clínicos que mudaram drasticamente o padrão anterior. Antes, metade dos pacientes, em seis meses, infelizmente, já não estava mais viva. Com o CAR-T, passamos a ver pacientes que, após cinco anos, ainda estão vivos. A sobrevida é realmente significativa. Como quantificar e precificar isso muda completamente a lógica vigente.

MIT TR BR: E como você avalia o impacto da terapia com células CAR-T, nos sistemas de saúde e na vida dos pacientes?

Diego: Eu posso dar minha opinião, mas mais importante do que ela é a opinião dos sistemas de saúde ao redor do mundo. No início, era uma promessa baseada em estudos clínicos controlados, que foram utilizados para o registro sanitário. No nosso caso, já temos um medicamento que está no mercado mundial desde 2017, com mais de 29 mil pacientes tratados. Hoje, não há dúvida de que a terapia vale a pena do ponto de vista clínico, porque ela traz benefício em vida real.

E ela também vale a pena do ponto de vista econômico. Nos países onde existe um sistema de saúde centralizado — como Itália, Inglaterra, França, Alemanha e Japão —, essa terapia é padronizada para que os pacientes, independentemente de terem plano de saúde privado ou não, tenham acesso a esse tipo de medicamento. Nenhum país está em condição de afirmar que vai financiar uma terapia sem ter certeza de que ela funcionará para os pacientes. Eu não tenho dúvidas de que faz sentido para os sistemas de saúde.

Obviamente, os países não têm a mesma realidade econômica, e isso impacta o acesso. No Brasil, ainda é preciso bastante trabalho para que o acesso se torne realidade. E estamos juntos nesse esforço, porque essa terapia realmente transforma a vida das pessoas.

MIT TR BR: A cadeia produtiva das terapias com células CAR-T é complexa. Como a Gilead Kite estruturou sua operação para garantir a entrega dos tratamentos?

Diego: Eu preciso garantir que, quando o paciente tenha a possibilidade de extrair as células para que elas sejam transformadas em produto, eu possa fazer isso. A velocidade de progressão dessas doenças é muito alta. Se você perde dois ou três meses porque não tinha insumo para realizar o processo, pode perder a oportunidade de, potencialmente, curar um paciente.

Percebemos que o tempo é crucial. Analisamos onde estavam nossos mercados iniciais para garantir que a transformação das células fosse feita sem perda de dias nesse processo. Por isso, estabelecemos uma fábrica na Califórnia, nos Estados Unidos, e depois abrimos uma unidade na Holanda, para atender ao mercado europeu. Tudo isso para garantir agilidade na produção e assegurar que as equipes estivessem treinadas, evitando falhas na manufatura.

Outro cuidado que tivemos está relacionado a uma parte muito importante do processo fabril desses produtos, que é o vetor viral. Ele é um ingrediente desse processo, é o que realmente faz com que as células se transformem no produto de acordo com a engenharia celular que desenvolvemos. Nós também implementamos um centro, nos Estados Unidos, que fabrica nosso próprio vetor viral. O que a maior parte das empresas faz é comprar esse vetor viral para o seu produto. Obviamente, se esse terceiro não tem o insumo para você fazer o seu produto, você não consegue produzir.

Nós temos o processo 100% verticalizado, desde o vetor viral até o produto e a sua entrega. Hoje, somos os líderes globais em CAR-T por todos esses fatores. Quando você tem essa experiência, você pode estar na linha de frente dos próximos produtos que estão por vir.

MIT TR BR: O Brasil foi pioneiro na regulação de produtos de terapia avançada na América Latina. O que diferencia o país nesse cenário e quais ainda são os principais entraves?

Diego: Quando tomamos a decisão de vir para o Brasil, obviamente vários fatores foram analisados. Identificamos o país como o mais adequado da América Latina para essa expansão. Muitas vezes, as pessoas acham que isso se deve ao fato de ser o maior país da região, com mais pacientes. Claro que esse é um fator considerado na análise, mas não é o principal. O mais importante é a capacidade técnica existente no país para que essa terapia se tornasse realidade.

Como já mencionamos, trata-se de uma terapia muito inovadora, e não é qualquer lugar que consegue viabilizá-la. Precisávamos de um sistema de saúde em que os órgãos reguladores entendessem como esses medicamentos deveriam ser avaliados, e isso se concretizou. A Anvisa foi capaz de avaliar todos os nossos dados de maneira exemplar, sem deixar nada a desejar em relação a nenhum país do mundo.

O segundo ponto era a necessidade de hospitais que pudessem absorver essa tecnologia, garantindo que as células fossem coletadas e reinfundidas da maneira ideal para aumentar o sucesso clínico. Acreditávamos que os hospitais brasileiros teriam essa capacidade, e eles realmente provaram que têm. Hoje, temos 20 hospitais no Brasil que absorveram a tecnologia, tratam pacientes e entregam os resultados esperados. Também era fundamental contar com médicos e outros profissionais de saúde qualificados.

Muito do que previmos se concretizou. No entanto, um dos maiores desafios que enfrentamos hoje, infelizmente, é a questão do acesso. Nossa interpretação da regulamentação brasileira, no sistema privado, era de que todos os medicamentos hospitalares deveriam ser reembolsados pelos pagadores privados. Essa foi a nossa premissa. No entanto, o que vemos no país é que esses pagadores interpretaram que, por ser um medicamento inovador, ele não deveria ser tratado como as demais terapias de infusão hospitalar para uso oncológico.

Esse debate tem feito com que, infelizmente, o acesso nem sempre seja disponibilizado. E essa oportunidade — já comprovada em 29 mil pacientes, em mais de 40 países — ainda não conseguimos demonstrar com a mesma agilidade no Brasil. Esse debate continua em andamento. Ainda não obtivemos um desfecho na velocidade que esperávamos, para que a saúde suplementar reconhecesse o valor desse medicamento para os pacientes de suas carteiras.

Por outro lado, vemos que os médicos já compreenderam esse valor, os hospitais também, e os pacientes mais ainda. Esperamos que, em breve, os pagadores também reconheçam os benefícios de longo prazo que esse medicamento oferece tanto para suas carteiras quanto para o sistema de saúde como um todo, como já ocorre na maior parte dos países.

Outro desafio importante no Brasil é a dimensão territorial. Já contamos com 20 centros qualificados, mas os médicos que estão longe desses centros precisam estar preparados para identificar corretamente os pacientes e referenciá-los para tratamento. Quando se trata de pacientes que estão a milhares de quilômetros desses centros, a logística se torna um obstáculo, especialmente considerando que são pessoas doentes.

Continuamos expandindo nossa rede de centros e temos a aspiração de seguir crescendo no Brasil. Queremos estar mais próximos dos pacientes, para que médicos possam referenciá-los a tempo, garantindo que tenham essa oportunidade de potencial cura quando diagnosticados e encaminhados no momento certo. Também esperamos que os pagadores aprovem mais rapidamente esse tratamento, porque o tempo perdido, pode significar perda de sobrevida.

MIT TR BR: Modelos como o compartilhamento de risco ou pagamento parcelado já têm sido aplicados em outros países. Como trabalhar essa construção para ampliar o acesso no Brasil?

Diego: Existem vários modelos e, para mim, a chave está exatamente na construção de uma solução. Se você entra nessas discussões com o objetivo de desconstruir uma trajetória de mais de oito anos desse tipo de terapia no mercado, com mais de 29 mil pacientes tratados apenas com o nosso produto, na prática, não está buscando resolver o problema. Está desconstruindo para mantê-lo.

Os países que conseguiram avançar encontraram soluções por meio do diálogo. Já implementamos modelos de compartilhamento de risco em alguns mercados e contamos também com modelos de parcelamento. É possível adaptar essas alternativas à realidade de cada país. As soluções existem. O essencial é construir, em conjunto, um modelo adequado, e não criar mais obstáculos para os pacientes, porque o caminho que eles enfrentam já é difícil o suficiente. Nós precisamos de rampas, de trampolins, para que eles possam ter acesso a essa oportunidade de tratamento.

MIT TR BR: Como a tecnologia pode contribuir para acelerar a adoção e melhorar os resultados dessas terapias?

Diego: Precisamos estar abertos a entender as oportunidades e construir junto com a inovação. Na nossa empresa, por exemplo, estamos utilizando cada vez mais inteligência artificial em estudos clínicos para tentar acelerar processos e aumentar nosso índice de sucesso. Acredito que possamos aplicar esse tipo de tecnologia em conjunto com os medicamentos de terapia avançada que estamos desenvolvendo para ampliar o acesso e encontrar modelos alternativos que talvez ainda não tenhamos conseguido enxergar. Se não utilizarmos essas tecnologias em complemento à nossa capacidade humana, corremos o risco de perder uma grande oportunidade de aceleração.

MIT TR BR: Quais frentes mais promissoras estão em estudo no pipeline da Gilead Kite para os próximos anos?

Diego: Em cânceres hematológicos, temos uma terapia em desenvolvimento para outro tipo de câncer do sangue e esperamos, em breve, compartilhar mais dados com as sociedades médicas e científicas. Também temos investido fortemente em doenças autoimunes, como o lúpus. Além disso, estamos focados em tumores sólidos, ou seja, cânceres que não envolvem o sangue, e conduzindo diversos estudos em blastomas.

Acredito que, nos próximos cinco a dez anos, veremos mudanças significativas nesse campo. Teremos muitas outras opções terapêuticas, o que representará mais oportunidades para os pacientes.

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