Q+A Anderson Mendes – Tecnologia para quem enxerga valor em saúde
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Q+A Anderson Mendes – Tecnologia para quem enxerga valor em saúde

Recursos tecnológicos permeiam a pirâmide etária dos beneficiários de planos de saúde, dos idosos aos mais jovens. As pessoas entenderam que receber cuidado e cuidar da própria saúde ficou mais fácil, e barreiras de utilização se desfizeram.

Se existisse um lugar com uma população composta apenas por beneficiários das operadoras de planos de saúde de autogestão, sua pirâmide etária causaria preocupação do ponto de vista da sustentabilidade: nela, estariam quase 15 milhões de pessoas; o topo se alargaria, e a base ficaria mais estreita com o passar dos anos.

A tendência acompanha a alteração demográfica do Brasil no século XXI, mas supera o ritmo observado em outras classificações de operadoras existentes na saúde suplementar. Segundo a União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas), entidade representativa do segmento, cerca de 30% dos usuários assistidos dentro da modalidade já passaram dos 60 anos, algo que representa um número de idosos cinco vezes maior do que o atendido pelas seguradoras.

Esse cenário resulta da própria natureza das autogestões. Como os produtos são geridos por empresas públicas e privadas, sem a finalidade de obtenção de lucro e tendo como usuários seus próprios funcionários e dependentes, eles oferecem assistência em saúde a um número significativo de aposentados que continuam sob seu guarda-chuva ainda estejam inativos, ou seja, dando lugar para outros ocuparem esse espaço.

Em compensação, a captação de dados ao longo da vida desses beneficiários permite que haja por parte dos gestores maior controle da jornada do paciente, que ganha novos contornos com o avanço acelerado da digitalização do setor na era do big data. Engana-se quem pensa que o uso de tecnologias e, principalmente da telessaúde, teve baixa adesão entre os mais velhos no momento agudo da pandemia da Covid-19 e até mesmo depois dele.

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, o presidente da Unidas, Anderson Mendes, afirma que a experiência serviu para quebrar o paradigma de que o idoso é resistente ao mundo tecnológico. Para ele, a lição foi clara: a tecnologia conquista aquele que enxerga valor em seu uso.

“A ideia que se tem de que o idoso é avesso à tecnologia não colou. Isso, na prática, não aconteceu. Tivemos a surpresa muito favorável de que os idosos estão realmente adeptos. Precisamos começar a abandonar esse estigma. Os beneficiários vão ser adeptos da tecnologia sempre que a tecnologia entregar valor. Esse é o ponto”, avalia.

MIT Technology Review Brasil: Qual é o perfil dos beneficiários das operadoras de planos de saúde de autogestão?

Anderson Mendes: Até por sermos os primeiros planos de saúde criados no Brasil, carregamos o histórico desses beneficiários. Como eles fazem parte de um coletivo, parte de um “clube” – fazendo uma analogia bem simples –, são pessoas que participam desse plano durante muitos anos. Eu represento também a CASSI, que é o plano de saúde do Banco do Brasil, do qual eu sou funcionário, por isso sou filiado da Unidas também. Nós temos pessoas com 40 anos de CASSI. A carteira de autogestão, tem, hoje, cerca de 30% de idosos. Isso representa cinco vezes mais idosos do que tem uma seguradora, por exemplo, por essa característica de as pessoas permanecerem dentro do seu regime. Nós temos uma proporção de aposentados, dentro da autogestão, muito maior do que os planos privados de categoria aberta, que geralmente estão ligadas ao empregador. Se você perde o emprego ou se aposenta, você não tem mais o plano de saúde. Aquelas empresas que têm como foco a autogestão colocam essa possibilidade de o participante, mesmo aposentado, continuar fazendo parte do plano. Então, temos um número grande de idosos como uma característica.

Uma cláusula pétrea da autogestão é não ter fins lucrativos, então nenhuma empresa do segmento está visando ao lucro ou visando a ter a rentabilidade financeira por meio de um plano de saúde. Nada contra, faz parte do jogo, mas a nossa regra é ter planos sem fins lucrativos, e o nosso objetivo é ser muito voltado para a assistência. Então, muitas vezes as pessoas veem na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que a autogestão tem a sinistralidade alta. Sim, podemos gastar mais, porque não temos o objetivo de pagar dividendos, de ter lucro. Não temos veias comerciais, porque nós não vendemos planos, nós somos grupos fechados. Isso torna o segmento diferente.

MIT Technology Review Brasil: Do ponto de vista da sustentabilidade, a tecnologia pode ser uma solução para lidar com o envelhecimento da população? 

Anderson Mendes: A transformação digital vai acontecer. Está acontecendo. Estamos vivendo essa transformação digital, falando de saúde 5.0, de big data analytics, tendo uma utilização melhor das informações, desses dados. As autogestões têm esse desafio do envelhecimento maior do que o mercado privado, mas não é um desafio maior, por exemplo, do que na Europa. A questão do envelhecimento é uma questão mundial. Nosso grande problema, no Brasil, é que estamos envelhecendo muito mais rápido do que envelheceu a Europa, e envelhecendo em um país mais pobre. Temos essas duas cargas de dificuldade.

Hoje, você ter mecanismos que possibilitam mudar a forma de dar atenção à saúde para lidar melhor com esse tipo de carteira. Se antes tínhamos uma carga de doenças mais alta, com muitas doenças transmissíveis, doenças também ligadas ao envelhecimento, eles trazem uma condição diferente de tratamento. Quando você está tratando acidentes, doenças transmissíveis, infarto, você está tratando naqueles momentos mais agudos e você prepara uma estrutura hospitalar que vai dar conta disso. Quando você está falando de doenças ligadas ao envelhecimento, você está falando de doenças silenciosas. Você está falando de hipertensão, de diabetes, que você precisa trabalhar em uma fase precoce. Quando você melhora a coordenação do cuidado dessas pessoas para trabalhar na prevenção de doenças, você começa a ter um adiamento da chegada dessas comorbidades, que são prevalentes na população idosa. Você faz também com que esse idoso não esteja em uma situação tão grave quando chegar ao sistema de saúde. Isso garante menos chances de sequelas, faz com que esse atendimento seja menos custoso, o que também ajuda financeiramente, mas o foco é a qualidade de vida.

A tecnologia vem como uma ferramenta, mas não pode ser vista como uma solução. A solução está na estratégia que você tem para cuidar das pessoas. Um exemplo forte foi o que aconteceu com a telemedicina na pandemia. Eu sempre falei para as empresas filiadas: se implementarmos a telemedicina como mais uma porta aberta, a pessoa vai poder ser atendida via telemedicina ou ir ao pronto-socorro ou ir ao consultório. Ela vai continuar perdida, vai continuar em um sistema fragmentado. Se eu fizer telemedicina dessa forma, vou levar o problema do mundo real para o mundo virtual. Agora, se eu tenho uma coordenação do cuidado, a telemedicina vai ser importante para eu fazer a triagem, para eu fazer um primeiro atendimento, para eu fazer um acompanhamento. A telemedicina é uma ótima ferramenta para isso, mas ela não pode estar solta. Ela tem que estar dentro de uma estratégia.

A tecnologia é importante para você ter acesso a essas pessoas, que no presencial você tem dificuldade de acompanhar. A tecnologia, quando bem utilizada, aproxima o plano de saúde dos beneficiários. Alguns dizem que a tecnologia vai esfriar o atendimento, que vai tornar o atendimento não humanizado, mas não. Se você fizer bem feito, não tem nada mais humanizado do que ter o cuidado à porta quando você precisar, do que ter alguém analisando o que está acontecendo com você. Quando você menos imaginar, vai ter alguém te ligando para saber se você tomou um remédio ou se está tendo alguma complicação por conta dele. O índice de abandono de tratamentos no Brasil e no mundo é muito alto. Os remédios têm efeitos adversos. Se a pessoa toma um remédio e tem náusea, ela para de tomar o remédio. Mas, se você estiver acompanhando, pode conseguir conscientizá-la. Para as autogestões, é importante trazer a tecnologia para se aproximar. Além dessas características de serem funcionários, de serem idosos, nós estamos no Brasil todo. A autogestão está em muitos lugares em que o mercado privado não está. Vou citar a minha empresa, a CASSI, do Banco do Brasil. Temos beneficiários no interior do Amazonas, no interior do Pará, no interior de Minas Gerais, no interior de São Paulo, no interior da Bahia. Há lugares em que eu não tenho acesso, eu não tenho o serviço de saúde. Então, a tecnologia me possibilita encontrar essas pessoas.

Por último, a tecnologia é fundamental para transformar todos os dados que eu tenho, porque todos os dias meus beneficiários estão fazendo atendimento. Como é que eu olho, então, para essas ocorrências, para esses dados, e gero informações que me ajudem a tomar decisão? Eu começo a analisar: se algumas pessoas tiveram infarto, o que aconteceu com elas antes desse episódio? Elas tiveram uma trilha. Então, eu posso criar um modelo preditivo para dizer se outras pessoas que estão caminhando nessa mesma trilha amanhã podem ter infarto. Há uma probabilidade muito grande de encontrar as pessoas certas para fazerem os tratamentos certos. Isso é fundamental.

MIT Technology Review Brasil: Mas precisa haver, também, o engajamento desses beneficiários. Considerando a experiência da pandemia, o que foi possível extrair sobre isso? Os idosos são avessos à tecnologia?  

Anderson Mendes: Quando falamos de tecnologia, nesse mundo de inovação aberta, de startups, a primeira coisa que discutimos com esses grupos é que não pode haver paradigmas. Temos que quebrar essas hipóteses, quebrar esses jargões e fazer acontecer diferente. E a pandemia nos ajudou a mostrar isso. A ideia que se tem de que o idoso é avesso à tecnologia não colou. Isso, na prática, não aconteceu. Tivemos uma surpresa muito favorável de que os idosos estão realmente adeptos. Precisamos começar a abandonar esse estigma. Os beneficiários vão ser adeptos da tecnologia sempre que a tecnologia entregar valor. Esse é o ponto. A escolha não acontece por eu ser mais novo ou mais idoso, é porque eu enxergo, nessa tecnologia, valor. Quando eu estou em uma pandemia e sair de casa é um problema porque ainda não tem vacina disponível e os idosos são os mais acometidos pela Covid-19, como aconteceu em 2020, eu corro um risco muito maior se eu não fizer uma consulta em casa. A entrega de valor é tão grande que a resistência à tecnologia cai em um minuto.

É importante destacar que as nossas tecnologias atuais são diferentes daquelas do passado. Antes, para você utilizar um computador ou uma máquina, havia muitas limitações. A tecnologia também evoluiu para se tornar amigável e intuitiva. Você recebe um celular, hoje, sem manual, mas anos atrás um dispositivo de música vinha com um manual de 50 páginas. Se a tecnologia é intuitiva para mim, é intuitiva para o meu pai e para a minha mãe. Eu tenho dois idosos em casa, um com 75 anos e outro com 73 anos. Ambos têm WhatsApp, mandam mensagens, tiram fotos, gravam vídeos. Às vezes, dá uma engasgada, mas funciona. Os dois fazem telemedicina e acompanham a saúde dessa forma.

Quando a tecnologia está associada a um processo que entrega valor, ela é disruptiva e faz com que todo mundo a utilize. Agora, uma tecnologia para substituir o que eu faria no atendimento presencial, mas que não entrega valor, que não faz diferença, por que eu vou usar? É melhor eu ir pessoalmente. A tecnologia era mais difícil, você criava uma barreira muito grande para que as pessoas pudessem usá-la, mas isso foi se quebrando. Hoje, eu olho para o celular e ele verifica que estou vivo, me identifica, me valida. Foi uma surpresa grande a utilização em massa da tecnologia pelos nossos beneficiários e isso está aumentando cada vez mais, tanto que eles não querem voltar ao presencial. Não só os idosos, mas as pessoas de maneira geral não querem mais voltar àquela rotina que tinham. Hoje, eu quero resolver tudo por telefone, por e-mail. Se eu posso resolver no aplicativo, eu não quero mais pegar um carro, enfrentar trânsito, pagar estacionamento, pegar uma senha, sentar na cadeira e esperar para ser atendido. Então, a entrega de valor, não só na saúde, mas em todo esse processo, é o que faz a diferença.

MIT Technology Review Brasil: Percebendo isso tudo, quais serão os caminhos seguidos nesse momento de digitalização da saúde? 

Temos várias coisas acontecendo e já estamos colhendo frutos. Alguns projetos foram iniciados, mas estão em uma fase muito incipiente, e outros são planejados para o futuro. Fizemos um trabalho grande antes da pandemia, e foi muito interessante porque a pandemia validou nossas propostas. Já falávamos, por exemplo, em telemedicina.

Trabalhamos com pilares. O primeiro é o da colaboração, porque entendemos que esse é o modelo ideal. Hoje, o mundo é colaborativo, não é? Entendemos que a transformação precisa ser de todo o setor. Ela não pode ser da minha empresa, do meu segmento. Temos esse pilar, que é o de trabalhar sempre no ambiente colaborativo e sempre em um ambiente de compartilhamento, 100% open. Queremos mostrar tudo o que fazemos, o que deu certo e o que deu errado. Aceitamos qualquer tipo de proposta, de ajuda. Estamos aqui para construir. Essa é a nossa proposta. É fazer realmente a diferença. Muita coisa já foi discutida, a realidade está dada, as informações estão à mesa. O que nós vamos fazer com isso? Então, estamos priorizando muito atitudes para que possamos modificar o hoje. Não interessa para nós atuar em um projeto que vai acontecer daqui a dois anos. Tudo está sendo colocado em prática, sem medo de errar, de receber críticas, de construir.

Outro pilar que nós temos é o da informação. As autogestões possuem um centro de informação compartilhada. Então, é possível que eu identifique como eu estou do ponto de vista de custo, de frequência, em uma certa especialidade, em uma cidade. E como é que estão os meus pares? O nosso Campus Unidas é uma plataforma aberta em que fazemos conexões com outras plataformas de ensino para ter um maior nível de engajamento do público, para entender o curso que mais interessa, o que é mais aceito, o seu momento, a sua prioridade. Temos nossos congressos, seminários. Entendemos que os gestores e profissionais mais qualificados tomarão melhores decisões e terão suas empresas mais sustentáveis. Esse é um pilar do conhecimento.

A Unidas foi a primeira empresa a criar um escritório de valor em saúde que já está funcionando, trazendo o que temos de mais interessante no mundo, falando de modelos norte-americanos e europeus, onde temos oito empresas atuando para a criação de uma jornada de atendimento ao paciente voltada ao que importa, que é o valor em saúde, que é o desfecho. A partir disso, vamos distribuir outras formas de modelo de remuneração e de capacitação. Foi uma maneira que encontramos para fazer acontecer. Não vamos falar mais de VBHC [value-based health care], vamos colocar isso em prática. Vamos fazer acontecer de forma muito aberta, transparente, porque queremos que essa transformação aconteça no mercado. Então, todos os nossos resultados serão publicados e compartilhados. Não teremos nada exclusivo, que seja interno. No nosso laboratório de inovação, vamos reunir as autogestões, que têm suas dores, que têm suas necessidades, e as incubadoras, as aceleradoras de startups, as startups. Em 2021, tínhamos 714 healthtechs. Hoje, com certeza temos mais. Imagine mais de 700 grupos de pessoas pensando em soluções. Será que alguma solução interessa a algum afiliado? Vamos entender que soluções são essas? Vamos aproximá-los? Há muita coisa boa vindo por aí. Estamos pensando, também, em um aplicativo wallet health, que permitiria o acesso a informações de saúde pelo usuário a qualquer momento. Entendemos que precisamos de algo que realmente faça a diferença na vida dos beneficiários e, consequentemente, na vida das operadoras. Tudo isso em busca de mais eficiência em saúde e maior qualidade de vida para as pessoas.


Este artigo foi produzido por Manoela Albuquerque, repórter e editora de Saúde na MIT Technology Review Brasil.

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