Embora o conceito de policrise tenha sido introduzido na década de 1990 pelo teórico da complexidade Edgar Morin, é apenas recentemente que sua relevância tem ganhado amplo reconhecimento global. Em 2023, por exemplo, o Cascade Institute lançou o site Polycrisis.org para aprofundar a compreensão sobre a policrise e dar suporte àqueles que a enfrentam, e definindo-a como a interconexão de crises em diversos sistemas globais que resultam em um impacto conjunto que compromete significativamente o futuro da humanidade e geram consequências mais devastadoras do que se ocorressem separadamente. O Disruptive Futures Institute faz parte da plataforma, refletindo seu papel ativo nesse debate urgente e multidimensional.
O problema da “policrise”
A gravidade dos riscos interconectados que compõem a policrise é cada vez mais evidente e incontestável. Instituições como o FMI alertam que estamos entrando numa nova era de incerteza, mais volátil até do que o período da pandemia. A crescente multipolarização global, por sua vez, gera imprevisibilidade sobre quem lidera, quais regras prevalecem e como as crises são administradas, elevando o risco de desordem e conflito.
De fato, esta realidade se faz sentir em diversas frentes:
● O Índice de Incerteza Mundial mostra uma clara trajetória ascendente no uso da palavra “incerteza”.
● Os relatórios do IPCC concluem que o mundo está atingindo pontos de inflexão, gerando impactos irreversíveis à biosfera da Terra.
● Jamie Dimon, do JPMorgan, qualificou esta era como “talvez o momento mais perigoso que o mundo já viu em décadas”.
● A palavra do ano, em 2022, no Dicionário Collins, foi “permacrise” para designar um longo período de instabilidade.
● O “Relatório de riscos globais” de 2025 do Fórum Econômico Mundial levanta questões importantes como confronto geoeconômico, eventos climáticos extremos, ameaças nucleares, riscos cibernéticos e tecnologias emergentes.
● Em 2025, o Boletim dos Cientistas Atômicos avançou o Relógio do Juízo Final em 89 segundos para a meia-noite, hora mais próxima da catástrofe.
No entanto, esse cenário da policrise traz uma questão importante: muitos esforços para incentivar ações coletivas frente às crises globais costumam recorrer a narrativas que destacam um futuro sombrio caso nenhuma medida seja tomada.
A negatividade dessas evidências não reflete apenas os desafios existentes, mas também resulta da dificuldade em redefinir nossa relação com o mundo. Fomos nós que criamos as condições para essa policrise, mas carecemos de previsão e adaptabilidade para solucioná-la.
Precisamos despertar nossa capacidade de imaginar caminhos alternativos. Não há mais espaço para continuarmos como espectadores diante de uma possível ruína. É hora de assumir o papel de arquitetos do futuro, abertos para novas possibilidades, livres das limitações que acreditávamos ter, cada vez mais responsáveis e ágeis.
Para lidar com nossas complexas crises globais e aproveitar as oportunidades, é crucial reconhecer a nova dinâmica em jogo, na qual o que antes era raro está se tornando constante.
Policrises ou metadisrupções? A metamorfose das metatendências
Megatendências são forças motrizes de alto nível que impulsionam mudanças amplas na sociedade, sendo percebidas como relativamente inevitáveis. John Naisbitt, em Megatendências (1982), definiu-as como processos transformadores de grande escala com alcance global e impacto significativo. No entanto, as megatendências (ou metatendências) são apresentadas como se interagissem de forma previsível entre si, sem considerar as consequências em cadeia de maior escala.
Extrapolar essas tendências é perigoso, principalmente com base em suposições equivocadas. Com o tempo, estas suposições se amplificam, se acumulam e se tornam problemáticas. Quanto mais acelerado o ritmo da mudança, mais inútil se torna olhar para o espelho retrovisor.
Ao contrário dos episódios históricos de disrupção, que muitas vezes eram limitados temporal ou geograficamente, os desafios do século 21 são caracterizados por uma interdependência sistêmica, mudanças em cascata e dinâmicas não lineares. No futuro, a disrupção assume um escopo mais amplo, formas mais diversas, dinâmicas assimétricas, conexões mais profundas e impactos mais significativos. A disrupção agora é sistêmica.
Metaruptions combinam essa ideia de disrupção com o prefixo “meta”, indicando um fenômeno de ordem superior. Ao contrário das megatendências (ou metatendências) de Naisbitt, as metadisrupções formam uma rede multidimensional de disrupções sistêmicas. Essas transformações desencadeiam efeitos generalizados e autoperpetuantes — incluindo uma metamorfose no próprio significado de disrupção. Essas mudanças ocorrem em cascata, gerando novas transformações que evoluem continuamente ao longo do tempo.
Apesar de alguns considerarem a ideia de pico de incerteza um mito, a combinação acelerada de avanços tecnológicos, instabilidade ecológica e fragmentação geopolítica está provocando uma onda de riscos em cascata que são globais, complexos em termos de governança, exponenciais em impacto e simultâneos no seu surgimento. Talvez seja hora de aceitar a disrupção sistêmica (e, com ela, as implicações da imprevisibilidade e da incerteza profunda) e buscar alternativas à análise de tendências.
Metadisrupções são moldadas por interações dinâmicas dos fatores subordinados de mudança, reconhecendo paradigmas emergentes que podem evoluir de modo não linear. Seus efeitos em cascata muitas vezes mascaram seu real impacto por longos períodos. Elas desafiam os manuais e exigem novas perguntas, mais profundas e redimensionadas, além da capacidade de reconhecer padrões e problemas de forma adaptativa. Embora metadisrupções sejam imprevisíveis e, em geral, mais temidas do que desejadas, a imprevisibilidade em si não é necessariamente negativa.
A incerteza é um catalisador da ação
A ação coletiva em crises globais interconectadas é frequentemente motivada por alertas de catástrofes iminentes. Porém, muitas vezes subestimamos o poder das narrativas otimistas — aquelas que destacam oportunidades embasadas para gerar uma transformação positiva.
Capacidade de ação e narrativa são duas ferramentas que podem ajudar a preencher essa lacuna, criando caminhos impactantes rumo a pontos de inflexão transformadores.
Charles Richard Snyder, um pioneiro em psicologia positiva, identificou dois fatores-chave que nos ajudam a atingir nossos objetivos:
● Caminhos: a capacidade de gerar diferentes caminhos ou cenários desejados.
● Arbítrio: a capacidade de seguir esses caminhos de fato.
Figura 2. Teoria da Esperança de Snyder: Agência + Caminhos

Talvez de forma contraintuitiva, a incerteza do futuro abre espaço para que nossa capacidade de agir explore esses caminhos. Se tudo fosse previsivelmente certo e predeterminado, não teríamos escolha. Para administrar a ruptura sistêmica, precisamos recuperar a confiança de que temos autonomia — de que somos construtores e criadores.
As narrativas têm o poder de moldar o futuro e criar pontos de inflexão virtuosos. No paradoxo de Stockdale, nem o otimismo excessivo nem o pessimismo levam à sobrevivência. Em vez disso, aqueles que adotam uma mentalidade otimista, porém realista, estão mais bem preparados para prosperar.
Essa é a dualidade do otimismo embasado, necessária em tempos de metadisrupções: reconhecer as nossas realidades atuais e, ao mesmo tempo, preservar a capacidade coletiva de mudar nossas trajetórias. A maior oportunidade do nosso tempo é escolher como responderemos aos nossos desafios, o que depende das nossas visões do futuro. Como fazer isso e inspirar mudanças positivas? Nós nos concentramos na preparação multicamadas, transformando nossa policrise em polipreparação.
A recuperação da capacidade de ação para a policrise através da AAA Framework:
No mundo imprevisível de hoje, delineamos caminhos para reformular a policrise, usando a estrutura do Antifrágil, Antecipatório e Agilidade (“AAA Framework”). Essa estrutura define as três capacidades que precisam ser desenvolvidas para um mundo imprevisível, à medida que manuais padrão se tornam cada vez mais ineficazes:
- Antifragilidade (antifrágil): construção das bases certas para a resiliência.
- Antecipação (antecipatório): melhoria da preparação para o futuro, a fim de navegar pela incerteza.
- Agilidade: resposta a qualquer futuro que possa surgir.
Figura 3. AAA Framework

1. Antifragilidade e resiliência
Como Nassim Nicholas Taleb define em https://www.randomhousebooks.com/books/176227/Antifrágil: a antifragilidade vai além de resiliência ou robustez. O resiliente resiste a choques e permanece o mesmo; o antifrágil vai além.
Construir resiliência para riscos climáticos, cibernéticos, tecnológicos, de infraestrutura, saúde, espaciais e geopolíticos é essencial para sobreviver e prosperar em tempos de metadisrupções. Com a antifragilidade, o foco muda da probabilidade para a amplitude dos resultados potenciais.
No início da ação militar da Rússia na Ucrânia, ataques cibernéticos interromperam redes de satélite (incluindo as de propriedade da Viasat, uma empresa dos EUA), dificultando o acesso dos ucranianos à internet. No entanto, a rede de satélites de órbita terrestre baixa (LEO, Low Earth Orbit) da Starlink permaneceu operacional. Ao disponibilizar aos ucranianos este acesso contínuo, a arquitetura distribuída da Starlink proporcionou antifragilidade ao eliminar um único ponto de falha.
No clima, a mera preservação e manutenção de áreas não é mais suficiente; para ser antifrágil, é necessário que haja estratégias de conservação que fortaleçam a resiliência, como melhorias na biodiversidade, nos recursos hídricos, no ambiente natural e nas soluções baseadas na natureza que restauram os ecossistemas.
A antifragilidade, prospera diante das metadisrupções.
Figura 4. Desenvolvimento da antifragilidade

2. ANTECIPAÇÃO para preparação para o futuro
Devido à relação inversa entre previsibilidade e incerteza, o custo de supor que o mundo é previsível é cada vez maior. Para uma mudança sistêmica, precisamos ampliar nossa visão em busca de sinais, interpretar os impactos subsequentes e conectar os pontos em transformação.
Mais dados talvez não resolvam a incerteza
Há uma crença cada vez mais presente de que a incerteza profunda pode ser solucionada com o acúmulo de mais dados. Mas, como Taleb alerta, “Big Data pode significar mais informação, mas também mais informação falsa”.
A inteligência artificial tem bom desempenho em ambientes estáveis, onde os padrões são consistentes e os resultados são definidos claramente. Mas, com a incerteza profunda, causa e efeito muitas vezes só ficam claros em retrospectiva. Os relacionamentos mudam de forma imprevisível, e as interdependências complexas desafiam a modelagem simples. A inteligência artificial oferece pouca vantagem preditiva sobre os humanos em sistemas complexos, não lineares e em rápida mudança.
A história recente confirma isso. Os dados não conseguiram prever muitos dos eventos mais perturbadores dos últimos anos. A pior inflação em meio século surpreendeu os formuladores de políticas. Em 2022, o Tesouro dos EUA reconheceu um mal-entendido fundamental sobre o que chamou de choques “imprevistos”. Refletindo esse novo nível de imprevisibilidade, em 2025, o Fed de Cleveland deixou de depender de uma previsão única e começou a trabalhar com uma série de cenários distintos.
Planejamento de cenários: preparação, não previsão
O planejamento de cenários foi originalmente desenvolvido nas décadas de 1950 e 1970 e se baseia no planejamento estratégico linear. O ponto de partida fundamental é que os futuros são diferentes do passado. O planejamento de cenários permite explorar muitas plausibilidades sem depender de suposições imutáveis ou resultados singulares e arbitrários. Bons cenários ajudam a resolver problemas de maneira diferente porque podem revelar novas possibilidades e despertar esperança.
O objetivo do desenvolvimento de cenários é a preparação, não a previsão. Esse é um pré-requisito para melhor antecipar futuros desconhecidos, em que a “polipreparação” ajuda a antecipar e gerenciar a “policrise” e descobrir “polioportunidades”.
3. AGILIDADE para se reconciliar com o presente
O terceiro pilar da AAA Framework é Agilidade. Ela explora a conexão entre nossa visão de longo prazo e o presente. Organizações uniformes, centralizadas e hierárquicas não são ágeis. Essas estruturas frágeis não respondem bem às circunstâncias, em constante mudança das metadisrupções.
Uma crítica frequente ao pensamento de longo prazo é que os horizontes de tempo explorados são muito distantes e muito incertos. Tal erro consiste em tratar o futuro como algo distinto do presente. Não se trata de escolher entre o presente e os futuros. Uma vez que apenas o presente existe, todas as nossas decisões relativas a futuros a longo prazo precisam ser traduzidas para o agora.
Uma crítica frequente ao pensamento de longo prazo é que os horizontes de tempo explorados são muito distantes e muito incertos. Tal erro consiste em tratar o futuro como algo distinto do presente. Não se trata de escolher entre o presente e os futuros. Uma vez que apenas o presente existe, todas as nossas decisões relativas a futuros a longo prazo precisam ser traduzidas para o agora.
Pontes de Loop Infinito permitem viagens no tempo
Para traduzir decisões de longo prazo em ações no presente, é preciso navegar entre diferentes horizontes temporais. Uma das coisas mais desafiadoras é conciliar a abordagem emergente (agora), o curto prazo (iminente) e o longo prazo (visão). Tal desafio exige agilidade para estabelecer pontes com ciclos de feedback e praticar a polipreparação.
Essas pontes nos permitem emergir enquanto integramos visões estratégicas. Nós as chamamos de “Pontes de Loop Infinito”.
Figura 5. Agilidade Emergente e Estratégica: Pontes de Loop Infinito

As situações são fluidas, o contexto muda e as possibilidades evoluem. A tomada de decisões é um processo emergente em constante evolução, com ciclos de feedback gerando novas informações. Nesse ponto vale citar o analista Paul Saffo, “Opiniões fortes, mas fracamente sustentadas”. Tal raciocínio pode fortalecer a tomada de decisões adaptáveis, usando evidências em desenvolvimento para refinar hipóteses.
As decisões no ciclo de feedback podem gerar insights em tempo real a partir de um processo de descoberta, inclusive no contexto climático. Podemos usar tecnologias como sensores remotos, satélites e IA para medir, monitorar, verificar e mitigar a evolução das emissões de carbono em todos os setores.
As Pontes de Loop Infinito rompem com a falsa oposição entre curto e longo prazo, integrando uma mentalidade em que a vida se dá no presente, coexistindo com os futuros que são construções da nossa imaginação.
Ciclos de feedback para melhorar a agilidade
Diante de desafios parecidos com os enfrentados por diversas cidades brasileiras, Jacarta, a capital da Indonésia, tem adotado soluções inovadoras para lidar com enchentes, um problema agravado por sua topografia baixa, as mudanças climáticas e a rápida urbanização.
Estas soluções evidenciam como os ciclos de feedback podem promover a agilidade emergente na resposta a crises e a agilidade estratégica no planejamento da resiliência.
A plataforma PetaBencana.id exemplifica como ciclos de feedback podem sustentar tanto a agilidade emergente quanto a agilidade estratégica na gestão de enchentes. Entre seus principais mecanismos:
- Integração de dados diversos em tempo real: a plataforma combina relatos colaborativos da população via redes sociais, sensores de IoT (níveis de água, precipitação) e informações governamentais em um único sistema acessível a todos.
- Tomada de decisão descentralizada e adaptativa: algoritmos filtram os relatos da população, cruzando com dados de sensores para validar ocorrências e orientar respostas emergenciais mais rápidas e precisas.
- Apoio à estratégia de longo prazo: dados em tempo real e históricos são usados para embasar decisões estruturais, como mudanças em políticas públicas e infraestrutura urbana.
- Ciclo contínuo de aprendizagem e melhoria: o sistema evolui iterativamente com base nos dados coletados, promovendo uma governança ágil.
- Alinhamento com a gestão pública: sua adoção ampla e integração aos protocolos nacionais da Indonésia mostram como o engajamento popular pode se combinar com a ação institucional para fortalecer a resiliência urbana.
No entanto, a eficácia desses sistemas depende da combinação de agilidade com antecipação e antifragilidade, conforme descrito na AAA Framework. O feedback das operações ágeis deve embasar práticas de governança antecipatória — como planejamento de cenários para extremos induzidos pelo clima — e dar suporte a estruturas de incentivo que promovam a antifragilidade, como investimentos em infraestrutura resiliente. Toda essa integração permite transformações proativas em preparação para futuros choques e metadisrupções.
AAA Framework: resolução de problemas para riscos sistêmicos
A AAA Framework nos dá agilidade para emergir com sucesso. Ao construir bases antifrágeis e adotar o pensamento antecipatório, nos preparamos proativamente para quaisquer metadisrupções que estejam por vir.
A publicação L’Ateliers des Futurs descreve o espírito da AAA Framework: “Quando ocorre o cisne negro, a estrutura Antecipatória, Ágil e Adaptativa (AAA) da empresa demonstra sua antifragilidade. Ela identifica os sinais fracos que antecipam a sua chegada.” A partir deste momento, “a empresa consegue adaptar sua estratégia para converter risco em oportunidade, da mesma forma que Pierre Wack antecipou o choque do petróleo de 1973, permitindo que a Shell ascendesse ao topo do ranking dos players do setor.”
A AAA Framework está demonstrando ampla aplicabilidade, desde o setor de seguros até a transformação dos mercados voluntários de carbono e os futuros de governança de calor extremo.
As emergências não estão distribuídas igualmente. O grau de pensamento antecipatório que aplicamos moldará a natureza e o impacto das crises que enfrentamos.
Em ambientes em constante evolução, devemos agir e responder com novas opções. Com as crises atuais, não podemos nos dar ao luxo de falhar na imaginação.