Viajar para o espaço é um programa de férias que está cada vez mais perto de se tornar realidade. Uma das empresas que promove a ideia da exploração turística espacial é a americana SpaceX, e não faltam candidatos para futuras missões. A exploração do espaço pela empresa, no entanto, não para por aí. A rede de satélites em órbita terrestre baixa (Low Earth Orbit ou LEO) da SpaceX, Starlink, servirá como uma opção de acesso à banda larga. A diferença é que os satélites LEO oferecem melhor latência e maiores velocidades do que satélites tradicionais, especialmente em áreas remotas e/ou rurais, que contam com nenhuma ou poucas opções de conectividade.
Há, de fato, grandes expectativas relacionadas às características da banda larga que satélites LEO prometem, e a SpaceX já começou a lançar constelações de satélites da rede Starlink. Um bom exemplo é o fato de que a Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC) acaba de declarar que US$ 886 milhões serão destinados à empresa, e deverão ser usados para apoiar a conectividade em áreas rurais dos Estados Unidos. Esta não seria, no entanto, a primeira vez que recursos públicos são usados no desenvolvimento destas tecnologias, pois os satélites, assim como outras tecnologias tais como a própria Internet, não teriam sido possíveis sem o “empreendedorismo” desempenhado por diversos Estados ao longo das últimas décadas.
Há ainda outras constelações a serem lançadas, como as da Amazon, OneWeb e Telesat, sem contar as constelações russas e chinesas. A rede SpaceX da Starlink já peticionou o FCC para lançar 42 mil satélites e caso receba todas as permissões, poderá lançar — sozinha — um número total de satélites correspondente a mais de cinco vezes a soma de todos os satélites que já foram colocados em órbita na história, desde o lançamento do Sputnik em 19571 Este assombroso volume de satélites, assim como os detritos por eles deixados, têm preocupado cientistas — especialmente astrônomos — no mundo todo.
As trilhas deixadas por constelações LEO comprometem as imagens tiradas por telescópios, prejudicando estudos científicos. Astrônomos receiam que os satélites interfiram, por exemplo, na identificação de asteroides potencialmente nocivos à Terra. Outro exemplo de uma importante descoberta relacionada ao debate é a recente detecção do gás fosfina em Vênus, que é um indício de vida naquele planeta! E estas descobertas precisam ser testadas e confirmadas pelos radiotelescópios que dependem de frequências do espectro eletromagnético que não podem sofrer interferências. Ademais, a Estação Espacial Internacional e o famoso telescópio espacial Hubble, também estão em baixa órbita, ou seja, as observações feitas da Terra não são as únicas que poderão ser afetadas. Existe, portanto, o risco até de termos que parar de usar a baixa órbita para exploração espacial em função das constelações LEO e de detritos, e além dessas potenciais implicações para a ciência, seriam também afetados anos de pesquisas e vultosos investimentos públicos feitos até então.
Especialistas em políticas de conectividade temem, ademais, que as constelações LEO deem ensejo a problemas concorrenciais e de uma privatização do espaço comum. As duas principais agências da Organização Nações Unidas (ONU) envolvidas neste debate são a União de Telecomunicação Internacional (UIT), e o Escritório das Nações Unidas para Assuntos do Espaço Exterior (UNOOSA). Os governos e a iniciativa privada devem cooperar com estas agências no desenvolvimento de suas atividades relacionadas ao espaço. O desafio, no entanto, tem sido garantir que o processo de cooperação entre os Estados e o setor privado respeitem as regras estabelecidas no âmbito do sistema ONU, e que os novos atores do setor sejam incluídos nas discussões internacionais.
Há outros desafios relacionados aos satélites LEO além dos apresentados acima, tais como a realização de testes cujo objetivo é unicamente derrubar um satélite para provar a capacidade de defesa do país. A Índia promoveu um destes testes em 2019, e o Primeiro-Ministro Narendra Modi declarou que a operação se tratava de um marco para o país, por ser um dos poucos países a desempenhar tal teste; e porque a missão estaria sendo desenvolvida sem ajuda de outros países. Chamada de “Shakti”, palavra sinônimo de “poder” e “energia cósmica”, a missão resultou em severas críticas internacionais em função dos detritos deixados em órbita.3
Uma forma de visualizar o que ocorre com a órbita da Terra e imaginar os impactos de iniciativas tais como as descritas acima é conferir os mapas desenvolvidos pela LeoLabs, que rastreia satélites LEO e detritos em órbita, e calcula probabilidades de colisão. Os mapas parecem ficção, mas não poderiam ser mais reais, assim como as possíveis disputas geopolíticas esboçadas acima, e suas implicações diretas para a ciência e para a sociedade.
É possível entender, portanto, que o hype das constelações de satélites LEO não será gratuito, e há riscos envolvidos. Mas o que deve ser feito se há de fato a necessidade de promover maior conectividade em áreas remotas e rurais? Para que os potenciais riscos sejam contornados, será necessário o fortalecimento da cooperação internacional, assim como a promoção da inovação e da criatividade. Além disso, é importante que a SpaceX e as demais empresas de satélites desenvolvam formas de mitigar os impactos da sua atuação no resultado das imagens astronômicas e na interferência com telescópios em baixa órbita. Afinal, além de conectividade todos também querem saber se há, de fato, vida em Vênus, ou se um asteroide poderá vir a acabar com a nossa espécie.