“As doenças têm uma distribuição global, e a capacidade de as tratar não tem. Mas eu julgo que vários exemplos – e o Brasil vem sendo um deles – mostram que isso é possível, e é nesse sentido que o desenvolvimento desses produtos caminha”, sintetiza o presidente da International Society for Cell & Gene Therapy (ISCT), Miguel Forte, em entrevista à MIT Technology Review Brasil.
A atualidade é marcada pelo registro crescente de terapias avançadas, categoria em que são enquadradas terapias gênicas in vivo e ex vivo, terapias celulares avançadas e de engenharia tecidual – no país, regulamentada pela RDC 505 de 21 de maio de 2021 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). São produtos capazes de trabalhar o código genético humano e o próprio sistema imunológico como maquinário para interromper a progressão de sintomas de doenças, muitas delas sem nenhuma outra alternativa terapêutica disponível, como no caso de doenças raras genéticas, ou em patologias com chance de sobrevida muito baixa, como no câncer.
Essa engrenagem é considerada uma das inovações mais disruptivas da medicina e terá um impacto significativo no futuro dos sistemas de saúde. A tendência é que, com o passar do tempo, essas terapias passem a ser destinadas ao tratamento de doenças mais prevalentes, considerando a expectativa de queda no custo de produção e a avaliação de benefícios no longo prazo. Para isso, será preciso pavimentar o caminho, priorizando aspectos técnicos, éticos e a transparência de dados.
“Eu acho que vai ser mais cedo que nós pensamos e mais tarde do que nós desejaríamos. Há 10 anos, eu nem imaginava que nós poderíamos falar sobre o que estamos falando aqui. Portanto, daqui a cinco anos, vou dizer o mesmo. Eu acho que o futuro nos vai surpreender. A velocidade é exponencial. É por isso que também é importante que nós tenhamos uma consciência ética e responsável do que estamos fazendo, integrando todos esses desenvolvimentos, não só do ponto de vista industrial, do ponto de vista de custo, mas também do ponto de vista biológico dos impactos que temos com as terapias que desenvolvemos”, afirma Miguel Forte.
Para lidar com o trade-off entre eficácia e segurança de produtos tão inovadores, as principais autoridades regulatórias do mundo criaram regras especiais, validando estudos otimizados para a concessão de registro sanitário. Isso não significa, porém, que o rigor da análise tenha sido comprometido. Os desenvolvedores se comprometem a cumprir condições para que os produtos continuem disponíveis no mercado, comprovando que a segurança e a eficácia apresentada nos estudos clínicos está sendo mantida.
O Brasil foi precursor na América Latina e teve, em agosto de 2020, o registro do primeiro produto de terapia avançada: uma terapia gênica destinada a bebês com Atrofia Muscular Espinhal (AME), considerada uma doença rara. Atualmente, há oito produtos autorizados no país (um painel com a lista completa é disponibilizado pela Anvisa), todos classificados como terapias gênicas in vivo ou ex vivo. Até o fim de 2024, há expectativa de mais uma aprovação sanitária.
Nas terapias in vivo, o material genético é administrado diretamente no paciente, enquanto nas terapias ex vivo, por exemplo aquelas com células CAR-T, as células do paciente são modificadas fora do corpo e depois reintroduzidas.
A reguladora brasileira, além de ser pioneira na macrorregião, também está alinhada a outras reguladoras de referência, de países da Europa, além dos Estados Unidos e do Japão. O gerente de Sangue, Tecidos, Células, Órgãos e Terapias Avançadas da Anvisa, João Batista Junior, avalia que o país continua bem posicionado, embora o número de produtos seja menor do que nos EUA e na Europa.
“Não há um crescimento vertiginoso, mas há pesquisas acontecendo, com novas tecnologias, como CRISPR, a própria edição genômica. No Brasil, já temos estudos sendo analisados com esse tipo de tecnologia. Fazemos uma análise superficial de que o comportamento é semelhante aos países de referência”, afirma.
Os países vizinhos, por outro lado, continuam com uma progressão mais tímida. O nível de maturidade regulatória, segundo o gerente da Anvisa, é um componente determinante para a entrada de produtos.
“É uma agência grande, com experiência, é referência na América Latina, com o reconhecimento da própria OMS [Organização Mundial da Saúde]. Temos elementos que favorecem esses marcos, diferentemente de outros países. A Anvisa trabalha muito com cooperação internacional, então isso favorece também conhecimento, discussão de modelos”, diz.
Divulgação inédita de dados de vida real
Com o objetivo de mitigar riscos, a regulação brasileira prevê que as farmacêuticas com terapias avançadas registradas no país apresentem, periodicamente, dados que comprovem a manutenção da eficácia e da segurança dos produtos ao longo do tempo.
Neste ano, a agência pretende concretizar uma decisão importante, ainda não prevista nas normas em vigor: a de disponibilizar os resultados clínicos dos pacientes que receberam os produtos aprovados no Brasil. Segundo João Batista Junior, a decisão foi acordada com as farmacêuticas detentoras dos registros e um modelo de relatório público está sendo elaborado.
“O monitoramento já era feito anualmente, mas não era disponibilizado. O acordo feito é que vamos fazer um relatório que preserve, por exemplo, o sigilo industrial. No relatório vão sair os aspectos gerais, de eficácia e de segurança de longo prazo, e alguns casos também de qualificação dos hospitais no Brasil”, explica.
Esses relatórios vão conter dois tipos de informações diferentes: os dados de acompanhamento dos pacientes em estudos clínicos globais – o que é chamado de long-term follow-up, usado por autoridades regulatórias para observar os desfechos de eficácia e segurança –, e os dados de vida real, de pacientes que receberam os tratamentos no Brasil após a entrada dos produtos no mercado.
No caso dos dados de vida real, a efetividade do produto é analisada considerando variáveis que surgem fora do ambiente controlado da pesquisa clínica. João Batista Junior antecipa que a experiência brasileira ainda é restrita, com poucos pacientes, já que o acesso aos produtos no mercado brasileiro ainda enfrenta barreiras. Em contrapartida, a transparência dada às informações poderá direcionar debates importantes, como os de estabelecimento de preços e de incorporação dos tratamentos nos sistemas público e privado.
“A divulgação é fundamental. Pode ajudar a CMED [Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos], a farmacovigilância, a Conitec, todo mundo que quiser usar. Ainda que sejam dados coletados pelas empresas, é um passo importante”, diz João Batista Junior.
No Brasil, o preço máximo de medicamentos é determinado pela CMED, um órgão ministerial cuja secretaria-executiva é ocupada pela Anvisa. Com base nas regras vigentes (Resolução 2/2004), definidas 20 anos atrás, os produtos de terapias avançadas vêm sendo classificados como “casos omissos”.
Já para a oferta dos produtos no Sistema Único de Saúde (SUS) e pelas operadoras de planos de saúde, eles passam por uma avaliação técnica feita pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), respectivamente.
Até o momento, apenas um dos oito produtos registrados no país foi incorporado no SUS e na saúde suplementar passando por esse processo, mas ainda há dificuldade na disponibilização à população. No caso das terapias oncológicas, existem divergências sobre a obrigatoriedade de cobertura pelos planos de saúde. A ANS tem um posicionamento indicando que esse tipo de produto precisa passar pela avaliação da diretoria para que a cobertura seja obrigatória, contrariando o disposto na Lei 9656/98 e na RN 465/21, que garantiriam a cobertura obrigatória de medicamentos atineoplásicos de infusão hospitalar.
Ainda que o acesso seja um grande desafio, o número crescente de registros é anunciado com otimismo pelo gerente da Anvisa. “O Ministério da Saúde e a ANS não são obrigados a incorporar o que a Anvisa aprovou, mas eles são obrigados a discutir como lidar com isso. Esse movimento é positivo”, afirma.
João Batista Junior enfatiza, ainda, a necessidade de conscientização sobre a importância do respeito às definições da bula das terapias avançadas.
“Por ser uma tecnologia inovadora, ela não pode ser usada fora das especificações. Não é um produto experimental, mas precisa ser controlado para que possamos compreender novos achados de segurança e dados de efetividade na vida real”, alerta.
Desafios globais e perspectivas futuras
A International Society for Cell & Gene Therapy atua para garantir a utilização ética e correta de terapias avançadas, por meio de treinamentos e debates com abrangência global. “Temos, primeiro de tudo, uma noção global das necessidades e oportunidades. Depois, temos também a possibilidade de influenciar e educar o ambiente. Não só educar as pessoas que vão utilizar, mas também as pessoas que vão pagar e as pessoas que vão permitir que isso possa ser utilizado”, explica o presidente, Miguel Forte.
Ainda em fase de amadurecimento, as terapias avançadas já estão se espalhando pelo mundo, avalia. “Alguns desses produtos já atingiram a distribuição em mais de 50 países, o que mostra que é possível, que está acontecendo, mas lentamente. A necessidade médica é urgente, é importante. O desenvolvimento desses produtos demora o seu tempo. Mas progredimos no bom sentido.”
Questionado sobre as diferenças relacionadas a mercados emergentes, Forte destaca que há características específicas para que exista atratividade de mercado. O presidente da sociedade internacional cita parâmetros como custo de produção, maturidade regulatória e de avaliação de tecnologias em saúde.
“O acesso global ainda não é tão global como deveria ser, mas isso tem múltiplos aspectos. É necessária não só a capacidade de desenvolver e comercializar o produto, mas também a capacidade regulatória de avaliar o produto, o que o Brasil, por exemplo, com a Anvisa, tem. É necessário também ter centros técnicos para administrar essas terapias, o que obviamente nem todos os países têm. Às vezes nem mesmo países desenvolvidos têm, a exemplo de alguns locais remotos nos Estados Unidos e na Europa”, explica.
Miguel Forte destaca, como ponto comum de discussão entre países com características diferentes, questões relacionadas ao desenvolvimento e ao uso. “Se falarmos dos aspectos de técnica, de produção, das características do que é o produto, há muitas áreas comuns de discussão. Outra área comum de discussão são os ensaios clínicos feitos, especificamente para saber identificar os efeitos acessórios e controlá-los, bem como identificar a correta utilização para otimizar os benefícios”, diz.
Outra discussão a nível mundial é como pagar pelos produtos, considerando contextos distintos. “Há algumas áreas comuns, como por exemplo passar da utilização de um produto que tem um benefício pontual para um produto que tem um aspecto de benefício a longo prazo. Os modelos têm que ser diferentes, e, portanto, é importante que diferentes participantes possam discutir e aprender. Existe uma série de temáticas que são partilhadas por todos”, explica.
Forte também avalia ser fundamental o acompanhamento dos dados de vida real para consolidar as evidências de eficácia dos produtos, mas também com o intuito de antecipar o acesso a tratamentos. “Uma outra vantagem é que poderá permitir, talvez, o acesso mais rápido. Podemos fazer dois ou três ensaios clínicos e passar os produtos para utilização no mercado, no paciente da vida real, com uma monitorização pré-definida e intensa. RWD [real-world data] é um must, não só pela informação que nos traz, mas também para permitir um dinamismo da atividade regulatória e um acesso mais rápido pelos pacientes.”
Com o passar do tempo, o aumento da capacidade tecnológica e a consequente redução dos custos de produção deve permitir o uso de terapias avançadas para tratar doenças mais prevalentes. “Por isso é que vai ser necessário pensarmos em modelos alternativos de financiamento e pagamento desses produtos, para podermos espalhar o custo tal como espalhamos o benefício. Mas sem dúvida que teremos a oportunidade de ter terapia genética e celular dirigidas a doenças que são bastante prevalentes”, analisa Forte.
O presidente da ISCT lembra que esse é o caso das doenças oncológicas, cujos resultados com terapias CAR-T vêm sendo positivos. “Diga-se de passagem, uma das doenças mais prevalentes na sociedade é o câncer, e é precisamente aí que, apesar de tudo, temos muito sucesso. É verdade que na oncologia isso começa nas terapias hematológicas e progride lentamente para os tumores sólidos, mas também progride para outras doenças, como as doenças autoimunes. Portanto, vamos passar das doenças raras para doenças importantes em populações maiores e vamos, provavelmente, para doenças talvez menos graves, mas mais prevalentes, em que possamos ter uma solução mais radical com um benefício mais prolongado”, reforça.
No futuro, a expectativa é de que haja uma distribuição cada vez maior de terapias avançadas e uma grande evolução da engenharia genética. “Eu não consigo prever o futuro, mas tenho uma enorme confiança nas nossas capacidades técnicas. Vamos fazer não uma biologia sintética, mas uma biologia a partir de uma engenharia complexa genética, otimizando a utilização celular, otimizando a terapia, otimizando o benefício e diminuindo os efeitos colaterais secundários”, afirma.
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