O fenômeno do shopstreaming
Humanos e tecnologia

O fenômeno do shopstreaming

A mudança de comportamento do consumidor e o que temos a aprender com o modelo de e-commerce chinês

Em 1995, quando a internet ainda pedalava no modo discado, uma pequena empresa americana se propôs a vender livros pela internet e, assim, praticamente inventou o e-commerce. O nome dela? Amazon. Hoje, a plataforma que vende de tudo é tão onipresente na vida dos consumidores que é até difícil imaginar que um dia ela foi pequena. Depois de vinte e cinco anos ditando o comportamento do consumidor nas compras online, a empresa de Jeff Bezos vê seu modelo se tornar ultrapassado diante da sua grande concorrente chinesa, o Alibaba.

Se a Amazon inventou o e-commerce, o Alibaba o revolucionou em definitivo. O panorama de comércio eletrônico tem, hoje, esses dois grandes modelos. De um lado, o americano, no qual a Amazon é pioneira e cuja dinâmica de vendas é baseada na pesquisa de produtos – tanto que a empresa de Bezos é a segunda maior plataforma de pesquisa no mundo, atrás do Google, claro.

Do outro lado, no modelo chinês, as vendas são feitas dentro das plataformas de entretenimento: os consumidores compram enquanto assistem a um show, jogando um game, vendo o time de futebol favorito jogar, em uma live de uma influenciadora que fica experimentando as roupas, entre outros tantos exemplos. É um modelo 2.0 de e-commerce – enquanto o americano da Amazon é 1.0

Esse novo jeito de fazer compras tem até nome, shopstreaming. E se o Alibaba não inventou o termo, ao menos posso dizer que foi a gigante chinesa que o popularizou. Uma das grandes sacadas do grupo Alibaba foi ter se apropriado de uma data inventada nos anos 1990 por universitários chineses, o Single’s Day (Dia do Solteiro), uma espécie de antídoto do Dia dos Namorados no qual os solteiros se mimam com presentes.

Em 2009, o Alibaba criou um grande festival que mistura entretenimento e vendas para celebrar a data. É como se fosse um mix de Oscar e Emmy, mas que em vez de premiar o cinema ou a música, vende produtos. No ano passado, dez anos depois da criação do festival, eles bateram a incrível marca de US$ 38,4 bilhões em vendas. Para se ter uma ideia da grandeza, é um valor três vezes maior que o arrecadado pelo e-commerce brasileiro durante todo o ano de 2019 (R$ 61,9 bilhões). Sim, eu sei, é injusto comparar um mercado consumidor de um país com 1,3 bilhão de habitantes com um de 209 mil. Ainda assim, há de se reconhecer, é um feito notável.

O evento, que teve como grande estrela a cantora americana Taylor Swift, reuniu 200 mil marcas de 78 países e lançou um milhão de novos produtos (o Alibaba incentiva a oferta de descontos e lançamento de itens exclusivos no dia). As marcas mais vendidas foram as americanas Nike e Apple; aliás, eletrônicos, roupas, cosméticos e artigos de beleza em geral foram os mais comprados. E, dado mais que relevante, 90% das compras foram feitas por celular.

Em terras brasileiras

No Brasil, o e-commerce começou em definitivo em 2000. Nesses vinte anos, o consumidor brasileiro foi perdendo gradativamente o medo de fazer compras sem sair de casa, impulsionando o comércio eletrônico ano a ano. Mas nada vai se comparar ao impacto que a pandemia do coronavírus causou nas vendas online. Se alguém antes ainda tinha medo de consumir dessa forma, o perdeu em definitivo. Só em 2021 vamos ter os números concretos do aumento do consumo via internet, mas uma coisa eu posso afirmar com certeza: a pandemia antecipou o modelo chinês no Brasil em pelo menos dez anos.

Tanto que o shopstreaming já é uma realidade por aqui. Marcas como Americanas, Riachuelo, ChilliBeans e tantas outras já surfam no novo formato, usando principalmente as lives, o maior legado sociocultural da pandemia, como base. Apesar disso, o modelo 1.0 da Amazon ainda é o que vigora no Brasil.

E é também por causa da pandemia que eu acredito que a Black Friday vai ser o ponto de virada na nossa forma de comprar, passando do estilo americano para o chinês. Este ano não vai ter a euforia já conhecida pelos brasileiros na porta das lojas. A pandemia não acabou, a vacina milagrosa não chegou e nenhuma rede varejista quer correr o risco de ver gente se aglomerar na frente de seus pontos de venda. Não duvido até que o comércio esteja fechado nesse dia, justamente para evitar situações típicas da data. As estratégias terão de ser outras. Onde as pessoas estarão “aglomeradas” de forma segura? Nas lives.

Se bem utilizada pelas marcas brasileiras, com aposta em entretenimento aliado aos anúncios de ofertas, a Black Friday tem de tudo para ser o nosso Single’s Day e, ao mesmo tempo, a virada de chave na cabeça do brasileiro na forma de consumir.

Em um futuro não muito distante, a grande maioria estará fazendo suas compras enquanto se diverte. Você estará assistindo a um grande chefe de cozinha ensinando como fazer um hambúrguer em uma live e, ali embaixo na tela, terá um QR Code para comprar o hambúrguer. A Marina Ruy Barbosa estará fazendo uma live para uma marca de roupas, na qual ela experimenta os modelitos, e, naquele mesmo momento, a consumidora compra a roupa que a atriz está provando. É a dinâmica conhecida como see now/buy now, que tende a ficar cada vez mais rápida e prática com novas tecnologias que vão surgindo.

Comprar de maneira nativa, com poucos cliques, o produto que sua celebridade favorita está usando ou indicando vai se tornar prática corriqueira. Misturar rede social, consumo de conteúdo e comércio eletrônico é o próximo passo que as empresas precisam dar no Brasil.

Nessa guerra nada fria entre os modelos americano e chinês, o segundo está ganhando de lavada. Hoje, quando o assunto é consumo, é a China quem aponta para o futuro.


Este artigo foi produzido por Rapha Avellar, empreendedor em série, fundador da Adventures e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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