O carro elétrico é uma boa solução para o Brasil?
Inovação

O carro elétrico é uma boa solução para o Brasil?

A produção e uso de energia limpa e sustentável é um imperativo dos nossos dias, mas as decisões atuais de matriz energética vão impactar a vida do país durante décadas.

A busca por alternativas sustentáveis de fontes energéticas é intrinsicamente complexa. A produção de energia é sempre um processo transformador, no qual externalidades são inevitáveis. Para que possamos fazer escolhas conscientes, o essencial é que tenhamos clareza de quais são as perdas e quais são os ganhos de cada alternativa. Nesse contexto, a nova bala de prata, incensada de forma quase unânime, é a produção e o uso de carros elétricos. Coerente com essa posição, o Parlamento Europeu aprovou a proibição de veículos de passageiros e comerciais leves movidos a combustão a partir de 2035, com opção clara pelo carro elétrico. A questão é: essa decisão deveria ser também tomada no Brasil? 

Vamos com calma. A ponderação sobre a sustentabilidade dos carros elétricos deveria necessariamente levar em consideração a composição da matriz energética que os abastece. Isso envolve uma avaliação da composição entre diferentes fontes de energia, sendo algumas não renováveis (e.g., carvão mineral, petróleo e outros), outras renováveis (hídrica, solar, eólica, biomassa e ondomotriz), ou ainda aquelas de classificação controversa (gás natural e nuclear). Quando a geração de energia elétrica provém de combustível fóssil (basicamente de fontes não renováveis), o processo de queima de combustível para a geração de energia tem efeitos nocivos equivalentes ao uso em veículos com motor a combustão.  

E as fontes renováveis, como fontes eólicas, solares ou hídricas? As duas primeiras não são consideradas por especialistas como possibilidades principais em matrizes energéticas de forma geral, porque dependem de condições climáticas e são, desta forma, fontes sem estabilidade geradora. Além disso, existem questões importantes a serem consideradas: no caso dos painéis solares, há uma preocupação ligada às matérias-primas usadas para fabricá-los.  Para que sua matéria-prima básica, o silicato, se torne puro, é necessário processá-lo com acetona, tricloroetano, fluoreto de hidrogênio e ácidos nítrico, sulfúrico e clorídrico. Os painéis solares também têm entre seus componentes, gálio, arseneto, telureto de cádmio e cobre-índio-gálio-selênio, substâncias altamente tóxicas. Os painéis, ao fim de sua vida útil, não podem ser reciclados, e o próprio pó de silício é um enorme risco laboral para aqueles que o manipulam. Já no caso da energia eólica, a emissão de ruído pelas hélices das torres tem consequências negativas para a saúde humana (como distúrbios do sono, enxaqueca e estresse). Além disso, há um impacto direto sobre o comportamento da vida animal nas proximidades das localidades produtoras, em especial para aves e morcegos, como alteração de correntes migratórias e eventuais mortes no choque com as pás. Tais eventos podem ocasionar desequilíbrios ambientais, uma vez que aves e morcegos atuam como controladores de pragas nessas localidades. Outros impactos já mensurados são observados sobre ecossistemas delicados, como áreas montanhosas e dunas litorâneas, sem falar nos óbvios e inevitáveis danos causados pela construção de linhas de transmissão e estradas para o estabelecimento das fazendas eólicas, além do surpreendente ruído das pás, que têm sido reclamação constante dos moradores próximos aos parques eólicos. 

E as hidrelétricas? São uma boa alternativa em termos de geração mais estável de energia. De fato, são a principal opção no Brasil. Mas também têm seus impactos. Um ótimo exemplo é a construção da Usina de Belo Monte, no Pará, que começou em 2011 e cuja última turbina foi inaugurada em dezembro de 2019, e foi construída no modelo “fio d´água”, ou seja, sem um reservatório que possa armazenar grandes quantidades de água em época de seca. Por localizar-se numa região onde chove de forma mais intensa de dezembro a maio, a Usina de Belo Monte deveria ter um reservatório de, pelo menos, 1.200 km2 para armazenar água em época de seca, mas para evitar o alagamento dessa área de floresta, o reservatório foi reduzido para 480 km2. O resultado é que, a Usina, que custou mais de 40 bilhões de reais, só produz a energia para o que foi projetada em metade do ano, entre dezembro e maio, quando as chuvas são mais intensas. Além disso, há que se considerar ainda as já frequentes crises climáticas, com desequilíbrios evidentes nos níveis de chuva, afetando os recursos hídricos do país. No ano 2021, por exemplo, o Brasil obrigou-se a lançar mão das termoelétricas para suportar o seu consumo de energia. O gráfico abaixo mostra que a geração de energia elétrica a partir de combustíveis fósseis (termoelétricas) no Brasil esteve próximo dos 30% do total da geração de energia entre junho e outubro de 2021.  

Fonte: Observador Nacional do Sistema Elétrico

Restariam as opções de fontes de energia cuja classificação como renováveis é ainda contraditória, como o gás natural e as plantas nucleares. Embora a Comissão Europeia tenha recentemente (2022) classificado o gás natural e plantas nucleares como fontes de energia “green”, há uma forte posição negativa da comunidade científica em relação a isso. As críticas são principalmente relacionadas à possibilidade de acidentes sérios, além de efeito estufa, contaminação da água, e descarte impróprio de material radioativo. 

De qualquer forma, pensemos agora na solução europeia aplicada ao Brasil com foco em 2035. A estimativa da frota de automóveis e veículos comerciais leves em 2021 no Brasil foi de mais de 43 milhões unidades. Só em 2021, foram licenciados mais de 2 milhões de veículos dessas categorias. Destes, menos de 0,02% foram carros elétricos. Então, considerando uma carga média de 40kWh em baterias de carros elétricos, com autonomia em torno de 200km a 300km, imaginemos o provável consumo de energia elétrica de uma frota circulante em 2035 – certamente superior a 43 milhões de veículos. Some-se a isso o consumo industrial e doméstico de energia elétrica, que também tende a crescer nesse período. Qual seria a fonte para a geração dessa toda essa energia elétrica? 

Mas, para além do consumo, voltemos a nossa atenção para a produção do carro elétrico ou, mais especificamente, de suas baterias. Uma bateria usada num veículo elétrico pesa cerca de 450 quilos, e pode custar até 40% do valor total do carro. Em dezembro de 2021, em notícia amplamente repercutida pelos meios de comunicação, um finlandês, proprietário de um Tesla Model S, decidiu atear fogo no próprio carro após descobrir que precisaria desembolsar 20 mil euros (aproximadamente R$ 127 mil) para trocar as baterias com defeito do seu veículo elétrico. Mas poder-se-ia alegar que o custo cairá com a economia de escala, certo? Não é o cenário que se desenha. O custo desse tipo de bateria já caiu: estudo da Bloomberg New Energy mostra que ele caiu 87% de 2010 a 2019. Porém, analistas alertam que, quando boa parte do mundo aderir aos elétricos perto de 2030, a situação deve mudar. Com o mundo cada vez mais digitalizado, há uma demanda crescente por mais produtos com conexão à internet, e mais celulares e computadores serão fabricados e vendidos. E todos usam baterias de lítio, que têm a mesma tecnologia do veículo elétrico. Isso dá a dimensão do problema que nos espera no futuro próximo. Mesmo considerando um cenário onde a produção das baterias cresça muito — vamos lembrar que os elétricos são ainda só 10% do total da frota europeia, por exemplo — a demanda pelos metais usados na sua fabricação também cresce exponencialmente, como é o caso, principalmente, do cobalto e do lítio. Este último teve seu preço bastante depreciado nos últimos anos, mas isso foi causado por uma superoferta momentânea, algo que os especialistas afirmam que mudará bastante nos próximos 10 anos. Temos de considerar também outros aspectos complicadíssimos ligados à manufatura das baterias dos veículos elétricos, particularmente os materiais usados para fabricá-las – em geral, lítio, cobalto, níquel, manganês, cobre e alumínio, além de aço e plástico. Todas estas matérias-primas exigem um enorme esforço de mineração. São necessárias toneladas de minério para a extração de uma fração de tais matérias-primas. De fato, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que essa maior demanda sobre os materiais citados deve, pelo menos, dobrar os impactos da mineração sobre o meio ambiente até 2060.   

Não menos importante é a questão do descarte das baterias utilizadas em carros elétricos. Segundo dados apresentados pelo Greenpeace, quase 13 milhões de toneladas de baterias de íons de lítio de carros elétricos terão seu ciclo de vida esgotado até 2030. Mesmo as estimativas mais otimistas apontam para uma quantidade de, no mínimo, 4 milhões de toneladas de descarte até 2030. Embora a indústria de reciclagem de baterias mostre crescimento importante, o montante de descarte extrapola em muito a capacidade instalada de reciclagem de baterias. Além disso, o processo de reciclagem do lítio nem sempre é economicamente viável. Obviamente que o descarte direto na natureza não é uma opção. O lítio pode danificar o sistema nervoso central. O cobalto é potencialmente cancerígeno para os seres humanos. Cobre, ferro e níquel são metais micro contaminantes que podem afetar vários órgãos. Isso só para registrar alguns dos efeitos nocivos do descarte, para além da poluição da água e do solo. 

Um exemplo interessante sobre a sustentabilidade dos carros elétricos é modelo da Volvo, o C40, lançado em 2021. Em relatório técnico, a própria empresa descreve um ponto de equilíbrio de 49.000 km rodados para que esse modelo seja menos poluente que o modelo XC40 ICE, movido a combustível fóssil. E isso, considerando uma geração de energia apenas por parques eólicos. No padrão de geração elétrica EU-28 electricity mix, o número sobe para 77.000 km, e no padrão Global electricity mix, para 110.000 km. A explicação para isso está na avaliação completa do ciclo de vida do carro, desde a aquisição de matéria-prima ou geração de recursos naturais até a disposição ou descarte final do carro. De fato, o carro elétrico tem grande vantagem de sustentabilidade durante a sua fase de uso, mas ainda perde em muito nas fases de produção de matéria-prima, manufatura, e de descarte final. 

De outra parte, precisamos considerar que a decisão sobre fontes energéticas depende do contexto em análise. No caso específico do carro elétrico, um exemplo disso está nas declarações do presidente da Volkswagen América Latina, Pablo Di Si. Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 2021, o executivo declarou que convenceu a sede da empresa alemã de que a melhor opção no Brasil seria investir no desenvolvimento de biocombustíveis, e não em carros elétricos. Seu argumento principal foi o de que o carro movido a etanol emite até 80% menos CO2 que carros movidos a gasolina, além de ressaltar que o país já tem toda uma estrutura montada para a produção e fornecimento de etanol, inclusive com o aproveitamento do bagaço da cana para a produção de biometano e biogás. 

A partir dessas ponderações, precisamos entender que o carro elétrico, apesar de ser uma das opções viáveis de sustentabilidade, não é uma solução livre de impactos negativos. Na verdade, toda e qualquer solução energética deveria ser analisada sob uma perspectiva sistêmica, na qual a sustentabilidade retratasse o equilíbrio entre as opções de fontes de energia, buscando o menor custo final para o ambiente e a sociedade. É fato que mesmo as fontes de energia renováveis cobrarão o seu preço do ambiente. A lista envolve impactos como danos à saúde humana, ruídos, poluição, emissão de gases de efeito estufa, destruição da camada de ozônio, intoxicação, inundações, impacto sobre os habitantes, seca de rios e desmatamento, entre outros. Na realidade, a intensidade dos impactos negativos das fontes renováveis dependerá de vários fatores, como a escala, o método e a localização da produção e do uso da energia. Portanto, a decisão sobre uma matriz energética deveria levar em consideração os aspectos positivos e negativos de todo o sistema de produção e de consumo de energia do ambiente em análise. 

De fato, escolhas mais sustentáveis passam por uma reflexão sobre como queremos viver. A pandemia de Covid 19 demonstrou claramente que aspectos comportamentais e de consumo são mutáveis – vide a redução abrupta da necessidade de transporte e as soluções encontradas, como o home office, por exemplo. 

Assim, o carro elétrico não pode ser analisado de forma isolada, tampouco comparado pura e simplesmente com o carro movido a combustível fóssil. Temos de considerar não apenas os ganhos com o uso do carro elétrico, mas também os danos provocados pela sua produção e descarte. A produção e uso de energia limpa e sustentável é um imperativo dos nossos dias, mas as decisões atuais de matriz energética vão impactar a vida do país durante décadas. Longe de esgotar o assunto, o objetivo deste artigo é chamar a atenção para o fato destas decisões precisarem ser bem pensadas e discutidas amplamente do ponto de vista técnico e econômico, considerando as características e necessidades de cada país. Não se trata de uma solução única e definitiva, mas sim de um processo de pesquisa e de planejamento de médio e longo prazo, envolvendo todos os agentes da sociedade. Em se tratando de geração de energia, não há solução mágica nem “bala de prata”. 

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