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Em Menlo Park, Califórnia, Estados Unidos, em uma sala de enfermaria especializada de 22m², uma equipe de pesquisadores está testando o que pode ser a próxima evolução da interface do computador dentro da matéria mole do córtex motor de Dennis DeGray. DeGray está paralisado do pescoço para baixo após ter sofrido uma queda bizarra em seu quintal enquanto tirava o lixo e, desde então, está “de cama literal e figurativamente”. Para controlar a cadeira de rodas, ele assopra em um tubo.
Para controlar um mouse, ele usa o cérebro com maestria. Faz cinco anos que DeGray integra a BrainGate, uma série de ensaios clínicos em que cirurgiões implantam sondas de silicone do tamanho de uma aspirina infantil no cérebro de pessoas paralisadas. Foram mais de 20 participantes até o momento. Usando estas interfaces cérebro-computador, os pesquisadores são capazes de medir o disparo de dezenas de neurônios enquanto os sujeitos pensam em mover seus braços e suas mãos. São sinais que, uma vez enviados para um computador, fazem com que os participantes com os implantes agarrem objetos com braços robóticos e dirijam aviões em simuladores de voo.
DeGray tornou-se o datilógrafo cerebral mais rápido do mundo. Ele estabeleceu o recorde pela primeira vez há quatro anos, usando sinais cerebrais para operar um teclado virtual com cursor apontar-e-clicar. Por meio da seleção de letras na tela, ele atingiu uma taxa de oito palavras corretas por minuto. Pouco antes do início da pandemia da Covid-19, ele bateu o próprio recorde, ao aplicar uma nova técnica, em que imaginava estar escrevendo letras à mão em papel pautado. Dessa forma, ele produziu 18 palavras por minuto.
Um dos responsáveis pelos estudos com DeGray é Krishna Shenoy, neurocientista e engenheiro elétrico da Universidade de Stanford, Estados Unidos, que está entre os líderes do projeto BrainGate. Enquanto outros pesquisadores de interface cerebral conquistaram notoriedade com demonstrações espetaculares, o grupo de Shenoy manteve o foco na criação de uma interface prática que pacientes paralisados pudessem usar, com enfoque nas interações diárias com o computador. “Logo no início, tivemos que relevar os comentários de pessoas que diziam “Ah, é bem mais legal fazer um braço robótico — dá uma história melhor”, diz Shenoy. Mas “se você puder clicar no que se quer, então pode usar o Gmail, navegar na Web e ouvir música no computador”.
Shenoy diz que está desenvolvendo essa tecnologia para ajudar as pessoas “mais necessitadas e com as piores condições”. Esses incluem tanto os pacientes que estão totalmente acamados e incapazes de falar, como aqueles no estágio final da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA).
Se a tecnologia permite que pessoas como DeGray conectem seu cérebro diretamente a um computador, por que não a estender a outros? Em 2016, Elon Musk fundou a empresa Neuralink, que começou a desenvolver uma “máquina de costura” neural para implantar um novo tipo de eletrodo no cérebro. Musk disse que seu objetivo era o de estabelecer uma conexão de alto desempenho com o cérebro humano para atingir o mesmo patamar da Inteligência Artificial (IA).
No mesmo mês em que a Neuralink veio a público com seus planos, o Facebook anunciou que desenvolveria um capacete de leitura cerebral “não invasivo” para transformar pensamentos em posts na rede social. O que se seguiu foi um enorme influxo de investimento em interfaces cerebrais de todos os tipos, incluindo leitores de eletroencefalograma (EEG), bandanas magnéticas e novos tipos de sondas implantadas de alta densidade capazes de medir sinais de dezenas de milhares de neurônios ao mesmo tempo.
Mais de US$ 300 milhões foram arrecadados por essas empresas nos últimos 12 meses, mesmo diante do fato de o Facebook ter desistido desta empreitada (ficou determinado que um capacete de leitura cerebral levaria anos até se tornar uma forma viável de se enviar mensagens de textos). “Esse campo era considerado inacessível para investimentos até Elon aparecer. Foi isso que provocou abalos no mundo do capital de risco”, diz Shenoy. “Agora os recursos são praticamente infinitos”.
Só que nem tudo são flores quando o investimento chega. De um lado, pesquisadores médicos, como Shenoy, querem ajudar casos mais extremos. Do outro, os investidores querem uma interface funcional para toda e qualquer pessoa. Musk disse que está em busca de implantes cerebrais que sirvam qualquer consumidor que queira um. A Neuralink, por exemplo, até projetou uma elegante cadeira cirúrgica branca, onde espera-se que as pessoas se sentem para a realização de um procedimento de rotina de 30 minutos para a inserção de um implante.
Shenoy, que é consultor contratado da Neuralink, disse estar vivendo um paradoxo científico. Ele se opõe à “produtização” dos implantes cerebrais e se preocupa com tudo, desde o impacto nas desigualdades sociais e econômicas (e se apenas algumas pessoas puderem pagar por um?) até as consequências de se vincular diretamente o cérebro das pessoas às redes sociais. Ele fez, porém, uma barganha Faustiana ao trabalhar com a Neuralink, que está trazendo recursos extremamente necessários para a comercialização dessa interface que, de início, pelo menos, promete melhorar a vida de pessoas paralisadas.
“Não é confortável, mas assim é a ciência”, diz Shenoy. “Qualquer coisa que seja terapêutica e restauradora, eu gosto. Qualquer coisa que seja eletiva, feita apenas para aprimoramento, eu rejeito. Mas, quando a tecnologia é tão nova, não tem como fazer a parte terapêutica e restauradora sem estar geralmente alinhado com pessoas que querem levá-la além. Estamos dando os primeiros passos de um mesmo caminho”.
Macaco que joga Pong
A Neuralink é uma empresa envolta pelo sigilo, mas ela se comunica com o público por meio de apresentações espetaculosas. A mais recente delas, realizada em abril de 2021, mostrava um macaco rhesus chamado Pager jogando o videogame Pong com a mente. A demonstração foi recebida com entusiasmo nas redes sociais, bem como com um processo movido por ativistas dos direitos dos animais, apesar de jogar Pong com comandos cerebrais não ser novidade. Um participante da BrainGate chamado Matt Nagle já tinha jogado Pong contra um editor da revista Wired em 2005.
O verdadeiro avanço feito pela Neuralink foi algo que o vídeo não mostrou: o implante em si. Os designers de chips da empresa construíram um disco do tamanho de uma tampa de refrigerante, contendo processadores e um rádio sem fio, que se conecta a eletrodos costurados ao córtex do macaco. O disco fica rente ao crânio do macaco e é coberto com pele, dando ao implante uma pegada mais prática do que os cabos que saem da cabeça de DeGray.
Em uma postagem no blog, a Neuralink disse que o Pong era apenas uma demonstração, e também expôs pela primeira vez para qual propósito o implante serviria, pelo menos no curto prazo. Dizia: “Nosso primeiro objetivo é devolver às pessoas com paralisia sua liberdade digital: possibilitar uma comunicação mais fácil por meio de texto, saciar sua curiosidade na web, expressar sua criatividade por meio de fotografia e arte e, por que não, jogar videogame”. Mais tarde, um engenheiro da Neuralink disse ao IEEE Spectrum que a empresa tinha o objetivo específico de bater o recorde de comunicação cerebral de DeGray.
Só que os planos de longo prazo de Musk já estão igualmente claros: ele acredita que os cérebros humanos precisam estar diretamente conectados a telefones, computadores e aplicativos. Você poderia fazer pesquisas no Google diretamente do seu cérebro. Você poderia até se conectar com a mente de outra pessoa, vendo e ouvindo o que a outra pessoa está fazendo.
Musk diz que tudo isso faz parte de uma estratégia para compensar as problemáticas existenciais que ele acha que o futuro da IA irá trazer para a humanidade, como um cenário em que uma IA decide acabar com a humanidade, no estilo O Exterminador do Futuro. A opinião dele é de que, para evitar tal desfecho, os humanos devem se tornar ciborgues e se fundir com a IA. “Senão pode vencê-los, junte-se a eles”, escreveu Musk no Twitter em julho de 2020, descrevendo a frase como a “missão organizacional da Neuralink”.
Shenoy diz que está desenvolvendo a tecnologia para restaurar uma existência digital para as pessoas “mais necessitadas e com as piores condições”.
A Neuralink diz que seu objetivo final é “criar uma interface cerebral completa, capaz de conectar melhor a inteligência biológica e a artificial”. Tecnologicamente, atingir esse objetivo significa desenvolver uma conexão cérebro-computador de alta banda larga que pode acessar milhares ou milhões de neurônios de uma só vez.
A tecnologia ainda não avançou o suficiente para isso. O sistema usado no DeGray faz uso de 100 eletrodos por vez. Em geral, os implantes cerebrais utilizam um eletrodo para rastrear a atividade de um único neurônio. O implante N1 da Neuralink realiza a medição a partir de 1.024 eletrodos posicionados ao longo de fios de metal finos; isso significa que detecta cerca de mil neurônios. Além disso, o N1 só foi testado em macacos e porcos até agora.
Quando o assunto são implantes “para consumo” por meio de cirurgia cerebral eletiva, instituições reguladoras, opinião pública e até mesmo a classe médica podem criar impedimentos. Em 2016, uma pesquisa da Pew Research revelou que 69% dos americanos estavam muito ou um pouco preocupados com a perspectiva de chips cerebrais que oferecessem uma melhora na capacidade de concentração ou processamento de informações. De acordo com a Pew, tal oposição estava fortemente relacionada ao medo da “perda do controle humano”.
Os neurocirurgiões ainda precisarão ser convencidos antes de furarem a cabeça de pessoas saudáveis para instalar implantes. Jaimie Henderson, o neurocirurgião de Stanford (EUA), que colocou os implantes de DeGray e coliderou o projeto com Shenoy, diz que acha que pequenos implantes feitos com trauma mínimo são de “risco bastante baixo”, beirando 3% a 5% de chance de infecção. Este é um risco que ele acredita que pode valer a pena para melhorar a vida de uma pessoa com deficiência grave. A questão que se apresenta é: os ganhos de pessoas saudáveis terem um mouse implantado no cérebro compensam os riscos? Mesmo se forem baixos?
“Não está claro para mim quais benefícios as pessoas fisicamente aptas seriam capazes de obter de qualquer sistema atual de interface cérebro-computador”, diz Henderson. “Nosso objetivo é tentar restaurar a função das pessoas que a perderam, da melhor maneira possível e não fornecer algum tipo de capacidade ‘sobre-humana’”.
Ainda assim, Shenoy foi um dos vários cientistas que disseram que, querendo ou não, implantes cerebrais ‘para consumo’ serão possíveis. Já há um número suficiente de pessoas como DeGray que vivem com implantes há anos, com poucos efeitos nocivos, e estão alcançando um domínio significativo do mouse cerebral. “Tecnologicamente, não vejo restrições. Eu não teria dito isso há 10 anos e nem há cinco anos”, diz Shenoy. “Hoje são basicamente eletrodos, chips e um rádio”.
Para alguns, essa interface é intrigante por causa do enorme tempo que passamos em telefones, jogando videogame, ouvindo podcasts ou navegando pelas redes sociais. Isso está gerando muito investimento em novas maneiras de interagir tecnologicamente por meio do cérebro, diz Nita Farahany, professora de direito da Duke University (EUA), que está escrevendo um livro sobre neurotecnologia do consumidor.
“Por que empresas de diversos segmentos estão investindo nisso? Se há a possibilidade de substituir o mouse ou o joystick pelo cérebro humano, não seria uma loucura tão grande querer investir nessa ideia”, diz Farahany. “Esta pode ser a próxima revolução na interface do computador”.
Nathan Copeland é outra pessoa paralisada que vive com um implante cerebral e que faz parte de um estudo em Pittsburgh, EUA. Em 2020, ele se tornou o primeiro a conectar sua cabeça a um tablet em sua casa, em seu próprio tempo livre, sem ser parte de uma sessão científica, algo que normalmente implica a participação de uma pequena equipe de médicos em um contexto clínico. Copeland disse que, a princípio, estava usando o aparelho oito horas por dia, jogando videogame e usando programas para desenhar. Mais tarde, ele se cansou já que seu tablet é um dispositivo médico que usa uma versão muito antiga do Windows, cuja bateria já não dura mais muito tempo.
Copeland disse que acredita que pessoas paralisadas são “pilotos de teste” para as futuras interfaces do cérebro “para consumo”. Em seu caso em particular, diz ele, o maior interesse está em poder jogar mais videogames, um de seus passatempos favoritos, de maneira cada vez melhor.
Virando o jogo
Das cerca de 35 pessoas que receberam um implante cerebral de longo prazo para interagir com um computador, 29 delas, incluindo DeGray, têm implantes de eletrodos construídos por uma empresa chamada Blackrock Neurotech, com sede em Salt Lake City, nos Estados Unidos. O implante, chamado de matriz de Utah, é um quadrado de silício com 100 pequenas agulhas, que é inserido na superfície do cérebro. A Blackrock vende majoritariamente sistemas para pesquisadores que fazem experimentos em animais, e, em razão da afluência de investidores para o campo dos implantes, analistas assaram a chamar a Blackrock e a Neuralink de Lyft e Uber das interfaces cerebrais.
O presidente da Blackrock, um engenheiro elétrico chamado Florian Solzbacher, acha que esse é o momento certo para levar adiante os implantes para pessoas paralisadas. “As pessoas diriam Ai, meu Deus, é uma cirurgia cerebral, mas não encontramos nenhum problema nisso”, diz ele. Toda vez que há um vídeo de alguém controlando um robô ou comendo um Twinkie com uma mão robótica, diz Solzbacher, ele recebe ligações de pessoas paralisadas perguntando quando esses produtos serão comercializados. Só recentemente ele passou a responder que a venda pode acontecer em breve: “Sempre foram 15 anos à frente, e, agora, posso dizer, pela primeira vez, que em breve você poderá ter um em casa”.
Experimentos de “realidade mista” realizados no espaço virtual oferecem uma visão de como pessoas fisicamente aptas podem experimentar mundos de computador por meio de interfaces cerebrais.
Isso se deve a vários fatores, incluindo o desenvolvimento de uma versão sem fio do hardware BrainGate. Em vez de cabos, os participantes têm um transmissor sem fio do tamanho de um disco de hóquei aparafusado em suas ‘entradas’ cerebrais. Não é compacto e elegante como os eletrônicos da Neuralink, mas funciona. Solzbacher planeja que sua empresa seja aprovada para a comercialização de seu próprio sistema sem fio aprimorado para pessoas com ELA ou paralisia grave.
Solzbacher diz que a digitação de DeGray denota o potencial da tecnologia: ele pode digitar palavras muito mais rápido do que qualquer pessoa usando uma faixa de EEG, por exemplo. “Isso significa que é 10 vezes mais rápido do que qualquer tecnologia que existe por aí”, diz ele. “Com isso, é possível ser produtivo e ter um desempenho próximo ao de uma pessoa sem deficiência”.
No entanto, Solzbacher está sendo financiado por pessoas que não estão apenas interessadas em ajudar pessoas paralisadas. Este ano, a empresa dele angariou US$ 10 milhões de investidores, incluindo o bilionário alemão Christian Angermayer, que investe fortemente em psicodélicos, tratamentos de longevidade e saúde mental. Em um post no Twitter, Angermayer não deixou dúvidas de que acha que um mouse cerebral de uso geral é o objetivo final: “É fundamentalmente um dispositivo de entrada-saída para o cérebro e pode beneficiar a todos. Podemos desbloquear casos de uso verdadeiramente surpreendentes e acredito que Blackrock será a única a produzir isso. As pessoas se comunicarão, trabalharão e até criarão obras de arte diretamente por meio de seus cérebros”.
Solzbacher afirma que, por enquanto, nenhum dos planos ou projeções internas da Blackrock envolve implantes cerebrais para consumidores. Ainda assim, ele reconhece que isso pode acontecer: “Espero que haja um grupo de pessoas que realmente queira isso, mesmo que elas estejam tecnicamente bem”.
Quando perguntado se alguma pessoa fisicamente apta já havia solicitado tal dispositivo, Solzbacher diz que ainda não.
Realidade mista
Robert “Buz” Chmielewski estava de cabeça baixa, concentrado, com a visão bloqueada por uma tela, que estava ali para impedir que ele identificasse visualmente qual das duas bolas de futebol havia sido colocada na mão robótica que ele controlava. Usando seus pensamentos, Chmielewski fechou a mão de plástico e metal e apertou a bola. “Bola rosa”, ele identificou. Quando o pesquisador a trocou por outra bola mais dura, Chmielewski pôde sentir a mudança. “Bola preta”, disse ele.
Chmielewski, 50 anos, implantou matrizes de Utah em 2019, 30 anos depois que um acidente de surf o deixou em uma cadeira de rodas. Durante os dois anos que durou o experimento (que terminou em setembro de 2021), ele colocou mais implantes do que qualquer outro paciente: um total de seis, em ambos os hemisférios do cérebro. Por essa razão, ele se tornou capaz de controlar dois braços robóticos simultaneamente. Além disso, três das sondas colocadas em seu córtex sensório-motor enviaram sinais de volta ao cérebro, permitindo que ele recebesse informações táteis dos robôs.
Chmielewski fazia parte de um projeto no Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins (EUA) que está testando novas formas de percepção. Ele também experimentou o par de óculos inteligentes de realidade mista da Microsoft, o HoloLens, e usou o senso de toque virtual do dispositivo para organizar blocos no espaço virtual. “Se você tivesse me dito três anos atrás que eu estaria controlando as coisas com meus pensamentos, eu teria dito que você é louco”, disse Chmielewski durante uma recente apresentação online. “Alguns dos aplicativos que estamos usando me surpreenderam”.
Dentre os pesquisadores do Laboratório de Física Aplicada está Michael Wolmetz, gerente do programa Human and Machine Intelligence. Wolmetz diz que as demonstrações são um vislumbre de mudanças “fundamentais” que estão por vir na interação humano-computador, especialmente no conceito de “realidade mista”. Os experimentos no espaço virtual sugerem como pessoas fisicamente aptas podem experimentar mundos de computadores por meio de interfaces cerebrais, tornando o projeto do laboratório da universidade John Hopkins uma das explorações mais explícitas de como essa tecnologia pode levar ao aprimoramento humano.
“Durante toda a história biológica, a única maneira pela qual interagimos com o ambiente foi por meio de nossos sentidos e função motora”, diz Wolmetz. “Temos, pela primeira vez, a capacidade de sair desse paradigma. É a primeira vez que um organismo biológico faz isso”.
Wolmetz não sabe se as interfaces cerebrais implantadas cirurgicamente serão amplamente usadas, mas ele diz que esses dispositivos são uma “prévia” de como os consumidores poderão usar futuros sistemas não invasivos, como capacetes de leitura cerebral ou faixas de cabeça, caso sejam efetivamente desenvolvidos.
Quando perguntado para que as pessoas poderiam usar essas interfaces no futuro, Wolmetz disse que é difícil prever. “É como perguntar para que servirá o computador”, diz ele. “Acho que ao longo de nossas vidas será para tudo. Mas, pensando nos próximos cinco anos, é difícil responder”.
Alguns querem não apenas ter o mouse do computador em seu cérebro, mas toda a interface, incluindo a tela, ou o que quer que substitua a tela. Um deles é Max Hodak, ex-presidente da Neuralink. Ele foi demitido por Musk em março de 2021, não está claro o porquê, mas ele rapidamente formou uma nova empresa, chamada Science Corp., com apoio financeiro do bilionário de criptomoedas, Jed McCaleb. Hodak diz que planeja desenvolver um novo tipo de implante que fica na retina e pode enviar informações para o córtex visual na parte de trás do cérebro.
Inicialmente, a nova empresa de Hodak procurará ajudar pessoas, como seu avô, que ficou cego devido a doenças na retina. Mas um produto assim é um pretexto para uma ambição maior: criar um dispositivo que também possa produzir imagens aos olhos de pessoas sem problemas médicos.
“Pode ser apenas uma tela de computador que parece tão sólida quanto qualquer outra, e está apenas flutuando na sua frente”, diz ele. “Quando seus olhos estão abertos, você vê o mundo dos átomos. Quando você fecha os olhos, você vê o mundo dos bits”. Hodak acha que em uma geração, as crianças ficarão “perplexas quando dissermos a elas que não se via nada quando fechávamos os olhos”.
Questões éticas
Antes de Musk e dos investidores de capital de risco entrarem em cena, a DARPA, uma agência de Pesquisa e Desenvolvimento do Departamento de Defesa dos EUA, foi a maior financiadora de pesquisa de interface cerebral do mundo.
Andy Schwartz, pesquisador da Universidade de Pittsburgh (EUA), disse estar convencido de que o fascínio dos militares pela tecnologia vem de um filme de Clint Eastwood de 1982, Raposa de Fogo, cuja trama envolve a tentativa de roubo de um jato MiG soviético que é controlado pelo pensamento. Depois que os militares conseguiram que um dos participantes da pesquisa pilotasse um jato de guerra simulado, diz Schwartz, ele se desligou do projeto da DARPA.
John Donoghue, professor da Brown University (EUA) e um dos cientistas fundadores do BrainGate, também está preocupado com a “espetacularização” em torno de implantes cerebrais. Ele passou um tempo em uma cadeira de rodas quando criança, o que é uma das razões pelas quais ele perseguiu o objetivo de restaurar o movimento de pessoas paralisadas. Mas quando ele deu uma palestra no Google alguns anos atrás, um engenheiro o abordou, dizendo ser um ávido jogador. Por essa razão, o engenheiro queria saber se um dia seria possível ter um terceiro polegar.
“Isso é levar as coisas ao extremo. Não quero implantar eletrodos nas pessoas para que possam jogar melhor seus videogames”, diz Donoghue. “Eu sempre contesto essas ideias porque não vejo o que há de bom nisso. Mas também não descarto… por ser isso o que está motivando as pessoas. É o fator do quão legal vai ser quando essa nova interface estiver ao alcance das pessoas”.
Donoghue duvida que os implantes forneçam superpoderes, ou que você possa baixar em breve, diretamente em sua cabeça, o curso básico de francês. O cérebro evoluiu para receber e enviar informações na velocidade que recebe, e não na velocidade de um cabo Ethernet. “Você já ouviu um podcast na velocidade 4x? Não dá muito certo”, diz ele. “Nossos cérebros são feitos para produzir e assimilar o discurso em um nível que podemos usá-lo”.
Shenoy diz que sua preocupação é a de que colocar interfaces de computador na mente das pessoas leve à desigualdade e aos mesmos tipos de abusos de informação vistos na internet.
Outros acreditam que a leitura da mente e o controle da mente são perigos eminentes. Em 2017, mesmo ano em que os planos de interface cerebral do Neuralink e do Facebook foram revelados, um grupo de pesquisadores que se autodenominava Morningside Group publicou um manifesto na revista Nature. Despertaram-se as suspeitas sobre a “convergência” entre a tecnologia do cérebro e os avanços da IA.
O grupo foi formado a pedido de Rafael Yuste, um neurocientista da Universidade de Columbia (EUA), que ficou alarmado com experimentos em seu próprio laboratório, nos quais ele podia não apenas ler a partir do centro visual de um cérebro de camundongo, mas também usar um laser para fazer o animal ver coisas que não existiam. “Tínhamos controle sobre as percepções visuais dos camundongos e podíamos manipulá-los como marionetes”, diz Yuste.
Yuste mantém uma lista de experimentos que acredita apontarem como a neurotecnologia pode comprometer a autonomia humana. Por exemplo, há o trabalho de Jack Gallant, na Califórnia (EUA), que usou scanners de ressonância magnética para deduzir quais imagens as pessoas estão vendo. Há, também, o cientista que conectou o cérebro de um macaco para controlar o braço de outro macaco, chamando um de “mestre” e o outro de “avatar”.
O medo maior é que tudo de ruim na Internet — desinformação, hackers, controle governamental, manipulação corporativa, assédio sem fim — possa ficar muito pior se a tecnologia violar o que o Morningside Group chama de “a última fronteira da privacidade” e acessar nossos pensamentos. “Há um grande problema, e é o problema da privacidade mental”, diz Yuste.
Em maio de 2021, Yuste organizou um dia de encontro online entre especialistas em ética e empreendedores de neurotecnologia para discutir a criação responsável de interfaces neurais.
Vários participantes enfatizaram que acreditavam que as regras precisavam ser estabelecidas antes que se tornasse possível coletar informações cerebrais com tanta facilidade. “Não queremos passar por esse ciclo de grandes corporações coletando dados para lucrar e, no final, pedirem perdão após enfrentarem sanções e regulamentações”, Ryan Field, CTO da Kernel, que está desenvolvendo um fone de ouvido não invasivo para ler a atividade cerebral, disse durante o evento.
Yuste quer regras de privacidade muito mais rígidas do que aquelas que regem os dados da Internet ou o que está no seu iPhone. Ele gostaria de ver os dados cerebrais tratados como órgãos de transplante, cuidadosamente rastreados e com a proibição de qualquer lucro. No mínimo, diz ele, os dados cerebrais devem ser protegidos como informações médicas. Ele também diz que os militares deveriam ser proibidos de usar implantes cerebrais.
“Tenho que mudar quem eu sou”
De certa forma, o campo das interfaces cérebro-computador já está começando a concretizar seu maior objetivo, que também é o maior medo de algumas pessoas: a fusão de humanos e IA.
Esse é certamente o caso dos voluntários de pesquisa como DeGray. O zumbido de seus neurônios é interpretado por um software de IA chamado rede neural recorrente. Cada dia que DeGray usa seu implante, ele começa imaginando alguns movimentos simples, como o de desenhar um círculo. A rede neural que ouve seus neurônios então calibra o mapa estatístico que relaciona a atividade de cada neurônio ao movimento. E a maioria das interfaces cérebro-computador não usa apenas software para interpretar os sinais cerebrais, mas também para melhorá-los. Por exemplo, os programas podem prever qual palavra alguém está tentando soletrar com base nas primeiras letras.
Isso resulta no que Solzbacher, da Blackrock, chama de “atividade compartilhada”, ou saídas que são selecionadas em parte por uma pessoa e em parte por uma máquina. “Isso é cientificamente interessante, mas também é uma questão ética”, diz ele. “Porque quem está realmente tomando as decisões quando os sistemas se adaptam?”
A equipe tentou fazer com que ele experimentasse a digitação mental. Se o software puder rastrear quais movimentos ele está pensando em fazer com os dedos, isso pode aumentar ainda mais sua velocidade de comunicação. O problema é que antes de seu acidente, DeGray nunca foi mais do que um ‘catador de milho’ quando digitava. Agora ele tem teclados de papel colados no teto acima de sua cama, para que possa praticar o pensamento de digitação.
Uma coisa que se queria saber de DeGray era como ele se sentia ao operar um computador com o cérebro. Ele descreveu o que chama de “encontro de mentes” com uma série de máquinas e softwares lendo seus pensamentos. Isso era verdade, principalmente quando ele estava realizando a tarefa de escrita imaginada.
“É uma interação muito pessoal. Você tem que sentir onde estão os movimentos em seu próprio corpo”, diz ele. “Você está tentando escrever as letras, e ele tenta entender. Eu não chamaria isso de um relacionamento, mas é algo próximo. É quase uma conversa entre o aparelho e eu. Às vezes o começo é mais lento, é difícil iniciar. Claro, a máquina é perfeitamente constante. Então, tenho que mudar a mim mesmo para que ela funcione”.
Um dia DeGray imaginou escrever 5.000 palavras. Ele trabalhou tanto que os pesquisadores tiveram que lembra-lo de respirar. “Eu só fui fazendo”, diz ele. “Ao longo de tantas palavras, você se torna consistente. Você rapidamente produz um padrão que o computador é capaz de reconhecer”.