Hubs brasileiros são exemplos no cuidado de pessoas com doenças raras
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Hubs brasileiros são exemplos no cuidado de pessoas com doenças raras

Serviços especializados que concentram a jornada dos pacientes e de seus familiares, otimizando o diagnóstico e o tratamento de doenças raras, são inspiração para países vizinhos.

Condições genéticas raras provavelmente sempre existiram, embora o registro delas seja algo mais recente, propiciado especialmente pelos avanços na ciência genômica. Segundo um estudo publicado em 2022 na revista científica The Lancet, data do século 11 o mais antigo registro de uma síndrome genética rara identificada em humanos. A descoberta foi feita por pesquisadores da Universidade de Coimbra, em um sítio arqueológico na localização de Torre Velha, em Portugal.

Após análises multidisciplinares que combinaram informações genéticas, estatísticas, arqueológicas e antropológicas, os cientistas conseguiram afirmar que um esqueleto encontrado no sítio pertenceu a um homem que viveu com a síndrome de Klinefelter, uma condição que ocorre aproximadamente uma vez a cada mil nascidos do sexo masculino. A síndrome dá aos homens um cromossomo X extra e pode se manifestar em alterações físicas como testículos e pênis de tamanho pequeno, infertilidade e mamas volumosas, entre outros sintomas.

Cerca de mil anos separam a existência deste, que é considerado até então o ser humano mais antigo portador de uma doença de origem genética incomum, da abordagem do que hoje conhecemos como doenças raras.

O relato histórico dá conta de que na década de 1980, nos Estados Unidos, associações de pacientes com diferentes doenças genéticas começaram a se movimentar em protesto à invisibilidade de suas necessidades. Foi com o intuito de ganhar força que passaram a empregar a denominação “doenças raras”. Mobilizados agora em um grupo coeso e político passaram a lutar pelo pleno direito à saúde. O resultado foi a criação, em 1984, de uma lei norte-americana para incentivar as indústrias a investirem em pesquisa e desenvolvimento de novas drogas, a Orphan Drug Act (em tradução livre, lei sobre medicamentos órfãos). “Doenças órfãs”, aliás, é outra denominação comum internacionalmente para as patologias raras, posto que são doenças cujos tratamentos específicos não existem ou nunca foram largamente investigados pela ciência e pela indústria. Ocorre que, após o surgimento da Orphan Drug Act, houve a construção de uma série de leis e políticas públicas voltadas ao tema nos Estados Unidos, fato que foi seguido por vários outros países, incluindo o Brasil.

Doenças raras no Brasil

Foi em 2009 que a categoria doenças raras ocupou pela primeira vez destaque em um seminário médico no país, o I Congresso Brasileiro de Doenças Raras. Fruto dele foi a articulação de um grupo de trabalho para a elaboração da Política Nacional de Atenção às Pessoas com Doenças Raras, que foi efetivamente instituída em 2014, com a publicação Portaria 199/2014.

A política nacional nasce com objetivo de “reduzir a mortalidade, contribuir para a redução da morbimortalidade e das manifestações secundárias e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, por meio de ações de promoção, prevenção, detecção precoce, tratamento oportuno redução de incapacidade e cuidados paliativos”.

Entre os objetivos específicos, o texto da portaria ressalta a universalidade dos serviços de saúde em relação às pessoas com doenças raras. De fato, em 10 anos de existência da política nacional, novos serviços de referência em doenças raras foram habilitados no Brasil, embora uma pesquisa realizada pela ORIGIN Health observe que os centros especializados com consultas e equipes multidisciplinares possuem baixa capilaridade.

Dados do Ministério da Saúde apresentados no material indicam a existência de 31 serviços cadastrados, a maioria nas regiões Sudeste (12), Sul (7) e Nordeste (7). O cenário ainda é pouco efetivo no cumprimento do que preconiza a política nacional: “garantir às pessoas com doenças raras, em tempo oportuno, acesso aos meios diagnósticos e terapêuticos disponíveis conforme suas necessidades”.

O conteúdo está disponível em uma Special Edition da MIT Technology Review Brasil, apresentado durante um evento realizado em Brasília, em abril deste ano, e patrocinado pela PTC Therapeutics.

Modelos inspiradores

Reduzir o tempo de espera por um diagnóstico ainda é uma grande questão para os pacientes de doenças raras, mas exemplos bem-sucedidos mostram que isso é possível. É o caso da Casa dos Raros, instituição sem fins lucrativos criada em 2013, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O centro fica na região do Hospital de Clínicas de Porto Alegre – referência para tratamento de doenças genéticas raras no país – e possui estrutura de consultórios, salas para tratamentos e laboratórios, sendo um para diagnóstico e outro para produção de terapias avançadas.

Hoje a Casa dos Raros conta com um espectrômetro de massa em tandem capaz de identificar moléculas que outros exames não conseguem captar, o que permite o diagnóstico de até 70 tipos de doenças raras. Essa realidade só foi possível, segundo o presidente da instituição, Antoine Daher, graças ao apoio da iniciativa privada.

Daher destaca, principalmente, a redução do tempo de diagnóstico: o que levaria uma média de cinco anos para ser feito no sistema de saúde no Brasil é entregue pela Casa dos Raros em menos de dois meses.

Também presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras e da Casa Hunter, Antoine Daher avalia que o país ainda carece de um modelo de manejo bem-definido, sugerindo o que está sendo implementado na Casa dos Raros como um formato adequado de assistência.

“Não teremos um plano de manejo adequado em qualquer hospital. Temos que ter centros adequados para tratar, diagnosticar. Nós temos um convênio com o governo do Rio Grande do Sul e recebemos R$ 3 mil por cada paciente para fazer o diagnóstico e montar o plano de manejo, mas veja que esse paciente, antes de chegar para fazer o diagnóstico correto, custa para o SUS acima de R$ 50 mil, porque muitos deles fazem várias cirurgias tratando consequências sem saber a causa. Temos um problema, mas não é financiamento”, afirma.

A médica geneticista da Casa dos Raros, Carolina Fischinger, aponta como diferencial do centro, além da alta tecnologia diagnóstica, o modelo de manejo da doença com uma jornada multidisciplinar bem estruturada.

“Em um centro grande, o paciente chega, é atendido e é encaminhado para um neurologista. Mas ele também precisa de fonoaudiólogo, de psicólogo. Enfim, ele é encaminhado, mas eu não sei quando ele vai acessar esses profissionais, porque eles estão soltos no sistema de saúde, e o paciente tem que fazer toda essa jornada sozinho”, explica a médica.

“Qual é o modelo que nós temos na Casa dos Raros? A primeira consulta é uma teleconsulta. Nela, a gente já identifica todas as necessidades do paciente. A jornada já é encurtada porque não há o deslocamento do paciente. Quando ele chega presencialmente, ele já sabe quais coletas serão feitas, para quais exames; com quais profissionais ele vai passar, com fisioterapeuta, com fonoaudiólogo, psicólogo, assistente social etc. No fim, o paciente tem o diagnóstico, o cuidado da equipe multiprofissional. Ele recebe o dossiê com um relatório, o diagnóstico, o CID, a avaliação de cada especialidade da equipe que o direciona para os serviços do seu município”, complementa.

O modelo da Casa dos Raros está em processo avançado para ser replicado em Minas Gerais e em São Paulo, e há interesse de implementação já manifestado por países como Colômbia, Argentina e Arábia Saudita.

Outro serviço habilitado pelo Ministério da Saúde e que tem destaque no país é o Centro de Referência de Doenças Raras do Distrito Federal. A unidade funciona no Hospital de Apoio de Brasília e passa por uma ampliação, com uma mudança futura para uma sede própria. Hoje há capacidade instalada para o atendimento de cerca de 6 mil pacientes por ano, e a intenção é aumentar os atendimentos multidisciplinares em doenças raras, exames genéticos e terapias de infusão enzimática para crianças e adultos.

O Distrito Federal é pioneiro na ampliação do teste do pezinho por conta da Lei Distrital 6.382/2019, que determina a investigação de 70 enfermidades para todas as crianças nascidas nos hospitais e unidades de saúde da rede pública do estado (hoje o estado detecta 62 doenças).

A agilidade no diagnóstico garante maior efetividade dos tratamentos e mais qualidade de vida a pessoas com doenças raras. Para tanto, o centro conta com um acompanhamento realizado por equipes multidisciplinares, formada por médicos geneticistas, neuropediatras, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, endócrino-pediatras, odontopediatras e terapeutas ocupacionais.

Na visão da coordenadora de Genética e Doenças Raras da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Maria Teresinha Cardoso, o trabalho multiprofissional é uma cultura fácil de ser trabalhada e implementada, mas o que traz relevância realmente é o treinamento das equipes e dos médicos da atenção básica, para que eles possam dar o correto encaminhamento para os pacientes com suspeita de um diagnóstico de doença rara.

“De uma maneira geral, a classe médica desconhece as doenças raras. Acima de tudo, se faz necessária uma ação conjunta do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação para que ocorra uma melhor preparação dos médicos para a nova realidade, que inclui o conhecimento de genética. Esse desconhecimento gera a via sacra do paciente. Não porque o médico quer, mas porque ele não enxerga, ele desconhece”, avalia Maria Teresinha.

Atuação conjunta

Segundo o coordenador-geral de Doenças Raras do Ministério da Saúde, Natan Monsores, a figura do polvo com seus tentáculos ilustra o que a gestão pública pretende na organização do cuidado de pessoas com doenças raras: uma assistência mais robusta centralizada, sem deixar de chegar àqueles que estão nas margens.

Natan relata que a coordenadoria-geral das Doenças Raras trabalha para aumentar a capacidade de resolução do sistema público de saúde para garantir a efetividade da Política Nacional de Atenção às Pessoas com Doenças Raras, mas ressalta que esse precisa ser um esforço conjunto, não apenas do governo federal.

“A sensibilização que temos feito é no sentido de garantir essa efetividade, essa manutenção, para que o gestor local consiga enxergar a necessidade de ter um serviço especializado e adote esse sistema. Não adianta eu ter todo o movimento de políticas públicas, de criação de protocolos e diretrizes terapêuticas para medicamentos de altíssimo custo, se eu não tenho dentro das regiões de saúde capacidade instalada para por em curso essas ações, o que depende de uma ação sinérgica do Ministério da Saúde, do gestor do município e do estado, do complexo industrial econômico, do Parlamento, do Poder Judiciário, da organização da sociedade civil. É um ecossistema. Ou caminhamos todos juntos pelo bem do paciente ou vamos ter prejuízos ainda maiores do ponto de vista de equidade”, analisa o coordenador.

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