Eu nunca vou esquecer quando, lá no início dos anos 2000, eu conversava com um web designer que pedia aumento de salário por ser muito mais rápido que seus pares. Segundo ele, quem entregava mais projetos em menos tempo deveria ter um salário maior. Porém, os cargos eram organizados por senioridade, e o RH não aceitava aumentar aquele salário, pois o funcionário “só tinha seis meses de empresa”, enquanto outros de mesmo cargo estavam há mais tempo aguardando suas promoções.
De lá para cá, o mundo mudou bastante, ainda bem.
Pré-pandemia:
Foi a partir da necessidade de especialização e de pessoas como esse web designer que a “economia freelancer” decolou, a ponto de um estudo da Upwork sugerir que até 2027 metade dos trabalhadores norte-americanos seria de freelancers em tempo integral.
O caso de construção de sites é clássico, e vou utilizá-lo para ilustrar essa história, sabendo que o mesmo se repete em diversas outras áreas e indústrias: arquitetos, consultores financeiros, vendedores, advogados, corretores, jornalistas etc.
No início dos anos 2000, um profissional webmaster fazia um site inteiro: do layout até os códigos, formulários e banners de divulgação. Hoje eu não vejo um site ser construído sem menos de uma dúzia de pessoas envolvidas: back-end, front-end, cientistas de dados, motion designers, web designers, redatores, user experience, especialistas em buscadores, redes sociais, conteúdo, privacidade, análise de dados etc.
É no mix entre esses profissionais que moram as oportunidades. Por exemplo: se na construção de um site só são necessárias 20 horas de um redator e outras 160 horas de um web designer, faz sentido contratar um redator em tempo integral?
A solução é chamar um “freela” que é especialista, um “ninja” naquele tema, e que só faz isso para diversas empresas. Especialização e diversificação andam de mãos dadas.
O web designer do início deste artigo fez isso. Hoje trabalha sozinho para uma série de agências fazendo o “crème de la crème” do design e ganhando muito mais dinheiro.
Esta é a economia freelancer.
Também graças aos “freelas”, milhares de padarias, dentistas, pequenas lojas e startups conseguiram ter seus sites feitos por profissionais de alta competência contratando apenas “a parte que precisam” do seu trabalho. Isso pode ser visto também pela lente da inclusão digital.
O modelo oposto a este é aquele em que o redador (contratado por oito horas diárias) fica sem sites para fazer e, então, é alocado em projetos que não o estimulam. Esse espiral negativo de desestímulo afeta tanto o redator como a própria empresa e os seus clientes.
Pós-pandemia:
Obrigados a trabalharem em suas casas, muitos profissionais não estão mais sob os olhares dos gestores ou seus pares passando pelos corredores. O horário em muitos casos foi flexibilizado. Muitas famílias ganharam qualidade de vida com pais e mães almoçando com seus filhos. Muitas pessoas não querem voltar ao escritório. Isso a gente já sabe.
O que a gente nem sempre sabe é que, trabalhando de casa, muitos profissionais estão fazendo “freelas” para outras empresas ao mesmo tempo que trabalham para seus empregadores. Isso acontece muitas vezes durante o horário útil de trabalho.
Estes não se tornaram “freelancers em tempo integral”, como previa a pesquisa da Upwork, mas estão mantendo seus empregos enquanto trabalham para outras empresas.
No mundo da tecnologia, onde faltam profissionais capacitados (artigo), muitas vezes não há como escapar: diante da necessidade de entregar seus projetos, as empresas terceirizam suas equipes com empresas externas. Fornecedores que, por sua vez, contratam “freelas”.
Qual o problema?
Eu vejo um: o compartilhamento de informações e projetos confidenciais. De tanto se movimentarem “por baixo do radar”, a rede de “freelas” pode colocar segredos em risco. Aquele aplicativo que sua empresa está fazendo de forma confidencial pode estar sendo executado por programadores que trabalham em empresas próximas a seus concorrentes.
Os contratos de confidencialidade entre empresas podem se tornar apenas “pro forma”.
As oportunidades são muitas:
1. Para empresas e gestores: uma evolução na relação com funcionários.
O fato de não ser possível ver o que as pessoas fazem durante oito horas por dia vai mudar como gestores olham para seus times. Isso é ótimo, pois cada vez mais o foco será no valor entregue por cada pessoa, independentemente das horas gastas.
Conversando com o diretor de uma grande empresa de software, eu ouvi:
“Quando um vendedor gera negócios e bate suas metas, nós dois estaremos felizes. Não estou nem aí se ele trabalha durante oito ou duas horas diárias e não me importa se ele vai ao clube ou tem outro trabalho, desde que não seja para um concorrente meu.”
E ele terminou nossa conversa com uma frase que mostra o quanto ele está focado na geração de valor: “Na verdade, fico feliz de saber que o vendedor consegue encaixar outro emprego durante o dia e ganhar mais em ambos. Se isso é possível fazer aqui, ele ficará”.
Existe o risco de uma pessoa assumir mais coisas do que ela consegue entregar. Porém, o mercado vai se encarregar de resolver isso com o tempo.
Nessa nova realidade, funcionários serão promovidos pelo valor entregue (o aumento das vendas, a eficiência, a arte, o texto bem escrito etc.), e não pela quantidade de anos trabalhados na empresa ou pelo currículo universitário. Isso abre oportunidades para pessoas sem formação “de primeira linha”, que aprendem estudando na internet e nos livros. Isso é inclusão.
A cola que melhor conecta funcionários às empresas não é o controle. Não adianta gravar tudo o que fazem ou pedir para os colaboradores abrirem as câmeras a cada meia hora. A conexão está no propósito: no motivo pelo qual estão trabalhando. Na alegria que sentem quando percebem que seu trabalho de verdade tem impacto nas pessoas, na empresa, na sociedade e assim por diante. Eu já falei sobre isso neste artigo.
Modelos de distribuição de ações e participação nos resultados são essenciais para garantir o engajamento pelo comprometimento, mais do que pelo horário de trabalho.
Sem esse contexto, acreditando que sua função é apenas a de apertar parafuso, os melhores profissionais farão 20 “freelas” – e está tudo bem. Já os piores ficarão na sua empresa recebendo pelas oito horas de trabalho diário.
2. Para os trabalhadores: melhores ganhos e menos comoditização.
Quem nunca ouviu histórias de profissionais que, aqui do Brasil, estão trabalhando para uma empresa nos EUA ou na Europa e ganhando mais? Cada vez mais comum, esse tipo de captação dos melhores talentos também inclui, em alguns casos, a mobilidade, mudando de cidade ou país.
Porém, quanto melhor a percepção do valor que as pessoas têm do seu próprio trabalho, mais elas vão se comparar com seus pares de acordo com a entrega de valor, independentemente do país onde vivem ou da cidade onde moram.
A ideia de que pessoas competentes aceitam receber menores salários só porque vivem em lugares mais baratos pode estar em risco.
Se você não acredita em mim:
Pergunte se seus funcionários também “trabalham para fora” fazendo “freelas”, e a resposta mais provável será “não”. Então diga que você precisa de mais gente na empresa, diga que precisa contratar freelancers. Aí você vai descobrir que todos os amigos dos seus funcionários, inclusive aqueles que trabalham na concorrência, estão à disposição para “freelar”.
Isso vai lhe dizer muita coisa, e espero que seja um alerta para pensar de forma diferente como você promove as pessoas (por tempo de casa, chegar cedo e sair tarde), treina, motiva com propósito e, por fim, mede e/ou controla seus colaboradores.
Este artigo foi produzido por Fernando Teixeira, SVP de Dados na Media.Monks e colunista da MIT Technology Review Brasil.