A ética na experiência do usuário em produtos digitais
Negócios e economia

A ética na experiência do usuário em produtos digitais

Com o aumento na oferta de produtos digitais, surgem questões éticas sobre influência no comportamento humano, destacando a dualidade entre má fé e melhoria da experiência do usuário.

O que você encontrará neste artigo:

Os padrões de comportamento e os vieses cognitivos
Utilização dos Deceptive Patterns
Discussões sobre a ética e o uso dos nudges


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Pensar sobre o comportamento influenciado pela interação entre humanos e computadores não é algo novo. Desde os anos 80 já se fala sobre a experiência das pessoas com produtos e serviços e suas jornadas de interação com eles. Um dos grandes pioneiros em tratar sobre o assunto e também um dos grandes responsáveis por popularizar o termo ‘User Experience’ foi o professor e pesquisador sobre ciência cognitiva, Donald Norman.

Donald Norman, um dos pioneiros em falar sobre experiência do usuário (Fonte: https://www.nngroup.com/people/don-norman)

Ele relata em seu livro ‘O design do dia a dia’ que a experiência está no todo de uma jornada e não só na interação de um computador ou smartphone, porém eles ajudam a compor a experiência que uma pessoa pode ter.

Levando em consideração esse nível de profundidade, as empresas, principalmente as de tecnologia, viram valor em estudar e idealizar soluções com base nas experiências das pessoas, conseguindo assim desenvolver produtos melhores para elas.

Apesar de, nos últimos anos, o setor de tecnologia ter sido muito impactado pelas demissões em massa e, consequentemente, pela redução das estruturas, ainda é muito comum que as empresas com maior maturidade em UX Design tenham em sua estrutura times focados com essa finalidade.

Atualmente, esses times prezam por um aspecto mais estratégico, ajudando os times a estruturar suas visões de produto a médio e longo prazo, com o propósito de escalar o portfólio do que é oferecido e trazer lucratividade para as organizações, porém ainda com o comportamento das pessoas no centro dessas experiências.

Os padrões de comportamento e os vieses cognitivos

Durante a experiência que as pessoas podem ter com produtos e serviços, é natural que elas comecem a desenvolver padrões de comportamento estabelecidos em suas jornadas. Isso pode acontecer por vários fatores, que vão desde aspectos culturais presentes no sistema de aprendizagem desde a primeira infância das pessoas até influências sociais, como fazer parte de um grupo.

No sistema nervoso dos seres humanos, existem várias áreas que colaboram para o desenvolvimento desses padrões de comportamento, mas pensando em interação, talvez o recurso que mais traz isso de modo explícito sejam os neurônios-espelho.

A neurocientista Carla Tieppo, em seu livro “Uma viagem pelo cérebro: A via rápida para entender a neurociência”, relata que esses neurônios são ativados ao observarmos alguém realizando um movimento desejado, permitindo uma simulação mental do comportamento. Isso nos torna bons imitadores desde o nascimento, favorecendo a aprendizagem pela imitação.

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Quando visto pela perspectiva de produtos digitais, é natural que as pessoas comecem a aprender por imitação também. Um bom exemplo que temos hoje é deparar com crianças já reproduzindo movimentos de interação com smartphones ou até mesmo dialogando com assistentes virtuais com base nas observações de seus pais interagindo com esses mesmos artefatos. Isso ocorre não apenas com as crianças, mas também entre os adultos, principalmente em novas experiências de consumo.

Em cenários como esse, começamos a formar padrões de comportamento, porém muitas vezes não há reflexão sobre esse tipo de interação, o que pode resultar no surgimento de vieses cognitivos.

Os vieses cognitivos são distorções no julgamento em situações específicas, resultando em percepções distorcidas ou julgamentos imprecisos. Hoje, no campo da psicologia, há uma grande diversidade de vieses mapeados, que podem ajudar as pessoas a compreenderem melhor como somos afetados por eles.

Quando olhamos para o digital, as pessoas podem interagir com os vieses cognitivos e tomar decisões inadequadas, algo que é muito comum de acontecer. Por isso, é importante entender o comportamento humano para evitar tais impactos, embora haja relatos de organizações que se aproveitam dos vieses das pessoas para obter lucro.

Utilização dos Deceptive Patterns

Os Deceptive Patterns são técnicas usadas por organizações e designers para influenciar as decisões dos usuários de forma sutil e inconsciente. Isso pode incluir a manipulação de interfaces, cores e posicionamento de elementos para direcionar o comportamento dos usuários sem total percepção.

Para ilustrar a prática, um dos vieses cognitivos mais estudados é o viés da ancoragem, que se refere à propensão de confiar excessivamente em informações passadas ou detalhes específicos ao tomar decisões, o que pode ser prejudicial ao limitar a cognição à experiência anterior. Assim, uma pessoa que está acostumada a realizar compras online em um site por exemplo, pode ser afetada pelo viés da ancoragem, onde confiará na experiência anterior como padrão de comportamento, reduzindo sua atenção na jornada de compra.

É aqui que entra o Deceptive Pattern. Em situações como essa do exemplo apresentado, onde o designer ou a pessoa responsável pela loja virtual conhece esse padrão de comportamento, pode agir de má fé, inserindo elementos que levem a pessoa a consumir algo que ela não desejava, como um produto apresentado como acessório complementar já com a seleção ativada, sendo percebido apenas ao finalizar a compra.

Essa prática vai contra a ética relacionada ao consumo e pode violar a legislação do código do consumidor, porém não é uma prática incomum no setor de tecnologia.

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Muitas pessoas questionam a categorização de situações como essa como Deceptive Patterns, pois pode parecer que muitas estratégias de marketing são prejudicadas. No entanto, é importante refletir sobre a transparência, garantindo que o consumidor tenha total ciência do que está adquirindo como produto ou serviço.

Isso não significa que não seja possível utilizar estudos de psicologia e neurociência para desenvolver estratégias de vendas. Pelo contrário, existem vários casos de sucesso no mercado que demonstram isso sendo feito sem violar a ética.

Na EuroShop de 2023, foram apresentadas sugestões de iluminação em um dos estandes, que podem ser aplicadas em supermercados, por exemplo, realçando os aspectos dos produtos e ativando gatilhos mentais para que as pessoas resgatem suas memórias afetivas relacionadas aos alimentos, principalmente através da visão, mas também do olfato, incentivando o consumo desses produtos novamente.

Sugestão de iluminação exposta na EuroShop de 2023

Discussões sobre a ética e o uso dos nudges

O debate sobre a ética na interação com produtos digitais tem ganhado força nos últimos anos, principalmente devido ao aumento da oferta desses produtos, como mencionado no início deste artigo. Levando em consideração a experiência do usuário, a percepção de que o usuário pode ser prejudicado na interação com algum produto ou serviço pode acarretar vários problemas, incluindo a possível perda de clientes e a criação de uma imagem negativa da marca.

Em um mercado afetado por diversas crises políticas, financeiras e até mesmo pelas guerras na Europa e no Oriente Médio, negligenciar a qualidade da experiência do usuário pode levar à falência.

Mesmo os profissionais que trabalham nas grandes empresas de tecnologia, responsáveis pelas redes sociais mais utilizadas do mundo, estão refletindo sobre esse assunto. Isso é evidente no documentário “O Dilema das Redes”, lançado em 2020 pela Netflix, que aborda o papel dessas redes no comportamento humano, especialmente no que diz respeito à formação de bolhas sociais e à propagação de notícias falsas, limitando assim a busca pelo conhecimento.

Por outro lado, estão surgindo estudos que propõem soluções para esses cenários e podem contribuir para o design de experiência do usuário, como os Nudges.

Os autores Richard Thaler e Cass Sunstein descrevem em seu livro “Nudge: Como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade” que os Nudges são intervenções suaves que influenciam positivamente o comportamento das pessoas, sem impor restrições para que elas possam tomar suas próprias decisões.

Um case interessante nesse contexto é o da startup Movva, que visa ser um empreendimento de impacto social, utilizando tecnologia de inteligência artificial aliada aos princípios da economia comportamental. Através da análise de dados, a Movva desenvolve e envia comunicações com o objetivo de promover comportamentos positivos relacionados ao comprometimento educacional, prevenção do endividamento e estímulo à formação de hábitos financeiros saudáveis.

É claro que a Movva é apenas um exemplo de como os Nudges podem ser utilizados como orientadores de negócios, havendo ainda muitas possibilidades a serem exploradas. No entanto, é importante refletir que a experiência do usuário pode se tornar cada vez mais estratégica para os negócios, e os estudos sobre o comportamento humano podem ser aliados valiosos para as organizações, sem que isso implique em ultrapassar os limites éticos.

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