Em busca de equilíbrio para incluir novas tecnologias no SUS
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Em busca de equilíbrio para incluir novas tecnologias no SUS

Em um cenário de restrição orçamentária, é inviável oferecer todas as novas tecnologias em saúde disponíveis para todos os pacientes elegíveis. Escolhas precisam ser feitas, e ainda há um longo caminho para se chegar a critérios mais justos

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Com uma única barra com um eixo central, tendo em cada extremidade um prato, os egípcios teriam criado, em 5000 a.C., a primeira balança. Segundo os relatos históricos, a invenção foi pensada para pesar o ouro e, ao mesmo tempo, aparecia em ilustrações que retratavam o chamado “julgamento final”, ao qual todos os espíritos eram submetidos. Nesse ritual, o deus dos mortos colocava em uma balança o coração do falecido e usava como contrapeso uma pluma, que representava a justiça. A absolvição ou condenação dependia do resultado de equilíbrio entre esses dois elementos que, racionalmente, possuem pesos bastante díspares.  

Mais de 7 mil anos depois, a balança continua sendo amplamente utilizada pela sociedade e ganhou versões de alta precisão, capazes de pesar microgramas. Porém, no campo simbólico, quando se faz referência a um processo de tomada de decisão em que são avaliados os prós e os contras de determinada escolha, a ideia da balança se aproxima mais daquela originária do Antigo Egito, e está sujeita a um grau de subjetividade imprevisível, como nas narrativas mitológicas.  

Pode-se dizer que esse racional é aplicado, por exemplo, para definir quais novas tecnologias em saúde serão oferecidas para a população no Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse caso, o julgamento se transpõe para necessidades médicas não atendidas. De um lado da balança, estão as novas tecnologias; do outro, os recursos financeiros disponíveis no orçamento.  

O cenário de desequilíbrio é uma consequência do surgimento de um número cada vez maior de tratamentos inovadores para a saúde, impulsionado principalmente pelo envelhecimento populacional, pelas mudanças no estilo de vida e pelo aumento na prevalência de doenças crônicas, sem que haja recursos financeiros suficientes para arcar com seus custos. O desafio está em como agir diante de tantas opções e fazer as melhores escolhas para equilibrar a balança.

Pilares da ATS

O aumento de custos frente a um orçamento limitado levou à necessidade de implementação de metodologias, em conjunto com políticas públicas, para nortear decisões sobre as tecnologias oferecidas para a população de forma gratuita, via Sistema Único de Saúde. A partir disso, há uma garantia maior de acesso correto e adequado e, ao mesmo tempo, sustentabilidade financeira do setor.  

Atualmente, para a avaliação de uma nova intervenção, se faz necessário demonstrar os seus valores clínicos, econômicos e sociais através de conjuntos de métodos chamados de Avaliações de Tecnologias em Saúde (ATS). A ATS irá nortear as discussões nas tomadas de decisão sobre a incorporação de tecnologias em saúde no SUS e, consequentemente, definir aquelas que serão oferecidas para a população de forma gratuita, assegurando uma administração eficiente dos recursos financeiros.  

Hoje, três pilares conduzem o processo de decisão sobre a escolha das tecnologias incorporadas ao SUS: se ela é eficaz e segura para o paciente; se é custo-efetiva; e se existe orçamento suficiente para oferecê-la para todos os pacientes elegíveis.  

O que determina se uma tecnologia é eficaz e segura são estudos clínicos científicos com boa qualidade metodológica para comprovar os ganhos clínicos que o paciente teria com o uso desta tecnologia em comparação ao tratamento atualmente disponível.  

As análises de custo-efetividade mostram se a tecnologia tem uma boa relação entre custo e benefício clínico para o paciente e apresentam como resultado a relação entre o custo incremental e o benefício clínico incremental. 

O último ponto é definido pelo orçamento do governo, também sob a ótica do custo de oportunidade, uma vez que a incorporação de uma tecnologia leva automaticamente a não incorporação de outra, já que elas disputam a mesma verba orçamentária.  

Assim, a ATS pode ser considerada uma ponte entre o mundo da evidência científica e o mundo da tomada de decisão. Por envolver muitos fatores específicos para cada contexto local, recomenda-se que cada país tenha suas próprias agências de ATS. No Brasil, a agência que analisa tecnologias no SUS é a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (Conitec).  

A balança de custo-efetividade 

A análise de custo-efetividade combina parâmetros de custo com desfechos clínicos e tem como resultado a razão de custo-efetividade incremental (RCEI), calculada através da divisão do custo incremental pela efetividade incremental. 

Já a efetividade é medida pelo desfecho clínico selecionado para a análise econômica. Os desfechos são resultados clinicamente relevantes como, por exemplo, a taxa de sobrevida em uma doença oncológica ou infartos do miocárdio evitados em um tratamento para hipertensão arterial.  

Porém, um desfecho pouco relevante para o gestor de saúde pode ser de grande valor para o paciente. Assim, os anos de vida ajustados pela qualidade (QALY, quality-adjusted life years) podem ser utilizados no intuito de avaliar não apenas a sobrevida, mas também a qualidade de vida relacionada à saúde do paciente durante esse tempo.  

Como vantagem, o QALY pode ser aplicado para qualquer doença, o que permite a comparação dos resultados de análises econômicas para diferentes patologias em um contexto de restrição orçamentária em sistemas universais de saúde como no Brasil, onde não há recursos financeiros suficientes para oferecer todas as inovações para todos os pacientes. Ofertar determinada tecnologia pode significar renunciar a outra, ressaltando a importância da criação de políticas públicas que permitam comparações que gerem a melhor relação custo-benefício sob a perspectiva da saúde coletiva.  

Uma das ressalvas quanto ao desfecho QALY é a carência de dados relacionados à qualidade de vida específica para pacientes brasileiros. Além disso, ele pode não ser considerado um desfecho democrático, exibindo um caráter discriminatório e trazendo implicações negativas para pessoas que vivem com doenças raras, idosos e pessoas com deficiência.  

O princípio básico para não o considerar como um desfecho democrático é a lei dos rendimentos decrescentes, que expressa a relação econômica da utilização de unidades adicionais de trabalho. Em palavras simples, a lei diz que um aumento de cem reais ao salário de quem ganha mil reais vale mais do que um aumento de cem reais no salário de quem ganha 10 mil reais.  

Quando levamos esse princípio para saúde, a interpretação da lei seria a de que um incremento de qualidade de vida, em valores absolutos, traz um impacto mais relevante em quem parte de uma linha de base de baixa qualidade de vida quando comparado a alguém com uma patologia que pouco impacta sua qualidade de vida. Mas os modelos de custo-efetividade que usam QALY ainda atribuem pesos semelhantes aos incrementos em qualidade de vida observados com o uso de novas tecnologias, sem levar em consideração quanto esse incremento absoluto realmente representa na qualidade de vida do paciente.  

A pluma da justiça e os limiares 

Com o modelo de custo-efetividade finalizado, a ferramenta fornece um valor de RCEI que expressa o quanto aquela incorporação vai trazer de custo incremental para a obtenção de um benefício clínico quando comparada ao padrão atualmente disponível de tratamento. E com tal resultado em mãos, assim como na mitologia egípcia, é preciso partir para sua interpretação para a tomada de decisão: a tecnologia é ou não é custo-efetiva? Para essa resposta, algumas agências de ATS no mundo definem limiares de custo-efetividade que funcionam, de forma semelhante à pluma da justiça, como linhas de corte. Os limiares definem o limite de disposição a pagar pelas novas tecnologias, ou seja, quanto a mais o gestor público estaria disposto a pagar para salvar um ano de vida com qualidade dos indivíduos.  

RCEI inferiores aos limiares de custo-efetividade representam tecnologias custo-efetivas, nas quais o custo incremental justifica os ganhos clínicos que elas proporcionam e, por isso, fazem sentido que sejam incorporadas. Resultados de RCEI acima do limiar são considerados não custo-efetivos e, assim, recebem a recomendação de não incorporação. 

No Brasil, a Conitec propôs o limiar de um PIB per capita para doenças em geral e de 3 vezes o PIB per capita para: doenças que acometem crianças e implicam em reduções importantes de sobrevida ajustada pela qualidade; doenças graves com reduções importantes de sobrevida ajustada pela qualidade; doenças raras com reduções importantes de sobrevida ajustada pela qualidade; e doenças endêmicas em populações de baixa renda com poucas alternativas terapêuticas disponíveis.  

A definição do limiar ideal não é uma tarefa fácil e exige uma discussão aprofundada. Inclusive, esse conteúdo foi disponibilizado na consulta pública Conitec/SCTIE nº 41/2022, devido à relevância do tema. É importante que esse parâmetro garanta a saúde financeira do SUS, mas também viabilize que as incorporações aconteçam. Um limiar muito alto pode causar um colapso financeiro na saúde, mas, em contrapartida, um limiar baixo pode automaticamente deixar de fora muitas tecnologias que chegam com a promessa de diminuir o impacto social e as necessidades médicas não atendidas. 

O documento colocado em consulta pública pela Conitec não criou limiares específicos para incorporação de terapias avançadas e tecnologias para doenças ultrarraras, deixando aberta a possibilidade de uma avaliação caso a caso.  

Ainda há, então, uma longa estrada para ser percorrida, que permita a criação de políticas públicas que envolvam a elaboração de novas metodologias para avaliação da incorporação de tecnologias avançadas. Uma rota possível é a utilização de modelos alternativos, como aqueles que consideram o compartilhamento de risco, ou de novas métricas para mensuração do valor das novas tecnologias, como nas análises de decisão multicritério.    

No processo decisório, a análise de impacto orçamentário é importante e complementar à análise de custo-efetividade, pois leva em consideração o número de pacientes elegíveis ao uso de determinada tecnologia, determinando assim se o orçamento comporta a incorporação. 

A criação de propostas metodológicas com definições de limiares de custo-efetividade, em conjunto com políticas públicas, irá nortear as discussões para tomadas de decisão sobre a incorporação de tecnologias em saúde no SUS e, consequentemente, definir tecnologias que serão oferecidas para a população de forma gratuita.  

O debate amplo sobre o tema é de suma importância para se encontrar soluções que garantam o acesso adequado aos tratamentos pelos pacientes sem prejudicar a sustentabilidade do sistema. Assim, a ATS se aproximará mais do contrapeso da pluma da justiça. Até mesmo as balanças mais precisas precisam ser calibradas e, isoladamente, podem trazer resultados que não refletem, necessariamente, o resultado mais justo.


Este artigo foi produzido por Camila Pepe, Pricing, Market Access and RWE Director na ORIGIN Health e editora da MIT Technology Review Brasil.

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