Nokia, Blockbuster, Olivetti, Kodak, Barsa e outros gigantes não fizeram absolutamente nada errado em seus mercados e, mesmo assim, perderam a liderança, a relevância e até mesmo a existência em suas indústrias.
O foco deste artigo está na investigação do real motivo pelo qual isto aconteceu. E, diferente do que habitualmente é discutido, ou seja, o foco em uma inovação, a verdade é que o que sepultou estas empresas foi a perda de dois degraus de disrupção em uma mesma indústria.
E, em um olhar de futuro, tentar estabelecer para alguns segmentos, qual pode ser o primeiro degrau de disrupção acontecendo neste exato momento.
A inovação disruptiva
O falecido professor de administração de Harvard Clayton M. Christensen, em seu livro mais conhecido, “O Dilema da Inovação”, de 1997, criou a teoria da Inovação Disruptiva, que, de acordo com ele, descreve uma inovação tecnológica, de produto, ou de serviço, com características “disruptivas”, ou seja, que provocam uma ruptura com os padrões, modelos ou tecnologias já estabelecidas no mercado.
O termo se popularizou no Vale do Silício e foi apropriado pelas estratégias de marketing e inovação. Em inovação uma matriz foi estabelecida para permitir identificar as inovações disruptivas.
Essa matriz, em geral, cruza em seu eixo horizontal: “Tecnologias e/ou Competências Organizacionais”. E, em seu eixo vertical: “Modelos de Negócios”.
O primeiro quadrante que contempla as mesmas tecnologias, competências e modelos de negócios pode ser descrito como “melhoria”, ou “inovação incremental”. Todos os demais são inovações disruptivas, mas recebem nomes diferentes.
No livro “Inovação | Digitalização | Transformação Digital”, adotei a mesma nomenclatura utilizada por grandes consultorias, como o braço Strategy& da PwC:
Inovação Disruptiva Radical: mudanças de Tecnologias/Competências no mesmo Modelo de Negócios.
Inovação Disruptiva de Ruptura: mudanças de Modelos de Negócios com a mesma Tecnologia/Competências.
Inovação Disruptiva Arquitetural: mudanças de Modelos de Negócios com mudanças de Tecnologia/Competências.
A teoria do professor Christensen visava tornar previsível uma disrupção e, a partir dela, determinar, quase como uma escolha, manter-se com uma empresa saudável ou não.
Inovações Disruptivas são previsíveis?
Cada linha da obra de Clayton Christensen passou pelo escrutínio de Jill Lepore, escritora do The New Yorker, professora de história de Harvard e anfitriã do podcast “Elon Musk: The Evening Rocket”.
A suma essência do trabalho de Jill Lepore diz que o trabalho de investigação que embasou o livro e a teoria de Clayton Christensen basicamente encontrou um viés de confirmação, tornando-a “fraca” à luz do que efetivamente se passou em determinadas indústrias como a de disquetes ou a de escavação com o advento das ferramentas hidráulicas.
Jill castiga os defensores da teoria de Christensen ao lembrar que em março de 2000, ele próprio lançou um fundo de quase U$ 4 milhões, com o nome de: “Disruptive Growth Fund”. O fundo acabaria sendo liquidado quase um ano depois por falhar na sua missão de prever a disrupção. E, lembra também que, anos mais tarde, em 2007, Christensen, em entrevista à Business Week, disse: “a teoria permite prever que a Apple não irá ter sucesso com o iPhone”, ao que adicionou: “a história fala alto e claro sobre isso.”.
Olhar para trás para prever o futuro, contudo, não deve ser uma disciplina completamente abandonada, nos ensinou o filósofo chinês Confúcio. Afinal, é relativamente fácil prever como será o próximo iPhone. Basta olhar como se deram as evoluções nas duas últimas gerações de celulares. Porém trata-se de uma inovação incremental e não de uma inovação disruptiva.
Prever a próxima inovação disruptiva que a Apple ou qualquer outro player em qualquer outra indústria pode fazer é um trabalho que demanda um olhar para o futuro e, este tornou-se uma nova disciplina a ser estudada.
No mundo, é possível que Amy Webb seja a futurista mais conhecida e com trabalho mais relevante. Seu trabalho é publicado pelo Future Today Institute. O seu último relatório, lançado em 2022 em Austin, durante o evento SXSW, contém 658 páginas, divididas em 13 capítulos, cada um tentando predizer disrupções que podem acontecer em um futuro próximo. São previsões sobre Inteligência Artificial, Privacidade, Cultura e Ambientes de Trabalho, Saúde e Medicina e até Clima, Energia e a Indústria Aero-Espacial.
O que são dois degraus de disrupção?
A cola que pode unir o trabalho de Christensen, o ceticismo de Jill Lepore e a nova disciplina de Amy Webb, pode ser a teoria dos “Dois Degraus de Disrupção”.
Christensen pode ter falhado ao prever que a Apple teria sucesso com o iPhone simplesmente porque não viu que aquele aparelho era apenas o primeiro degrau de disrupção e, talvez, se a Apple tivesse se mantido tempo demais no primeiro degrau, Christensen poderia ter cravado sua previsão.
O primeiro iPhone, lançado em 2007, foi definido por Steve Jobs como: “um iPod de tela grande com controles de toque, um telefone celular revolucionário e um sistema de comunicação de Internet disruptivo”. Mas, nada disso garantiria o sucesso do iPhone se não fosse a chegada da AppStore em julho de 2008.
Com o slogan “Existe um aplicativo para isso…”, a Apple, com um mesmo aparelho, podia criar virtualmente um celular diferente para cada pessoa. Era o seu ecossistema e marketplace de aplicativos que faria com que a Apple desbancasse toda a concorrência de um mercado ora dominado por Nokia, Motorola e RIM.
O primeiro degrau de disrupção foi a criação de um device voltado para a Internet, e o segundo, um marketplace na Internet para customização em massa do seu device.
Como os dois degraus de disrupção se aplicam a outras indústrias ou players?
Christensen limitou-se a investigar apenas a disrupção derradeira que afetou uma indústria ou player e, ao fazê-lo acabou recebendo duras críticas ao seu trabalho. O que aconteceria, no entanto, se analisássemos casos emblemáticos de outras indústrias à luz de dois degraus de disrupção?
Kodak
A primeira câmera digital nasceu dentro da Kodak, em 1975. Sua patente tem o número 4.131.919. Precisava de 16 baterias e tinha o tamanho de uma impressora. Talvez pelo seu tamanho, talvez pela nova tecnologia envolvida, determinou-se que era um produto de nicho, apenas para profissionais. Algo que não foi seguido por Sony, Canon e Nikon.
Algum tempo depois, quando a Kodak se lançou em definitivo neste mercado, foi apanhada pelo lançamento do iPhone, cuja câmera, iniciaria um processo de obsolescência deste mercado como um todo.
Atualmente, o mercado de câmeras digitais mundial é de cerca U$ 286 milhões. Em 2004, 2005 e 2006, anos predecessores ao lançamento do iPhone, no segmento de fotografia para o consumidor final, a Kodak faturava próximo de: U$ 3,0 bilhões. No relatório aos acionistas de 2006, falava sobre o relativo sucesso das novas câmeras descartáveis com filmes e sobre a dificuldade de se prever a velocidade da adoção de tecnologias digitais.
Barsa
A primeira edição da Enciclopédia Barsa foi lançada em 1964 e se esgotou em oito meses. Até então, só era possível encontrar no mercado enciclopédias em inglês, francês e espanhol, todas elas com poucos assuntos brasileiros.
A Barsa nasceu como a legitimação da tradução do conhecimento do mundo, disponível na Enciclopédia Britannica, para o Brasil e, chegou a custar o mesmo que um veículo popular.
Em 1993, no entanto, chegou o primeiro degrau de disrupção. A Microsoft, alguém completamente de fora de seu mercado, comprou direitos não exclusivos sobre a enciclopédia Funk & Wagnalls e lançou a Encarta. Ela acabaria se tornando a primeira enciclopédia digital popular. Em geral acompanhava computadores novos e também os “kits de multimídia” e “CD-ROM” da Soundblaster, marca mais popular para implantação de drives de CD’s em computadores no início dos anos 90.
Esta primeira revolução deu enorme produtividade às buscas pelos verbetes dentro da enciclopédia. Se antes você precisava primeiro determinar em qual volume da Barsa você precisava encontrar um verbete, agora, bastava digitar o verbete e navegar diretamente para o conteúdo. O fato de a busca ser feita diretamente em um computador dotava seus usuários de outras ferramentas como a captura de telas e até o famigerado CTRL+C, CTRL+V.
A Barsa continuava, no entanto, orgulhosa de seu posicionamento de neutralidade e de curadoria inigualável de conteúdo e, embora tenha se aventurado no digital anos mais tarde, foi definitivamente destituída quando, em 2001, nasceu a Wikipedia.
O conteúdo rápido e acessível como o da Encarta, agora não dependia mais de um CD para ser atualizado. Era nativamente editado, on-line, traduzido para diversos idiomas e operava em um modelo descentralizado de negócios, dando aos seus usuários a capacidade de não só consumir conteúdo, como também de produzi-lo.
A Wikipedia, em seu modelo de negócios, é em essência, inclusive, precursora do que se convencionou chamar de Web3, justamente pela descentralização do poder, envolvida na sua concepção.
BlockBuster
A praticamente extinta vídeolocadora BlockBuster chegou ao seu auge em 2004, com mais de 9.000 lojas espalhadas pelo mundo e mais de 84.000 funcionários e, é claro que não se trata de um spoiler que sua derrocada tenha ligação íntima com a popularização da Netflix.
No início dos anos 2000 e, ainda com toda saúde financeira, o grupo BlockBuster tentou uma parceria com o grupo Enron para criar um serviço de vídeos sob demanda. Mas, a parceria acabou naufragando pelo próprio desempenho do grupo que decretou falência em 2001. Contudo, antes da Enron chegar a este fim, a própria BlockBuster teve a oportunidade de comprar a Netflix por U$ 50 milhões, mas seu CEO à época considerou o valor uma piada de mau gosto.
Estávamos neste momento diante do primeiro degrau de disrupção. A dos vídeos sob demanda, ainda que fossem em sua grande parte, por delivery. A rivalidade entre as duas empresas ficou acirrada neste período, mas em 2007, a Netflix criaria o segundo degrau de disrupção com o streaming, enquanto a BlockBuster tentava comprar uma rival de locadoras, a Hollywood Video.
Em 2010 a BlockBuster pediria concordata nos Estados Unidos.
Prevendo os dois degraus de disrupção
Uma empresa e linha de negócios deve ser incansável na busca pela melhoria contínua. Mas, isso só garantirá a inovação incremental. O olhar para o passado, igualmente não ajudará na previsão das disrupções. Então como saber se um segmento ou indústria está passando por isso, neste exato momento?
Pode-se emprestar a frase utilizada por Amy Webb para falar sobre futuro:
“Agora, mais do que nunca, sua organização deve examinar o potencial impacto de curto e longo prazo das tendências tecnológicas. O novo normal está se desdobrando para aqueles que sabem re-perceber sinais no presente.”.
O mais recente conteúdo publicado pela futurista destaca 13 áreas que irão afetar o futuro e, pode-se arriscar dizer, estão sinalizando o primeiro degrau de disrupção para todos os negócios e áreas. E, embora cada um mereça atenção especial, vale destacar a Inteligência Artificial e suas multiplicas possibilidades de aplicação; a mídia sintética e tudo que orbita as múltiplas realidades, ou seja, a virtual, a aumentada e o metaverso; a Internet das Coisas, ambientada na “Casa das Coisas” pois a casa voltou a ser o centro de tudo, a curva exponencial de capacidade computacional e velocidade de comunicação além do processo de descentralização potencializado pela Web3.
Some-se às tendências tecnológicas modelos de negócios novos advindos de OpenFinance, Servitização, Marketplaces globais, ESG e multiculturalismo, entre outros fatores e, os dois degraus podem estar batendo à porta de qualquer indústria ou negócio.
Prever é, portanto, um exercício de prática, associado a criar um ambiente de teste para a inovação. Testes devem acontecer sempre dentro de um apetite de tempo e de recursos e, não devem ter o compromisso de resultados financeiros em um primeiro momento, mas, igualmente devem ser dirigidos a resolver problemas reais, de pessoas reais.
Este artigo foi produzido por Charles Schweitzer, Head de Inovação no Banco Carrefour, Palestrante/Professor de Inovação e Tendências da Inova Business School e colaborador da MIT Technology Review Brasil.