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“Até minha mãe ser diagnosticada com Huntington, ela nunca mencionou que seu pai e três irmãos haviam morrido com esta doença. Talvez essa história familiar ausente tenha sido o motivo pelo qual me tornei historiadora. Eu queria entender a vergonha da minha mãe e as origens de seu silêncio devastador.” O relato foi publicado por Alice Wexler, do Centro de Estudos sobre Mulheres da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), sobre a doença neurodegenerativa e hereditária que afeta sua família.
Apesar de os avanços tecnológicos e genéticos terem proporcionado diagnósticos mais precisos e tratamentos inovadores para condições médicas como essa, a ciência ainda não conseguiu superar um dos desafios mais complexos: o preconceito e o estigma associados a essas condições.
A trajetória de uma doença neurodegenerativa hereditária
A doença de Huntington (DH) é uma patologia neurodegenerativa, rara e progressiva. Suas manifestações clínicas ocorrem de forma relativamente tardia, em média entre os 30 e 50 anos de idade. Porém, o tripé de sintomas – motores, cognitivos e comportamentais – não ocorre conjuntamente. Características cognitivas e emocionais podem ser detectadas até 15 anos antes do aparecimento de sintomas motores. Essa peculiaridade influencia o atraso do correto diagnóstico, segundo o neurologista Gustavo Franklin, professor da faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da PUC-PR.
“A doença de Huntington se manifesta inicialmente com sintomas discretos em relação ao movimento. São fenômenos que parecem tiques, chamados distúrbios do movimento. Em geral, são inicialmente muito leves, discretos, quase imperceptíveis. Com o passar do tempo, costumam ficar mais exuberantes. Entretanto, sintomas do movimento tendem a iniciar após os sintomas comportamentais, como ansiedade, irritabilidade e alguns sintomas cognitivos, como desatenção e dificuldades para executar tarefas. Só que as pessoas quase nunca serão diagnosticadas nessa fase. Geralmente, são diagnosticadas quando apresentam movimento anormal”, observa o médico.
Em entrevista concedida à MIT Technology Review Brasil, Michael Hayden, pesquisador e médico especializado em genética médica, destacou sua trajetória no estudo da DH.
“Meu comprometimento começou há 40 anos, ao observar pacientes com DH na África do Sul. Fui movido pela coragem e resiliência dos pacientes e pela incrível lacuna no conhecimento sobre a doença. Não havia nenhum livro escrito sobre DH. Escrevi a primeira monografia como autor único, publicada pela Harvard Medical School, em 1981. Durante toda a minha vida profissional, fui motivado por descobertas que pudessem moderar a progressão da doença.”
Reconhecido mundialmente por seu trabalho pioneiro, Hayden dedicou grande parte da carreira à compreensão das bases genéticas da doença e ao desenvolvimento de tratamentos inovadores.
“É uma doença terrível que atinge pessoas em seus 40 anos, com comprometimento funcional, cognitivo, mudanças de personalidade, coreia [principal distúrbio motor] e uma progressão implacável até a morte, geralmente de 15 a 20 anos após o início dos sintomas. Ela surge em uma fase da vida em que você tem filhos pequenos, e esses filhos veem o pai ou a mãe nessa condição. Existe uma chance de 50% de que, no futuro, eles vivenciem o mesmo. Essas famílias recebem pouca atenção e, para cada pessoa afetada, há cerca de três que carregam o gene e serão afetadas no futuro”, descreve Hayden.
A prevalência da DH é variável de acordo com o local. A literatura considera que a doença afeta, em média, 4,88 pessoas a cada grupo de 100 mil. Porém, no Brasil, existem três regiões conhecidas como clusters da doença, onde a prevalência é maior do que a média global. Uma delas é a região que orbita a cidade de Feira Grande, no estado de Alagoas, em que a maior parte dos pacientes são do mesmo núcleo familiar, do qual faz parte a psicóloga Tatiana Henrique, coordenadora de projetos da Associação Brasil Huntington (ABH). Entre os familiares próximos, a avó e dois tios receberam o diagnóstico da doença, sem contar outros com suspeita, mas que faleceram antes da confirmação.
Apesar da convivência em um local onde a doença é mais prevalente, Tatiana observa que o desconhecimento ainda é muito grande. “O que a gente percebe é que muitas vezes a família sabe que é uma doença genética, mas desconhece como é a transmissão genética, como a doença avança e como se perpetua.”
Impacto dos estigmas
Na Grécia Antiga, a palavra estigma era utilizada para designar marcas ou queimaduras em indivíduos que deveriam ser evitados. Com o tempo, o termo adquiriu um sentido figurado, referindo-se a características que marcam uma pessoa de forma negativa ou que a desvalorize socialmente. Segundo publicações atuais, estigma envolve rotulação, estereotipagem, separação e perda de status, desvalorizando a identidade social da pessoa em determinado contexto, variando de incômodos diários a discriminações graves, como a negação de emprego. O estigma pode se integrar à identidade do indivíduo, tornando-se um desafio constante. Esse cenário é identificado no contexto da DH, quando o histórico familiar e os testes genéticos são fontes comuns de estigma e discriminação.
O isolamento social de pacientes e familiares com DH é retratado na realidade de Tatiana. “Uma situação com a qual lidamos constantemente é essa espiral de solidão e de vergonha, porque a família vai se isolando cada vez mais. Isso é tão forte que impacta também no tratamento, porque gera uma evitação de contato com a doença, de busca por informação, ou, quando já se sabe, o medo da confirmação. Tudo isso somado ao fato de que muitos profissionais da saúde não compreendem a natureza dessa doença genética, o que gera erros, atrasos no diagnóstico. Uma cascata de consequências é trazida pelo estigma e pelo desconhecimento da doença”, afirma a psicóloga.
Apesar de não haver cura para a DH, um dos sintomas motores característicos, a coreia – definida como movimentos anormais, abruptos, irregulares e imprevisíveis – pode ser tratada farmacologicamente e com suporte de fisioterapia. Como principal característica neurológica da DH, a coreia está presente em 90% dos pacientes com início adulto da doença. Ela impacta negativamente a qualidade de vida relacionada à saúde, aumenta o risco de lesões, interfere nas atividades diárias e dificulta a realização de tarefas motoras. O estigma associado a distúrbios neurológicos é alto, especialmente em sintomas motores visíveis e a coreia contribui para sentimentos de constrangimento e isolamento social.
Um inquérito conduzido por Thorley e colaboradores e publicado em 2018 mostrou que 82% dos pacientes com DH e 94% dos cuidadores consideraram importante controlar ou gerenciar a coreia. As principais razões incluíram perda de independência, previsibilidade/incontrolabilidade, medo de piora da coreia, medo de quedas, dores/danos físicos e impacto na vida familiar. Questionados sobre os aspectos que mais os incomodavam em relação à coreia, relataram ansiedade, dificuldade para caminhar, movimentos bruscos/espasmos, dificuldade para dormir e quedas, entre outros. Ainda no estudo, escores de estigma significativamente mais altos foram observados naqueles com coreia acentuada quando comparados à coreia leve, com uma associação linear positiva entre os escores, sugerindo que a maior percepção de estigma social se associa a um impacto crescente da coreia na qualidade de vida.
Gustavo Franklin explica que, como a doença é neurodegenerativa e progressiva, ao longo do tempo se espera um impacto cada vez maior na família e no paciente, mas os sintomas podem ser tratados e amenizados. “As limitações são progressivas, mas muitos sintomas têm tratamento. O movimento anormal tem tratamento, os sintomas psiquiátricos têm tratamento, e esse manejo ajuda na qualidade de vida”, afirma.
Tatiana relata que é bastante comum que as pessoas, por falta de informação, associem erroneamente tais sintomas neurológicos e comportamentais a vícios, como se fossem resultado do efeito de álcool e outras drogas, marginalizando o paciente com DH. “O preconceito reforça ainda mais o isolamento do paciente e da família por medo do julgamento de outras pessoas.”
Testes preditivos e discriminação genética
A descoberta de um marcador de DNA polimórfico estreitamente ligado à DH em 1986 levou ao desenvolvimento do primeiro teste preditivo que permitiu que indivíduos em risco soubessem se herdaram ou não a mutação. As primeiras pesquisas indicavam que os testes seriam solicitados por 66% a 79% dos indivíduos sob risco de DH. Hoje, a demanda gira em torno de 3% a 24% em todo o mundo. Entre as razões para este cenário, estão a ausência de cura, preocupações com a capacidade de enfrentamento e o medo de discriminação genética.
Discriminação genética se refere ao tratamento diferencial percebido por indivíduos ou seus familiares com base em diferenças genéticas presumidas ou reais, em vez de características físicas, e pode se basear apenas na interpretação de informações. Suas consequências têm o potencial de gerar impactos significativos nos âmbitos social, de saúde e econômico, ao limitar oportunidades para indivíduos em risco genético.
Experiências de discriminação genética são relatadas por pacientes com DH de diversas formas, incluindo maior monitoramento de sintomas, mudanças na comunicação, percepção de falta de proximidade ou apoio, além de pressões relacionadas a decisões reprodutivas, educacionais e de casamento. A perda de benefícios financeiros também ocorre, como rejeição de assistência em seguros, limitações impostas no ambiente de trabalho, negação de promoções e aposentadorias forçadas.
Para lidar com o medo da estigmatização, diferentes estratégias são adotadas, como evitar situações sociais, manter em segredo sua condição genética e buscar educar pessoas sobre sua doença. Porém, o medo culmina em consequências como a não realização de testes genéticos preditivos, escolha por testes anônimos e não participação em pesquisas científicas.
Por conta do histórico familiar, a psicóloga Tatiana Henrique decidiu fazer o teste preditivo, que teve resultado negativo, mas alerta que o exame não é indicado indiscriminadamente.
“O teste preditivo não é indicado precocemente, por todas as variáveis emocionais que pode causar. É possível fazer o teste como eu fiz, mas a gente recomenda que exista todo um preparo e suporte psicológico”, diz a coordenadora de projetos da ABH.
A associação defende o apoio psicológico como pilar essencial na jornada do paciente e do seu círculo familiar, sendo tão importante quanto as intervenções medicamentosas.
“É um processo muito desestruturador para todos. Estamos falando de cuidados psicológicos para o paciente que enfrenta seus temores, para o cuidador, que na maior parte dos casos é um familiar e quase sempre uma mulher, e para os filhos, que são pessoas que se compreendem na posição de risco de herdar a doença”, comenta Tatiana.
Avanços da ciência e tecnologias
De olho no avanço de pesquisa e desenvolvimento, ao longo de sua carreira, Hayden liderou laboratórios de pesquisa e identificou diversos genes causadores de doenças, incluindo aqueles relacionados à DH. Sua liderança também se destacou no setor industrial, quando atuou como presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Global da Teva Pharmaceuticals, onde desempenhou um importante papel na aprovação do medicamento atualmente utilizado para tratar a coreia associada à DH. Sua pesquisa tem sido orientada por uma busca constante para melhorar a medicina personalizada e desenvolver terapias eficazes para doenças hereditárias.
Entre suas principais abordagens estão: silenciamento do gene mutante da DH para desligar a cópia mutante do gene HTT, causador da DH, preservando a cópia normal, essencial para a saúde neuronal; modulação de modificações pós-traducionais, que investiga como alterações químicas na proteína HTT mutante afetam sua função e degradação e identificar alvos terapêuticos que, em combinação com o silenciamento do gene, possam melhorar os sintomas e a progressão da DH; descoberta de novos alvos terapêuticos neuroprotetores, buscando terapias que melhorem a saúde mitocondrial e estabilizem as sinapses; e genética populacional e epidemiologia da DH com o estudo dos haplótipos associados à mutação da DH em diferentes populações.
“Vejo um futuro com abordagens terapêuticas múltiplas. Há muito interesse de empresas farmacêuticas e biotecnológicas. Acredito que, em cinco a 10 anos, teremos opções de medicamentos para desacelerar a progressão e, talvez, até terapias combinadas. Se pudermos intervir cedo, podemos preservar os neurônios e atrasar significativamente o início dos sintomas. É um caminho promissor”, conclui Hayden.
Estigma e discriminação são fenômenos endêmicos e não respeitam fronteiras, culturas ou gêneros. Apesar de quase 30 anos terem se passado desde a publicação de Wexler, a genética ter se tornado parte da prática clínica e muitos países contarem com regulamentos de não discriminação genética, participantes de estudos recentes ainda expressaram experiências e medos semelhantes. Tratamentos efetivos e suporte emocional devem ser instituídos para a melhora do quadro clínico e para alívio do impacto do estigma em pacientes com DH.