Dificuldade em diagnóstico amplia iniquidades
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Dificuldade em diagnóstico amplia iniquidades

Barreiras socioeconômicas e tecnologias indisponíveis no SUS impactam vida de pacientes com doenças raras

Na jornada de pacientes com doenças raras, identificar a enfermidade pode ser considerada a etapa mais árdua. É comum que eles consultem médicos de diferentes especialidades e, mesmo assim, em cerca de 40% dos casos, não é possível fechar um diagnóstico preciso, apontam dados da Fundação Oswaldo Cruz. 

De acordo com um estudo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) — intitulado “Doenças Raras: a urgência do acesso à saúde” —, o principal entrave para um diagnóstico precoce é a falta de informação. A dificuldade é ainda maior nos casos em que exames específicos ainda não estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). 

A incorporação de tecnologias na saúde pública do Brasil, o que inclui não apenas medicamentos, mas também exames diagnósticos, é recomendada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), criada em 2011. A inclusão de exames e tratamentos no serviço público ocorre após uma série de etapas de análise, promovidas pela comissão. 

Segundo o Ministério da Saúde, todas as demandas avaliadas pela comissão são disponibilizadas em consulta pública “para que a sociedade possa enviar contribuições de experiência e opinião a respeito da tecnologia avaliada”. Além disso, grupos científicos podem enviar contribuições sobre o tema. Ao longo do processo, as sugestões são consideradas e analisadas para a deliberação da recomendação final da equipe técnica, formada por 15 representantes com direito a voto — tais como representantes do Ministério, do Conselho Federal de Medicina e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. 

No entanto, ainda que uma tecnologia não tenha sido disponibilizada no SUS — portanto, à toda a população brasileira — não quer dizer que certos grupos já não possam acessá-la posto que essa mesma tecnologia pode já ter sido incluída no rol de coberturas obrigatórias dos planos de saúde pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), de modo que para grupos socioeconomicamente vulneráveis o acesso é dificultado, restando a opção de arcar com o custo. Uma alternativa seria o paciente ser incluído em um contexto de pesquisa, de toda a forma, bem menos acessível. 

É o caso de pessoas que vivem com o distúrbio do espectro da neuromielite óptica (DNMO), doença autoimune rara, causada por surtos graves e recorrentes no sistema nervoso central (SNC). A DNMO é marcada por sintomas como visão embaçada, dor nos olhos, fraqueza nas pernas e alterações na capacidade de urinar. Sem o tratamento adequado, a doença causa surtos que podem gerar incapacidades permanentes. 

Segundo o neurologista Felipe von Glen, a DNMO é causada por uma inflamação que gera autoimunidade contra uma proteína que existe no encéfalo, a aquaporina-4. Ou seja, o paciente passa a produzir anticorpos contra a proteína, de forma que a pesquisa por esses anticorpos, chamados de NMO-IgG, é extremamente relevante para o diagnóstico de DNMO. “Há um exame de sangue que faz isso, que pesquisa o anticorpo anti-aquaporina-4 e oferece o diagnóstico da doença”, explica o médico. Com o exame, pacientes conseguem identificar a doença e diferenciá-la de outras condições, como a esclerose múltipla (que tem sintomas similares). 

A tecnologia, por enquanto, está disponível apenas na saúde suplementar, quer dizer, para cerca de 26,17% da população brasileira que têm acesso a planos privados de saúde. Só que a doença atinge majoritariamente um grupo que praticamente não é contemplado pela saúde suplementar: mulheres e pessoas negras, que ocupam os piores indicadores socioeconômicos no Brasil. “O paciente, se não tem recursos e é usuário do SUS, demora mais pra fazer o diagnóstico, isso implica em surtos que podem deixar sequelas, como a falta de mobilidade, falta de força nas pernas, dificuldade de controlar a bexiga e até mesmo a cegueira”, alerta von Glen. 

Incorporação da tecnologia 

De acordo com o neurologista, a investigação do anticorpo é o maior gargalo para pacientes com DNMO. “Para pacientes que têm convênios, existe o exame incorporado no rol de procedimentos da ANS, com obrigatoriedade de as operadoras de saúde pagarem por esse teste. Se você tiver acesso ao exame, facilita e acelera o diagnóstico. Isso faz com que o paciente tenha um tratamento mais rápido e diminui os riscos de uma incapacidade permanente”, explica o neurologista. 

Para ter a aprovação da Conitec, a tecnologia precisa passar por um processo rigoroso que, de acordo com a comissão, leva em conta a “segurança, eficácia, custo-efetividade, necessidade, impacto orçamentário, além do aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que autoriza a circulação do produto no país”. 

De acordo com a comissão, ainda “não há protocolado na Conitec pedido para análise de incorporação, no âmbito do SUS, do teste antiaquaporina 4, para qualquer indicação, seja por parte da empresa fabricante ou qualquer outro demandante”. No entanto, de acordo com von Glen, já existe uma mobilização para solicitar a análise da incorporação do teste no SUS. Ele relata que o Ministério Público do Rio Grande do Norte determinou que a Academia Brasileira de Neurologistas iniciasse a documentação para protocolar o pedido. 

“A mobilização conta com a contribuição da sociedade civil, de associações como a organização Amigos Múltiplos. Todos estão auxiliando no processo de preparo de um dossiê. Está em fase final de preparo. A gente espera que a Conitec se sensibilize, uma vez que a ANS já autorizou e incorporou”, pontua. Segundo o neurologista, a incorporação do protocolo no SUS não deve gerar um impacto orçamentário tão grande, já que o exame é considerado barato, com valores entre R$ 200 e R$ 400. “Não é tão caro e pode beneficiar imensamente os pacientes”. 

Outros desafios 

Além da barreira socioeconômica, a detecção da DNMO é marcada também pela dificuldade de encaminhamento para os especialistas adequados. Como a doença causa uma série de sintomas diferentes, o paciente acaba passando por diversos profissionais, o que retarda ainda mais o diagnóstico correto. É o que explica Gustavo San Martin, da associação Crônicos do Dia a Dia (CDD). A instituição promove ações de comunicação e educação para ajudar pessoas que vivem com doenças crônicas.  

“Estamos falando de doenças com características muito específicas, sintomas muito peculiares. No caso da DNMO, as pessoas vão desde o ortopedista até o neurologista para fechar o diagnóstico. Há ainda uma dificuldade maior no serviço público, porque nem sempre os centros têm disponíveis todas as especialidades que conseguem fazer o encaminhamento no tempo certo”, observa Gustavo. Um artigo publicado em 2019 pela American Academy of Neurology, traz o dado de que 41% dos pacientes com DNMO relatam um erro inicial de diagnóstico, que aponta para esclerose múltipla.  

Gustavo ressalta ainda que além de o SUS não ofertar o diagnóstico para DNMO, não há tampouco tratamento específico para a doença, então muitos médicos acabam aplicando o diagnóstico de esclerose múltipla, já que alguns sintomas são semelhantes, para que o paciente não fique totalmente desassistido. “É uma forma de fazer com que a pessoa acesse esse único tratamento disponível no SUS, então o médico acaba fazendo um ajuste na Classificação Internacional de Doenças (CID)”, explica. 

O processo, no entanto, pode gerar uma confusão nos dados do sistema público de saúde: “Quantos por cento das pessoas que hoje estão se aposentando por invalidez com o CID de esclerose não teriam, na verdade DNMO? Estamos falando de trabalho, do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), daqui a pouco prejudicaremos a forma como tratamos a esclerose. É um efeito cascata de não assumir a necessidade de tratar a neuromielite óptica”, afirma Gustavo. 

Custos associados à DNMO são aproximadamente dez vezes maiores durante os períodos ativos do distúrbio, do que durante períodos inativos. Além disso, a maior parte dos gastos desses pacientes é com hospitalização: 81,5% deles relataram surtos que demandaram tratamento hospitalar, segundo dados do artigo “Distúrbio do Espectro da Neuromielite Óptica: experiência dos pacientes e qualidade de vida” (2019). 

“Na maioria dos casos os pacientes são jovens, pessoas pretas que, notoriamente, têm menos acesso à educação, à saúde, e menos recursos para investigar sua condição de saúde. O fator econômico é muito relevante. Estamos falando de um paciente que não consegue ter um ativismo para ajudar no próprio diagnóstico”, avalia San Martin. Ele analisa ainda que é necessário entender que a DNMO já possui exames diagnósticos, mas que o processo precisa ser organizado dentro do sistema público de saúde, já que a falta desse recurso contribui para ampliar os problemas de equidade. 

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