A Inteligência Artificial (IA) tem evoluído rapidamente, redefinindo a interação entre humanos e tecnologia. A crescente adoção de agentes autônomos, capazes de tomar decisões e executar tarefas sem intervenção humana direta, levanta questões fundamentais sobre ética, segurança, privacidade e governança. Diante desse cenário, é essencial analisar não apenas os benefícios desses sistemas, mas também os desafios que eles impõem à sociedade e à regulação tecnológica.
A ascensão dos agentes autônomos de IA
Os agentes autônomos de IA estão transformando diversas indústrias e impulsionando ganhos de eficiência. Modelos como Arbitrus.ai, uma plataforma de arbitragem autônoma, demonstram o potencial de sistemas baseados em IA para substituir processos tradicionais em setores como o judiciário e o empresarial. Esses agentes seguem regras e parâmetros programados por seus criadores, operando em domínios específicos de conhecimento. Sem embargo, embora executem tarefas complexas de forma independente, eles carecem da compreensão ampla e flexível do mundo – tal qual a de um ser humano -, limitando sua adaptação e capacidade de inovar diante de cenários inesperados. Daí vem o debate: quais os impactos dessa limitação na confiabilidade dos sistemas e no bem-estar social?
Nesse contexto, os Large Language Models (LLMs) – que são a base da IA moderna – ilustram essa limitação. Embora consigam identificar padrões e gerar respostas coerentes, não são capazes de verificar a veracidade das informações fornecidas e frequentemente exibem viés algorítmico ou até “alucinações” (respostas incorretas com aparência convincente).
O futuro, porém, é promissor. A Deloitte prevê que, em 2025, 25% das empresas que utilizam IA generativa lançarão pilotos ou provas de conceito para agentes autônomos de IA, crescendo para 50% até 2027. O mercado de agentic AI está se expandindo rapidamente, com investidores aportando mais de US$ 2 bilhões em startups do setor nos últimos dois anos. Enquanto isso, grandes empresas de tecnologia e provedores de nuvem também estão desenvolvendo suas próprias soluções, buscando aumentar a produtividade de trabalhadores do conhecimento e automatizar fluxos de trabalho complexos.
Contudo, a adoção desses agentes não se limita a grandes corporações. Setores críticos já utilizam IA para automação de tarefas repetitivas e execução de processos críticos, exigindo uma análise detalhada sobre os riscos envolvidos. Hospitais, por exemplo, estão começando a empregar IA para processar prontuários médicos, analisar exames complexos e até sugerir diagnósticos preliminares, reduzindo a carga sobre profissionais da saúde.
É essencial distinguir entre os agentes semiautônomos, que auxiliam a tomada de decisão humana sem substituí-la por completo, e os agentes totalmente autônomos, que operam sem supervisão e desafiam o controle humano sobre suas ações. Alguns vislumbram a evolução desses agentes rumo a uma Inteligência Artificial Geral (IAG) – sistemas capazes de replicar a flexibilidade cognitiva e executar virtualmente qualquer tarefa intelectual. No entanto, essa IA verdadeiramente generalista permanece no campo da hipótese: apesar dos avanços nos modelos atuais, ainda existem barreiras técnicas e conceituais que separam os agentes de hoje de uma autonomia comparável à humana.
Diante desse cenário, torna-se imprescindível analisar o avanço dessas tecnologias de forma multidisciplinar, considerando não apenas os desafios técnicos, mas também as implicações sociais e regulatórias de seu desenvolvimento. O impacto de agentes totalmente autônomos não se limita ao âmbito tecnológico, mas pode ressoar de maneira ampla na sociedade. James O’Donnell, em artigo publicado na MIT Technology Review Brasil, destaca a importância de um debate aprofundado sobre a ética no uso desses sistemas, alertando para os riscos que podem extrapolar as barreiras da engenharia e influenciar diretamente aspectos fundamentais da governança, segurança e direitos humanos. Assim, enquanto a busca por sistemas mais sofisticados continua, é essencial que seu desenvolvimento ocorra de maneira responsável, equilibrando inovação com mecanismos de controle e supervisão adequados.
Principais riscos da autonomia total
A eliminação progressiva da supervisão humana pode levar a problemas graves, incluindo erros persistentes, vulnerabilidades de segurança e impactos sociais adversos. Alguns dos principais desafios associados ao desenvolvimento de agentes totalmente autônomos são:
Imprecisão e inconsistência: os modelos de IA modernos, especialmente os LLMs Além disso, exemplos como a ferramenta Devin, lançada pela Cognition Software em 2024, mostram que mesmo os agentes mais avançados ainda apresentam limitações. Devin conseguiu resolver 14% das questões do GitHub de maneira autônoma, o dobro da taxa de acerto de chatbots baseados em LLMs, desempenho ainda bem insuficiente para substituir totalmente engenheiros de software humanos.
Privacidade e segurança: agentes autônomos precisam de grandes volumes de dados para operar de maneira eficaz, ampliando a superfície de ataque para invasões cibernéticas e aumentando o risco de vazamentos de informações sensíveis. Sem regulamentação apropriada, há um potencial significativo para abuso de dados e comprometimento da privacidade dos usuários. Por outro lado, uma regulação excessivamente restritiva, pode limitar a capacidade de inovação. Além disso, o uso de agentes autônomos na área militar levanta preocupações significativas. O relatório da IEEE aponta que sistemas de armas autônomas podem agir sem intervenção humana, representando um risco inaceitável para operações militares e segurança internacional.
Flexibilidade e ações imprevisíveis: a flexibilidade dos agentes de IA pode trazer tanto benefícios quanto riscos. Sistemas altamente flexíveis podem facilitar a automação e otimização de processos, mas também se tornam mais suscetíveis a ações não intencionais ou maliciosas, como a execução de código prejudicial e transações financeiras indevidas.
Propagação de desinformação: é inegável o risco de os agentes autônomos amplificarem informações falsas. Combinado com modelos imperfeitos, há um grande potencial para a disseminação de desinformação em larga escala, o que pode comprometer a confiança do público e impactar negativamente a sociedade. Uma consequência disso seria a ratificação da teoria da Internet Morta, uma realidade digital onde a autenticidade da interação humana na internet é profundamente questionada.
Impacto na equidade e viés algorítmico: os agentes de IA podem perpetuar preconceitos e desigualdades sociais caso seus modelos de treinamento apresentem vieses. Isso é especialmente problemático em sistemas de tomada de decisão autônoma em setores como saúde, justiça e mercado financeiro.
Confiança excessiva em sistemas autônomos: há também o risco de uma confiança indevida nos agentes autônomos, levando à aceitação acrítica de suas decisões. A dependência excessiva desses sistemas pode comprometer a supervisão humana e resultar em consequências imprevisíveis.
Modelos de semiautonomia como alternativa viável
A implementação de um modelo híbrido, que combina automação com supervisão humana, pode ser uma alternativa para tentar equilibrar inovação e controle. Soluções semiautônomas podem aumentar a eficiência sem comprometer a segurança e a responsabilidade. No paper Fully Autonomous AI Agents Should Not be Developed, Mitchell, Ghosh, Luccioni e Pistilli, argumentam que a supervisão humana contínua é essencial para mitigar riscos da IA avançada.
Esses modelos podem ser implementados de diversas formas, dependendo da complexidade da aplicação e do nível de risco envolvido. Algumas das abordagens mais comuns incluem: (i) a supervisão ativa, na qual operadores humanos monitoram as decisões automatizadas e podem intervir em tempo real quando necessário; (ii) uso de ajustes iterativos, em que o sistema aprende com correções humanas, ajustando sua tomada de decisão para melhorar a precisão ao longo do tempo; (iii) mecanismos de escalonamento, de forma que em casos de decisões de alto impacto, o agente pode encaminhar a questão a um supervisor humano antes de agir; e (iv) limitação de escopo, em que restrições são incorporadas para evitar que o agente tome decisões fora de sua área de competência ou que possam representar riscos críticos.
Os agentes semiautônomos operam dentro de um modelo de controle compartilhado, no qual a automação é combinada com a supervisão humana para garantir maior confiabilidade e segurança. Esse equilíbrio permite que as decisões sejam processadas de maneira ágil e eficiente, mas com a possibilidade de intervenção humana sempre que necessário. Ao manter a supervisão em pontos estratégicos do processo, reduz-se significativamente o risco de ações imprevisíveis ou de falhas sistêmicas que poderiam comprometer a integridade operacional. Além disso, esse modelo favorece a adaptação dinâmica às mudanças do ambiente, garantindo que os agentes consigam operar de forma eficiente mesmo diante de cenários incertos ou inesperados.
A presença contínua de supervisão humana também desempenha um papel fundamental na mitigação de riscos cibernéticos. Ao manter um nível de controle manual sobre as operações, os sistemas semiautônomos reduzem a superfície de ataque explorável por ameaças externas, dificultando invasões, manipulações e o vazamento de dados sensíveis. Da mesma forma, a possibilidade de intervenção humana evita que erros não intencionais resultem em impactos críticos, especialmente em infraestruturas essenciais, como redes de comunicação, sistemas financeiros e plataformas de serviços públicos. Outro benefício direto desse modelo é a melhoria na auditabilidade das decisões automatizadas, garantindo que falhas possam ser identificadas, analisadas e corrigidas antes de causarem danos significativos.
O avanço da IA deve ser acompanhado por regulamentações e padrões de segurança que garantam transparência e governança desses sistemas. Na União Europeia, por exemplo, há o AI Act, que propõe requisitos proporcionais ao nível de risco de cada aplicação de IA e prevê supervisão humana obrigatória nos contextos de alto risco. Em paralelo, surgem estratégias como as sandboxes regulatórias, que permitem a experimentação controlada de agentes autônomos inovadores em ambientes supervisionados. Essa abordagem busca coletar evidências e aprendizados para orientar futuras normas sem sufocar a inovação durante as fases iniciais de desenvolvimento.
Além das diretrizes e normas, são necessárias medidas técnicas concretas, como a implementação de frameworks de auditoria específicos para agentes autônomos, mecanismos de rastreabilidade e explicabilidade das decisões, bem como protocolos claros que permitam intervenção humana rápida e eficaz em cenários críticos. O monitoramento contínuo desses agentes é igualmente essencial para identificar e corrigir vieses ou inconsistências nos modelos de IA evitando que decisões automatizadas resultem em discriminação ou outras consequências indesejadas.
Próximos passos
O futuro da IA exige uma abordagem equilibrada entre inovação e responsabilidade. O desenvolvimento de agentes totalmente autônomos sem supervisão pode comprometer a segurança e a ética. A solução passa pela governança adequada, pelo monitoramento contínuo e pela implementação de mecanismos de supervisão humana. Somente assim será possível garantir que a IA continue sendo uma ferramenta para o progresso humano – e não um risco para a sociedade.