Dados indicam abismo no acesso à saúde por pessoas negras
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Dados indicam abismo no acesso à saúde por pessoas negras

Doenças mais prevalentes na população não branca são negligenciadas desde a captação de dados até o desenvolvimento de novas tecnologias para diagnóstico e tratamento.  No caso das doenças raras, a jornada é ainda mais complexa.

O estudo A Saúde da População Afrodescendente na América Latina, divulgado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), mostra que pessoas negras são alvo de desigualdades ligadas a emprego, pobreza, saúde, moradia e saneamento básico em mais de 80% dos 18 países analisados na região. Esses resultados alertam autoridades internacionais para a presença do racismo institucional na criação de políticas públicas para a melhoria dos indicadores.  

“Diferentes fatores relacionados à discriminação e estigmatização, juntamente com as desigualdades de gênero e desvantagens sociais e econômicas, são responsáveis pelos maus resultados em matéria de saúde das pessoas afrodescendentes”, destacou a então diretora da Opas, Carissa Ethiene, na ocasião do lançamento do estudo. 

Os dados da organização também apontam para a necessidade de se criar políticas para melhoria dos diagnósticos e tratamentos de doenças mais comuns em populações afrodescendentes, como a anemia falciforme, diabetes crônicas e a hipertensão. 

No Brasil, números divulgados pelo Ministério da Saúde em 2023 revelam condições de saúde cuja prevalência é maior na população negra. De acordo com o órgão, a anemia falciforme acomete de 2% a 6% dos brasileiros em geral e tem prevalência de 6% a 10% na população negra. 

Além disso, de acordo com a pasta, a diabete mellitus (tipo 2) atinge com mais frequência os homens negros — 9% a mais que os homens brancos — e as mulheres afrodescendentes, com índice de 50% a mais que a prevalência em mulheres brancas. 

O ministério também listou a hipertensão arterial e a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase como doenças predominantes na população negra brasileira. Essas doenças têm maior prevalência em afrodescendentes não só por fatores genéticos, mas também por agravantes sociais e ambientais. 

De acordo com o órgão, a gestão iniciada em 2023 se comprometeu a desenvolver ações para fortalecer a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), criada em 2009. Para desenvolver estratégias de saúde voltadas ao tema, o ministério criou, neste ano, a Coordenação de Atenção à População Negra, vinculada à Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS).  

Além de formular ações para melhorar indicadores de saúde dessa parcela da população, a coordenação deve aprimorar a coleta de dados e o desenvolvimento de pesquisas com essa temática. A área passa por um processo de estruturação interna e ainda não tem um nome para liderar essas ações. De acordo com o Ministério da Saúde, a definição está em curso. 

Fatores socioeconômicos 

Outro movimento necessário, na avaliação da ativista Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, é o de estreitar o contato entre o poder público e a sociedade civil a fim de compreender as necessidades reais dessa população. 

“Pela forma como é organizado o processo de participação política no Brasil, sem as organizações da sociedade civil, você não consegue acessar a arena pública para falar sobre o assunto, para recuperar a cidadania e garantir direitos. Essa ponte é justamente para garantir aquilo que foi negado ao longo do tempo em termos de direitos humanos, em termos da legislação pública”, avalia. 

Por ter contato direto com a realidade vivida por essa população, as organizações civis que atuam com pessoas pretas conseguem identificar, na prática, as consequências do racismo cotidiano, enfatiza a coordenadora da ONG. Em maio, a Criola organizou, em parceria com outras entidades, a Conferência Nacional Livre de Saúde da População Negra. 

A ativista reforça que questões como o baixo grau de escolaridade, falta de saneamento básico, alimentação inadequada, exposição a ambientes violentos, falta de mobilidade e falta de informação qualificada afetam o acesso à saúde. “Saúde não é só ausência de doença, é também como você vive e é aceito em uma sociedade”, afirma.  

Para Lúcia Xavier, é preciso que o poder público entenda quais fatores socioeconômicos impactam diretamente a população negra para que sejam desenvolvidas políticas mais efetivas, inclusive quando se pensa na perspectiva de doenças mais comuns na população não branca.  

“Com uma pessoa hipertensa, não adianta dizer apenas que ela tire o sal da alimentação. É sobre o que ela consegue, naquela sua dieta e no seu modo de viver, diminuir o consumo para poder controlar a doença. Ao mesmo tempo, não adianta dizer que o problema é dela, porque não é só dela. Alguém que é hipertenso vive isso em um contexto coletivo”, explica. 

A coordenadora da ONG Criola destaca a necessidade de participação da indústria farmacêutica, do poder público e da comunidade científica para o desenvolvimento de novos tratamentos e pesquisas que levem em conta a perspectiva racial. Como exemplo, a ativista cita a anemia falciforme, doença que, na sua avaliação, continua não sendo uma prioridade. 

“A anemia falciforme é negligenciada constantemente. É uma doença que tem tratamentos antigos, não usufrui da célula tronco com clareza, não há pesquisas mais profundas sobre isso. As pesquisas no campo da hematologia não trazem o componente racial como elemento importante. Quando falamos de agravos de saúde da população negra, eles têm a ver com o racismo. Claro, há também componentes genéticos que, se estudados e trabalhados, podem aliviar muito essas outras dimensões”, ressalta. 

Doenças raras

Se o diagnóstico e tratamento de doenças predominantes em pessoas não brancas carece de aprimoramentos, quando se trata de doenças raras a situação é ainda mais delicada. Frequentemente, devido à complexidade desse tipo de doença, os pacientes têm dificuldades em encontrar diagnósticos e tratamentos acessíveis. O caminho pode ser ainda mais árduo nos casos daquelas que atingem populações socialmente mais vulneráveis, como a neuromielite óptica. 

A neuromielite óptica é uma doença autoimune rara e debilitante, causada por surtos graves e recorrentes no sistema nervoso central (SNC). Sem tratamento, a DENMO pode resultar em incapacidades permanentes, como perda de visão e paralisia; e nos casos mais graves, levar à morte  

Estudos sobre a doença apontam que ela atinge de maneira desproporcional grupos mais vulneráveis, como afrodescendentes e mulheres – potencialmente aprofundando a inequidade em saúde. As desigualdades que afetam essas parcelas da população ficam evidentes na própria realização de pesquisas sobre a NMO, segundo o médico neurologista Ronaldo Dias, especialista em doenças autoimunes neurológicas e doenças desmielinizantes. 

“Os grandes estudos são desenvolvidos, em sua maioria, em países de população branca. Eles [grupos de afrodescendentes] ficaram ausentes de pesquisas clínicas. Não temos um estudo epidemiológico robusto que nos dê claramente a razão do porquê a doença acomete mais essas populações”, explica o médico. 

Além da necessidade de inclusão do grupo nas investigações científicas, o médico chama a atenção para a dificuldade de diagnóstico e de tratamento da NMO no Brasil, especialmente no sistema público de saúde.  

No país, o acesso aos tratamentos também é restrito. Em 2023, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso de medicamentos com indicação em bula (on label) para o tratamento da NMO. Os fármacos, no entanto, ainda não estão disponíveis no SUS pois precisam passar por análise e incorporação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). Também não estão disponíveis no sistema privado.  

“Esse processo de incorporação leva tempo. Enquanto isso não ocorre, temos que tentar de alguma maneira fazer com que o paciente tenha acesso a esse medicamento. O caminho é por protocolos clínicos de diretrizes, desenvolvimento de algoritmos terapêuticos, uma avaliação mais rápida possível dessa tecnologia e a incorporação dentro de um protocolo de diretriz no âmbito do SUS para conseguirmos prescrever a droga”, ressalta Ronaldo. 

O médico destaca a importância de dar celeridade às pesquisas sobre o tratamento da NMO, especialmente ao levar em consideração o perfil dos pacientes afetados pela doença. “É uma doença severamente incapacitante, que provoca cegueira irreversível, paraplegia irreversível. Pode deixar um indivíduo na cadeira de rodas pelo resto da sua vida, muitas vezes dependente de terceiros para realizar atividades básicas. A doença atinge pessoas que têm de 30 a 50 anos, uma população economicamente ativa. Se nós olharmos para o horizonte de mulheres pretas de 30 a 50 anos e com, muitas vezes, o nível socioeconômico mais baixo, são pessoas que são mães solteiras e as únicas responsáveis pelas suas famílias. É uma doença rara, mas ela existe e provoca graves danos”, afirma Ronaldo. 

Essa jornada é compartilhada pela jornalista Cleide Lima, fundadora da Associação Brasileira de Neuromielite Óptica (ABNMO). Segundo Cleide, que vive com a doença, o cotidiano das pessoas com NMOSD é complexo devido à dificuldade de acesso ao diagnóstico e a tratamentos. Quando se pensa na perspectiva do Sistema Único de Saúde (SUS), esse caminho fica ainda mais burocrático, na avaliação da presidente da associação.  

“Um dos grandes problemas que se têm hoje com a NMO é que ela é rara, então não se consegue chegar a um diagnóstico rápido. A maioria das pessoas na nossa população não tem acesso amplo à saúde”, afirma. 

A associação oferece apoio a pessoas que vivem com NMO em todo o país. Segundo Cleide, nos próximos meses, o grupo pretende reunir pesquisadores para criar um banco de dados com informações sobre pacientes com a doença no Brasil, reunindo indicadores sobre raça, gênero, emprego e renda. O objetivo é traçar um perfil dos pacientes e compreender quais são as demandas dessa população. 

“Estamos começando a fazer um mapeamento da NMO para entender essas realidades locais, regionais e individuais. Enquanto não olharmos para a doença e para todo o panorama que existe hoje no Brasil, haverá dificuldade de acesso aos tratamentos. A maior parte da nossa população é preta. O poder público precisa olhar para isso, os cientistas precisam olhar para isso”, afirma. 

Além de frisar a importância da coleta de dados sobre a NMO, Cleide destaca o papel da indústria farmacêutica e da comunidade científica na produção de pesquisas para melhorar a qualidade de vida dos pacientes em tratamento.  

“Os medicamentos chegaram. É um motivo grande de comemoração, porque se pensarmos que existem hoje aproximadamente 7 mil doenças raras e apenas 4% têm tratamento, e a NMO já tem medicação com indicação em bula, é um ponto de comemoração. A pesquisa já avançou e isso tem que ser muito louvado. Contudo, na realidade do nosso país, sabemos que será uma luta, que vai demorar para que esses remédios específicos para a doença sejam incorporados e disponibilizados pelo SUS”, avalia.  

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