“Uma imagem vale mais que mil palavras” deve ser uma das expressões populares mais conhecidas do mundo. Frequentemente utilizada para descrever a eficácia da imagem na comunicação, em tempos de Inteligência Artificial, a expressão pode perder o sentido.
Nos últimos meses assistimos avanços exponenciais na capacidade de geração de imagens sintéticas ultrarrealistas em foto e em vídeo. Se há alguns anos a capacidade desses sistemas de aprendizado de máquinas era limitada, hoje os resultados podem facilmente ser confundidos com imagens reais. Entramos em uma nova era em que a verdade e os fatos serão ainda mais questionados.
À medida que a IA avança e cria conteúdos mais sofisticados e indistinguíveis da realidade, nossa interação com a informação será modificada. A confusão criada pela dificuldade em distinguir o real do falso desafiará as noções tradicionais de autenticidade e veracidade e levará a questionamentos sobre a origem e a confiabilidade de qualquer informação que chegar até nós.
Num cenário em que tudo pode ser mentira, a consequência pode ser um ceticismo generalizado. Por um lado, a desconfiança em relação ao conteúdo digital pode despertar um olhar mais crítico e questionador, o que no atual panorama de pós-verdade, desinformação, deepfakes e notícias falsas pode ter efeitos positivos, como criar nas pessoas o hábito de verificar as fontes de informação. Por outro, esse ceticismo pode se transformar numa descrença total, uma incerteza constante, capaz de paralisar a comunicação.
Num artigo publicado no The New York Times em 1990, Andy Grundberg escreveu: “no futuro, os leitores de jornais e revistas provavelmente verão as fotos de notícias mais como ilustrações do que reportagens, já que estarão cientes de que não conseguem mais distinguir entre uma imagem genuína e uma manipulada. Mesmo que os fotojornalistas e editores resistam às tentações da manipulação eletrônica, como provavelmente farão, a credibilidade de todas as imagens reproduzidas será diminuída por um clima de expectativas reduzidas”.
Manipulação de imagens
Manipulação de imagens não é uma novidade trazida pela IA e não faltam casos de usos políticos na história. Durante o regime de Stalin, por exemplo, a remoção de figuras como Leon Trotsky e dissidentes adversários de fotografias oficiais serviu para reescrever a história.
No Brasil, a fotografia manipulada do jornalista Vladimir Herzog, enforcado, foi usada pela ditadura militar para simular um suicídio e ocultar seu assassinato. A famosa última fotografia do presidente Tancredo Neves no hospital foi encenada para abafar sua crise de saúde.
Episódios como esses demonstram a capacidade de imagens para moldar a realidade e são evidências da importância de um questionamento crítico e da transparência em relação à produção e divulgação de imagens.
O deepfake, imagem ou vídeo criado ou alterado com auxílio de recursos de Inteligência Artificial para representar algo que não houve de fato e gerar desinformação, é realidade e motivo de preocupação pela capacidade de influenciar a opinião pública. Só nos primeiros meses deste 2024 já tivemos algumas controvérsias ilustrativas.
Recentemente, uma ação de desinformação envolveu deepfakes do candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, cercado de eleitores negros para gerar a falsa sensação de apoio entre um grupo demográfico no qual ele não tem grande aceitação. O caso não está diretamente ligado à campanha oficial de Trump, as imagens foram criadas por seus apoiadores, o que só ressalta os riscos da facilidade de produção desse tipo de material.
Também acompanhamos a polêmica em torno da divulgação de uma foto da princesa de Gales e futura rainha da Inglaterra, Kate Middleton, com seus filhos, para celebrar o dia das mães. Sem fazer aparições públicas recentes e com seu estado de saúde sob questão devido à falta de informações após uma internação, a imagem aparentemente inofensiva se tornou o foco de debates sobre autenticidade e ética na era digital. A foto foi retirada de catálogos de agências de notícias por suspeitas de manipulação, numa decisão que priorizou a integridade jornalística, dado o contexto da imagem.
Mudança no consumo e crise na mídia
Na última década, as transformações digitais levaram a uma mudança no consumo e na produção de mídia. As redes sociais tornaram-se as principais fontes de informação e sem conseguir se adaptar, a indústria da informação está em crise.
Hoje qualquer pessoa pode criar e propagar conteúdo em velocidade e volume espantosos, sem passar pelos filtros de verificação e muitas vezes com uma qualidade de acabamento que faz esses posts parecerem profissionais e validados. Nessa nova realidade, o desafio de distinguir entre o que é autêntico e o que é falso é ainda mais difícil e aumenta a vulnerabilidade do público à desinformação. A consequência imediata é uma quebra de confiança nas mídias tradicionais.
Com todos os olhos grudados nas telas das redes sociais, naturalmente as verbas publicitárias migraram dos veículos tradicionais para as Big Techs, como Google e Meta, agravando uma situação financeira que já era delicada. Com menos dinheiro em caixa, vêm as demissões em massa, mesmo em instituições estabelecidas como Time Magazine, National Geographic e outros tantos lugares que estamos vendo nos últimos meses.
A falta de pessoal gera sobrecarga nas equipes que continuam trabalhando, compromete a qualidade do conteúdo produzido e diminui ainda mais a confiança do público, num ciclo negativo sem fim. Justamente quando a autoridade de veículos consolidados para servir de parâmetros do que é ou não real se faz tão urgente.
A soma da crise da indústria tradicional da informação, do domínio das redes sociais na produção e distribuição algorítmica dos conteúdos e da ascensão das IA e sua capacidade de gerar imagens realistas, é uma mistura explosiva que dificulta a distinção entre o que é real e o que é falso e pode levar a um estado de constante dúvida sobre praticamente qualquer informação.
O despertar do ceticismo
Uma pesquisa da HarrisX para a Variety Intelligence Platform analisou a capacidade de distinguir entre conteúdos gerados por humanos e por IA, como a ferramenta de geração de vídeos da OpenAI, Sora. A maior parte dos mil adultos pesquisados nos EUA errou ao identificar a origem de cinco de oito vídeos. Este cenário de incertezas pode levar a uma nova mudança no comportamento de consumo, com uma maior conscientização sobre a importância de verificar fontes, educação midiática e até da responsabilidade editorial em tempos digitais.
Nossa atual dificuldade em discernir entre o real e o sintético pode nos levar a um ceticismo saudável, funcionando como um mecanismo de defesa em tempos digitais. Um maior questionamento crítico e análises aprofundada das informações serviria de antídoto para crise de confiança, levando a uma maturidade na forma de se informar.
Como diz o ditado popular, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Se a confusão entre o real e o fabricado seguir crescendo, esse ceticismo pode se transformar em descrença, levando a um quadro em que ninguém acredita em mais nada, nem com comprovações. Esta descrença se espalharia e atingiria instituições, a mídia tradicional, a ciência, comprometendo o tecido social e paralisando a capacidade coletiva de tomar decisões informadas. Soa familiar? Pois é, os efeitos da incredulidade causada pela desinformação já vêm sendo sentidos antes mesmo da popularização das ferramentas de IA.
Tecnologia como aliada da veracidade
A tecnologia blockchain, conhecida por sua aplicação nas criptomoedas, pode servir de ferramenta para encarar os desafios trazidos pela IA generativa no quesito de autenticidade do conteúdo, assim como nas questões relacionadas a direitos autorais.
As características de imutabilidade e transparência dos dados publicados num blockchain possibilita criar de registros inalteráveis que garantem a proveniência e a propriedade intelectual das obras. Isto poderia servir como solução para a verificação confiável da origem e autenticidade das informações, auxiliando inclusive na justa compensação dos autores. Um sistema descentralizado de verificação, onde cada peça de conteúdo tem um registro verificável do seu histórico, pode criar um ambiente em que a veracidade e a originalidade dos dados podem ser facilmente comprovadas.
Saídas para o futuro
Com o volume de produção atual já somos inundados de conteúdo. No livro “Antifrágil”, Nassim Taleb comenta sobre o paradoxo do “gargalo de ruído”, argumentando que, embora intuitivamente mais dados pareça sinônimo de melhor informação, a realidade é que quanto mais dados, maior também o ruído, ficando mais difícil diferenciar o que de fato tem importância. Uma abordagem seletiva e criteriosa na busca por informações pode ser muito mais eficaz.
Esse cenário complexo sublinha a importância de fomentar um ceticismo saudável e uma literacia mediática robusta, capacitando os indivíduos a avaliarem criticamente as informações que consomem. Uma valorização de canais confiáveis e a conscientização sobre a importância de checar informações são passos importantes para diminuir os efeitos da desinformação.
A solução, como sempre, passa pela educação, especificamente a educação midiática. Desenvolver a capacidade de acessar, analisar, avaliar as pessoas, tanto para consumir, quanto parar criar conteúdo é fundamental. Somente uma sociedade bem informada tem a capacidade de tomar as melhores decisões.
O hábito de duvidar do que se vê nas redes sociais pode estimular a mudança de uma postura passiva no consumo de informações, onde simplesmente recebemos o que nos é empurrado pelos algoritmos em duas ou três plataformas, para um processo ativo, de busca por informações. Não faz tanto tempo assim, o caminho comum para acessar conteúdos na internet era digitar o endereço de um site no navegador e visitar um site diretamente.
Um retorno gradual à busca por fontes de informação tradicionalmente consideradas mais confiáveis, como portais de notícias, sites oficiais de instituições e figuras públicas, pode levar a um aumento de acessos e uma redistribuição das receitas publicitárias, fortalecendo esse ciclo.
O desafio de diferenciar o real do fabricado pode ser visto como um teste da nossa resiliência coletiva frente à desinformação. Este momento de incertezas tanto pode ser o prelúdio de uma era de busca pela verdade e a valorização de fontes confiáveis, como pode nos jogar de vez num estado constante de dúvida. Cabe a nós fazermos as escolhas corretas.