Não há que se discutir a importância da inovação, que permite aumentar a competitividade digital e a criação produtos com maior valor agregado e, assim, elevado retorno financeiro. Contudo, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para se tornar um país inovador com competitividade digital. Em 2022, o Brasil ficou em 52º lugar dentre 63 países que foram analisados quanto à capacidade de explorar novas tecnologias, na sexta edição do Anuário de Competitividade Digital do IMD, que conta com a parceria do Núcleo de Inovação e Empreendedorismo da Fundação Dom Cabral (FDC).
Mas como impulsionar ou transformar o ecossistema de inovação no Brasil? Como impulsionar a transformação digital no país e gerar valor a partir de ideias inovadoras aliadas à tecnologia da informação?
Essa não é uma equação fácil, mas podemos enxergar alguns obstáculos que precisam ser superados para que o Brasil possa transformar ideias inovadoras em diferenciais competitivos de alto valor agregado e, assim, competir de igual para igual no mercado globalizado.
1.Criação de um ambiente propício para a inovação
A inovação é um importante catalisador da transformação e competitividade digital. E o primeiro passo para transformar o Brasil em um país inovador é a criação de um ambiente que incentive e valorize novas ideias. Hugo Ferreira Braga Tadeu, da Fundação Dom Cabral, aborda com maestria a necessidade de criação de um ambiente que incentive e que valorize a inovação e a competitividade digital. Para o professor, o país precisa enfrentar três grandes barreiras:
(i) Mais incentivo para pesquisa e desenvolvimento, pois não se inova sem pesquisa aplicada. E a pesquisa necessita de investimento. O histórico recente mostra que foram feitos vários cortes significativos nos recursos destinados às universidades e isso é prejudicial à produção científica. Além disso, é preciso que o governo crie incentivos para que a iniciativa privada participe ativamente da pesquisa e desenvolvimento. Destaco que a ideia é importante, mas é preciso ir além da ideia, como já abordei em um artigo aqui na MIT Technology Review Brasil
(ii) Formação e qualificação das pessoas, especialmente em hard sciences: física, química, biologia, astronomia, geologia e meteorologia. A fundamentação científica é o alicerce para o desenvolvimento científico. Sem formação e qualificação adequadas, a produção tecno-científica certamente é prejudicada. É preciso, também, identificar as pessoas que tenham o perfil adequado para inovar.
(iii) Legislação que favoreça e valorize a inovação, com a criação de incentivos para que o setor privado também invista em pesquisa e desenvolvimento, especialmente de longo prazo, criando soluções tecnológicas realmente transformadoras. E, além isso, o país precisa desburocratizar o empreendedorismo: segundo o Índice Global de Complexidade Corporativa, em 2021 e 2022 o Brasil está no topo como o país mais complexo para se fazer negócios no mundo. Segundo esse índice, os principais impulsionadores da complexidade no país são o volume de mudanças regulatórias a cada ano e o complexo regime tributário nas três esferas de governo.
2. Brasil Figital: A articulação do físico com o digital
O tratamento das barreiras citadas, na seção anterior, é fator primordial para fazer a locomotiva Brasil avançar em direção ao futuro. E como será esse futuro? Segundo o professor Silvio Meira, o futuro é figital. Em seu ebook “Direções, desafios e dimensões para uma estratégia de Brasil figital”, Meira afirma que o ambiente figital já era uma tendência há pelo menos 20 anos e que agora está cada vez mais presente na vida de todos nós. O figital seria a “transição do físico [ou analógico] para uma articulação do físico, que passa a ser habilitado, aumentado e estendido pelo digital, ambos orquestrados pelo social, em tempo [quase] real.” Simplificando, seria a convergência dos “mundos” físico, digital e social das organizações, privadas ou públicas. No mundo figital, é necessário termos uma flexibilidade combinatória que envolve cinco lógicas essenciais: (i) desintegração da organização e seus sistemas para permitir combinações diferentes para criar novas funcionalidades; (ii) distribuição dos processos de criação, entrega e captura de valor; (iii) reintegração dos fragmentos criados na desintegração, para compor funcionalidades complexas a partir da combinação de elementos – fragmentos – mais simples; (iv) coordenação, necessária para essa reintegração de fragmentos de forma adequada para se atingir os objetivos propostos; e (v) plataformização, fluída e flexível, como conjuntos articulados de infraestrutura e serviços para construção de aplicações de forma livre e quando se trata do poder público, com a utilização de plataformas transparentes e abertas.
E como concretizar ações para que o país se torne de fato uma nação figital? Para isso, deve-se definir aspirações que indiquem aonde se quer chegar – indo além de “como deve ser feito esse caminho”. As aspirações, assim, serviriam como força motriz para a busca de soluções inovadoras e para a transformação digital da máquina pública, em prol da sociedade. Meira sugere algumas aspirações que o país deveria perseguir – a maioria até 2030 -, segmentado por grandes áreas, que listo de forma sucinta a seguir:
- Eixo Estado:
(i) virtualizar todos os serviços públicos possíveis;
(ii) o cidadão e as organizações não precisarão buscar documentos públicos para atendimento à demanda do Estado: os órgãos deverão estar integrados para essa troca de informações interinstitucional; ainda, solicitações feitas ao Estado que dependam exclusivamente de processamento de informações deverão ter um tempo máximo para atendimento e, findo tal prazo, a decisão deverá ser a favor do requerente;
(iii) todos os investimentos em transformação figital deverão ser guiados pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS – da ONU;
- Eixo sociedade:
(i) acesso universal e seguro à Internet para todos os brasileiros;
(ii) todos os brasileiros terão competência e proficiência digital;
(iii) toda a população adulta será capaz de distinguir, na mídia e redes sociais, o que é notícia real de notícia falsa;
(iv) garantir a proteção da privacidade, digital e social, para cada brasileiro;
(v) o Brasil deverá ter o entendimento da relevância das plataformas figitais, para poder regular, contestar e responder às demandas da sociedade;
(vi) definir até 2025 estratégias para permitir que a sociedade possa lidar com a multiplicidade de pontos de vista, possibilitada pelo ecossistema de plataformas sociais.
- Eixo Educação:
(i) formar docentes qualificados (f)digitalmente;
(ii) transformar os mecanismos de formação em todos os níveis para o desenvolvimento de competências e habilidades;
(iii) diminuir os custos do sistema educacional, aumentando a cobertura, qualidade, inovação e aprendizado figital;
(iv) educação personalizada após o ensino médio, sob demanda, no espaço figital, em tempo quase real, para todos os brasileiros;
(v) graduação e pós-graduação, por competências e habilidades, no espaço figital e integração efetiva com pesquisa e desenvolvimento, inovação e empreendedorismo;
- Eixo Saúde:
(i) o país, até 2025, deverá estar mais bem preparado para enfrentar crises sanitárias, com evidências precisas e confiáveis de pesquisa e práticas sustentáveis;
(ii) colocar em prática uma gestão estratégica do ciclo de vida de informação em saúde, centralizando dados dos brasileiros de forma confiável, com privacidade e economicidade, para implantar políticas públicas de saúde com base em evidências e dados;
(iii) até 2025, ter governança, interoperabilidade e colaboração – local, regional, nacional e global – de dados de saúde;
(iv) pessoas no centro da estratégia de saúde figital.
- Eixo de Pesquisa, Desenvolvimento, Inovação, Investimento, Empreendedorismo, Produção, Regulação, Mercados, Trabalho, Renda, Emprego e Seguridade Social:
(i) colocar o Brasil entre os 30 melhores países para adoção ampla e segura de serviços figitais;
(ii) ter uma política de Ciência, Tecnologia, Inovação, Regulação, Investimento e Empreendedorismo, capaz de renovar a rede produtiva do Brasil tornando o país em um dos 10 maiores exportadores de produtos e serviços de maior valor agregado das áreas de tecnologia da informação, conhecimento, biologia e energia;
(iii) ter capital humano, ambiente e investimento para competir globalmente, se tornando um dos 5 maiores exportadores de serviços digitais;
(iv) criar uma rede nacional de centros de ensino de graduação, pós-graduação, pesquisa e desenvolvimento de qualidade internacional;
(v) capacidade de qualificação e requalificação do mercado de trabalho em função da informatização, virtualização, robotização e plataformização;
(vi) ter uma plataforma de seguridade social capaz de enfrentar as novas demandas da população – envelhecimento, desigualdades, sustentabilidade do sistema;
- Eixo Mundo:
(i) definir até 2025 uma visão brasileira de mundo figital e se tornar um dos principais atores globais no tema, sendo essa estratégia uma grande relevância na política externa brasileira.
3. E-Digital: A Estratégia Brasileira para a Transformação Digital
E como o Brasil pode traçar uma estratégia para enfrentar os desafios e transformar as suas aspirações em realidade?
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCIT) lançou no mês de novembro a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital) para o ciclo de 2022-2026.A E-Digital traz dois eixos temáticos: os Eixos Habilitadores e os Eixos de Transformação Digital.
Os Eixos Habilitadores são aqueles que são imprescindíveis para que transformação digital aconteça e são transversais em todos os Eixos de Transformação Digital:
(i) Infraestrutura e acesso às TIC: tem o objetivo de ampliar o acesso da população à internet e às tecnologias digitais, com qualidade e economicidade – aqui indo ao encontro do item (i) do eixo sociedade, abordado na seção 2;
(ii) Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I): com o objetivo de estimular o desenvolvimento de novas tecnologias, ampliando a produção científica e tecnológica – de forma alinhada ao Eixo de P&D da seção 2 e ao item (i) da seção 1;
(iii) Confiança no ambiente digital: assegurando que este seja seguro, confiável e propício aos serviços e ao consumo, respeitando os direitos do cidadão;
(iv) Educação e capacitação profissional: para capacitar os brasileiros digitalmente, preparando-os para o trabalho do futuro – como abordado no eixo educação da seção 2 e item (ii) da seção 1;
(v) Dimensão internacional: para fortalecer a liderança brasileira e estimular a competitividade global em relação a temas digitais – em consonância com o eixo mundo da seção 2.
Por sua vez, os Eixos de Transformação focam em estratégias para transformar digitalmente o governo e a economia do país, para permitir a informatização, o dinamismo, a produtividade e a competitividade do país no mundo globalizado e cada vez mais digital. Esses eixos são:
(i) Economia baseada em dados: uma economia data-driven, melhorando a qualidade das decisões e políticas públicas, em prol da sociedade – como sugerido nos itens do eixo saúde e do item (ii) do eixo Estado, abordados na seção 2;
(ii) Transformação digital da economia: um mundo de dispositivos conectados, que deve ser impulsionado pela Internet das Coisas, cidades inteligentes, dispositivos inteligentes e a rede 5G;
(iii) Transformação digital da economia: novos modelos de negócio, impulsionando a transformação (f)digital da economia, da sociedade e das organizações públicas e privadas;
(iv) Cidadania e transformação digital do governo: de modo a tornar os serviços do governo federal – e, por que não, os governos estaduais e municipais – mais acessíveis e eficientes, em consonância com praticamente todo o exposto nas seções 1 e 2.
4.Considerações Finais
A economia global hoje é fortemente impactada pela economia digital, sendo aqueles países com grande capacidade de inovar tecnológica e digitalmente os líderes de competitividade no mundo. Nesse cenário, o Brasil demorou para entender e endereçar os novos desafios dessa revolução digital pela qual o mundo vem passando, há pelo menos 20 anos. Certamente tivemos avanços importantes nos últimos anos, alguns desses impulsionados pela pandemia. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido e a inovação e transformação (f)digital devem ser tratadas com prioridade de Estado pelos nossos governantes, independentemente da orientação político-ideológica.
O Brasil deve, com prioridade máxima, tentar desburocratizar e incentivar a cultura de inovação, que inexoravelmente é a locomotiva de uma transformação (f)digital estruturante, duradoura e que possibilite a melhoria da qualidade de vida da população em geral. A Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital) – onde vimos algumas convergências com as propostas da academia – recém-atualizada, para o quadriênio 2022-2026, em conjunto com a parceria e colaboração constante dos atores envolvidos – governo, setor privado, academia, sociedade – é um bom começo. Só assim o Brasil se tornará o tão propagado “país do futuro”.
*As opiniões contidas no texto são pessoais e não expressam o posicionamento institucional do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
Este artigo foi produzido por Fabio Correa Xavier, Diretor do Departamento de Tecnologia da Informação do TCESP, Mestre em Ciência da Computação, Professor e colunista da MIT Technology Review Brasil.