Bioconvergência: interdisciplina escalonada rumo à saúde do futuro
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Bioconvergência: interdisciplina escalonada rumo à saúde do futuro

Nanosensores adesivos, impressão de tecidos biológicos e nanorobôs que levam drogas a células-alvo já existem. O mundo vivencia uma convergência em massa na ciência, e o presente exige que o melhor de cada área seja incorporado para a superação de obstáculos clínicos.

Quando o cientista Alexander Fleming deixou culturas de bactérias sem proteção durante suas férias, em 1928, um fungo cresceu no local, eliminando indícios de crescimento bacteriano. Resultado de um descuido humano, esse fato representa um momento histórico em que a biologia, sozinha, demonstrou que o fungo do gênero Penicillium era capaz de destruir o Staphylococcus aureus.

No entanto, apesar de a natureza ter agido por conta própria nessa descoberta, dando o pontapé inicial para a ciência, as principais inovações médicas dos últimos dois séculos contaram com a biologia e a tecnologia trabalhando de mãos dadas. Sem isso, os resultados ficariam no papel.

Mesmo no caso da penicilina, fruto da experiência de Fleming, foi preciso um processo de mais de 10 anos antes do início do uso do medicamento em humanos. Para se chegar à fabricação de antibióticos e ao combate às doenças transmissíveis, houve necessidade de se aplicar recursos tecnológicos considerados de ponta para a época.

Se antes a interação entre essas duas áreas já era fundamental, com os avanços recentes em genômica, engenharia molecular, computação e inteligência artificial, a necessidade de interdisciplinaridade foi escalonada para que se encontre soluções capazes de superar obstáculos clínicos persistentes.

O que o mundo está vivenciando hoje não é apenas uma interação gradual, mas sim uma convergência em massa de diferentes campos das ciências.

A junção das ciências

Embora a pesquisa acadêmica que combina engenharia, biologia e medicina já exista há anos, o momento atual é marcado por uma aceleração significativa e pela união de novas ciências, acompanhadas por seus respectivos avanços tecnológicos.

Essa revolução fomenta uma indústria multidisciplinar baseada na sinergia entre diferentes áreas, conhecida como bioconvergência. O conceito representa a conexão e a combinação de campos de estudo de uma maneira, até então, inimaginável.

“A bioconvergência traz como premissa justamente essa junção da biologia com outras áreas, outros domínios de conhecimento, como Inteligência Artificial, Big Data, engenharia de materiais e engenharia da computação. É quando ocorre a unificação da biotecnologia com esses outros campos de conhecimento”, explica a head do Programa Einstein de Inovação em Biotecnologia, Camila Hernandes. 

Alguns países estão apostando na bioconvergência como uma proposta para alavancar a economia, como ocorre em Israel. Empresas que conseguem unir essas expertises têm o potencial de se transformarem em deeptechs, startups baseadas em tecnologias científicas capazes de resolver problemas atuais de alto valor agregado ou, até mesmo, de construir organizações do futuro. 

Presente e futuro 

A bioconvergência faz parte do presente. Um exemplo do que já existe são os sensores que, inseridos no corpo humano de maneira pouco invasiva, captam constantemente o nível de glicose no sangue de pacientes diabéticos. A partir dos resultados, bombas de insulina podem injetar de maneira automatizada a quantidade correta da substância. Além disso, esses dispositivos geram uma série de informações, permitindo a predição de quedas e elevações nos níveis glicêmicos.  

Para o futuro da saúde, há grandes expectativas do que ainda pode ser criado com base em dados captados através de diversos dispositivos, soluções de inteligência artificial, técnicas avançadas de biotecnologia, terapia gênica e terapia celular.  

O uso de adesivos com nanosensores, estudado por pesquisadores em oncologia, ilustra o que está por vir nessa nova fase. A tecnologia avaliada busca identificar moléculas específicas no corpo humano e captar dados a serem processados por algoritmos que determinam o diagnóstico ou até mesmo a predição de doenças. O produto deve demorar algum tempo até ser visto no mercado, mas reúne engenharia molecular, biologia, engenharia da computação e inteligência artificial.  

As projeções de soluções lançando mão da bioconvergência são várias, e a imaginação é ilimitada quando se trata de novas criações: nano-robôs projetados a partir de sistemas biológicos para a entrega de drogas a células-alvo de forma controlada, no momento e local apropriados; sistemas microfisiológicos inovadores que combinam conhecimento de biologia, biofarma e engenharia avançada para o teste de novos medicamentos; tecnologias inovadoras de engenharia tecidual para impressão biológica de tecidos 3D usando novos nanomateriais; biossensores com moléculas biológicas geneticamente modificadas para detecção de materiais no corpo humano; bioeletrônica que combina elementos da química, biologia, física, nanotecnologia e ciência dos materiais para desenvolver dispositivos funcionais.   

Bioconvergência além do papel 

O Hospital Albert Einstein lançou, em julho de 2022, o Programa de Inovação em Biotecnologia para apoiar startups no caminho da conversão de ideias em produtos. Houve ainda a criação de uma nova vertical institucional, a Eretz.bio Biotech, com foco em pesquisa translacional, empreendedorismo, incubação e aceleração, contando com uma rede de parcerias internacionais para intercâmbio tecnológico, formada por instituições públicas e privadas de mais de dez países.  

Segundo Camila Hernandes, a necessidade de desenvolvimento dessa vertical surgiu a partir da observação, ao longo da experiência do Einstein, de que startups de digital health chegavam ao mercado com muito mais facilidade quando comparadas àquelas de medical devices e de biotecnologia. O motivo é que essas áreas possuem um padrão diferente tanto do ponto de vista de investimentos quanto do ponto de vista de exigências regulatórias, o que dificulta a entrada de produtos no mercado.  

“Criamos um pilar de biotecnologia dentro das verticais que já existiam, mas estamos trabalhando no conceito de bioconvergência, que foge à biotecnologia convencional”, explica Camila. 

O programa tem dois olhares principais: o de mercado, para que sejam selecionadas pesquisas que, de fato, resolvam problemas ainda não solucionados, trazendo impacto para o Brasil e para o mundo; e o olhar de produto, pensando em qualidade, segurança e ganho de valor agregado para a saúde.  

Desafios enfrentados 

Para vencer os desafios principais, as empresas que nascem da bioconvergência precisam receber orientações baseadas em todos esses ângulos.   

Startups têm uma série de desafios que são muito particulares. No caso de biotecnologia e de medical devices, cada uma é um ser único, com particularidades regulatórias, de investimento, e particularidades do próprio produto que precisam ser endereçadas de maneira correta. Nós concluímos que deveríamos dar uma atenção maior a essas empresas, criar mecanismos para que elas se desenvolvam, para que daqui a cinco anos o boom que vimos acontecer com digital aconteça com as deep techs”, detalha a head do programa. 

Uma barreira inicial é a busca por investidores. O nível de investimento necessário para as startups de biotecnologia é geralmente muito maior, assim como o tempo para a chegada do produto ao mercado. Para se investir em biotecnologia, é necessário entender o processo de maneira mais aprofundada, respeitando o tempo de maturação da solução. Nessa área, não é possível exigir que a empresa fature em um ano, quando o tempo de desenvolvimento de um produto é de cinco anos.  

Apesar de também atuar como investidor os primeiros editais lançados de pesquisa translacional estão sendo financiados pela instituição –, o Einstein acredita que é necessária a iniciativa da indústria, não só do ponto de vista financeiro, mas também para a conexão das pesquisas com o mercado, trazendo o conhecimento sobre o processo de fabricação de larga escala e sua projeção para o mercado. 

Outro desafio está no conhecimento de negócios. Fundadores de empresas derivadas da bioconvergência possuem, usualmente, um perfil advindo da academia, com grande expertise de pesquisa e até mesmo de produto, mas pouco desenvolvimento na área de negócios. O programa aposta, então, em uma equipe dedicada, que fornece suporte do ponto de vista mercadológico.  

Um cuidado adicional precisa ser tomado quanto à comunicação dos produtos gerados a partir da bioconvergência, evitando o marketing precoce, ainda sem evidências reais de benefícios para a população. Um resultado in vitro, testado em uma célula, não pode ser anunciado como uma solução para determinado problema, criando uma expectativa no mercado que é irreal.  

“Eu me preocupo com o investidor, mas me preocupo ainda mais com a população que cria expectativa de algo que está muito distante de acontecer ou que sequer tem um potencial real, porque não foi testado em condições que garantem o direito de dizer que realmente tem um efeito”, pondera Camila. 

O caminho a percorrer  

A bioconvergência ainda está no início de sua fase industrial, porém grandes empresas farmacêuticas identificaram seu potencial e começam a buscar soluções inovadoras que combinam engenharia e biofarma.  

No cenário brasileiro, algumas startups já iniciaram a fase clínica de pesquisa, embora a maioria esteja em fases pré-clínica e de prova de conceito. No Einstein, todas elas são orientadas a seguir um estudo clínico, de acordo com Camila Hernandes. É fundamental que se consiga provar que, de fato, a empresa entrega o valor proposto.  

Mas, apesar do grande estímulo à pesquisa, o mais relevante para a instituição no momento é a pesquisa translacional. É preciso caminhar junto à tendência tecnológica e, ao mesmo tempo, buscar uma antecipação quanto a questões futuras de saúde e ao que o Brasil pode propor.  

No país, há capital humano qualificado, com recurso intelectual para desenvolver soluções capazes de trazer novos cenários para a população, mostrando o caráter social da bioconvergência. Na avaliação da head do Programa de Inovação em Biotecnologia, é importante que os pesquisadores dedicados sejam cobrados por entregas reais à sociedade, na busca de benefícios palpáveis, e não apenas por publicações científicas. 

O futuro da saúde está na bioconvergência. A natureza continuará nos dando sinais e pistas a seguir, mas o presente exige uma mudança de cultura, com a incorporação ativa do melhor do desenvolvimento tecnológico de cada área científica. 

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Este artigo foi produzido por Roberta Arinelli, Medical Director na ORIGIN Health Co. e Editora-executiva da MIT Technology Review Brasil.

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