As mulheres continuam sendo apagadas da indústria da tecnologia
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As mulheres continuam sendo apagadas da indústria da tecnologia

A decisão de TikTok de usar a voz de uma mulher sem sua permissão é apenas um exemplo recente de um problema que alguns pensam erroneamente que já está superado.

No meio da noite de 24 de maio, o TikTok mudou sua voz. A voz onipresente feminina que podia ler o texto de qualquer vídeo em voz alta em uma cadência robótica e levemente afetada foi subitamente substituída por uma com um tom quase sorridente e otimista. Muitos usuários começaram a chamar a nova voz de “Garota do Vale da Estranheza” para expressar seu descontentamento. O cantor Lil Nas X até fez um TikTok sobre isso.

Mas o que aconteceu com a velha voz? E quem era a mulher por trás dela?

Quando pensamos no papel das mulheres na computação, geralmente pensamos em como, literal e figurativamente, elas foram silenciadas com mais frequência do que ouvidas. As vozes e os corpos das mulheres podem ser encontrados em toda a história da computação — desde por meio de áudios em contagens regressivas de lançamento até serem visíveis em fotos — mas apenas recentemente os historiadores incluíram essas mulheres de volta na narrativa, explicando o que elas fizeram. Por muito tempo, as mulheres foram erroneamente consideradas periféricas para a história da computação, embora muitas vezes fossem elas as programadoras dos computadores.

E ainda há os casos em que, quando ouvimos a voz de uma mulher como parte de um produto de tecnologia, podemos não saber quem ela é, se ela é mesmo real e, se for, se ela consentiu que sua voz fosse usada dessa forma. Muitos usuários do TikTok presumiram que a voz de conversão de texto em fala que ouviram no aplicativo não era uma pessoa real. Mas era: pertencia a uma dubladora canadense chamada Bev Standing, e Standing nunca deu permissão de uso à ByteDance, a empresa dona da TikTok.

Standing processou a empresa em maio deste ano, alegando que as maneiras como a voz dela estava sendo usada — principalmente a forma como os usuários podiam fazer com que ela falasse qualquer coisa, incluindo palavrões — estavam prejudicando sua marca e suas formas de sustento. Ao tornar-se conhecida como “aquela voz no TikTok “, a qual você poderia usar para dizer o que quisesse, Standing teve reconhecimento sem remuneração e, ela alegou, prejudicou suas possibilidades de conseguir trabalho.

E, quando TikTok removeu abruptamente sua voz da plataforma, Standing descobriu da mesma maneira que o resto de nós: ouvindo a modificação e vendo notícias sobre ela. (TikTok não comentou com a imprensa sobre a mudança de voz.)

Aqueles familiarizados com a história da assistente de voz Siri, da Apple, podem estar experenciando um pouco de déjà vu: Susan Bennett, a mulher que dublou a Siri original, também não sabia que sua voz estava sendo usada para aquele produto até que ele foi lançado. Bennett acabou sendo substituída de seu papel como “voz feminina para o inglês americano”, e a Apple nunca a reconheceu publicamente. Desde então, a Apple escreveu cláusulas de sigilo nos contratos dos dubladores e, mais recentemente, afirmou que sua nova voz é “inteiramente gerada por software”, eliminando a necessidade de dar crédito a qualquer pessoa.

Esses incidentes refletem um padrão problemático e comum na indústria de tecnologia. As formas como os feitos das pessoas são avaliadas, reconhecidas e pagas geralmente refletem sua posição na sociedade em geral, não suas contribuições reais. Uma das razões pelas quais os nomes de Bev Standing e Susan Bennett são amplamente conhecidos online é que eles são exemplos extremos de como o trabalho das mulheres é apagado mesmo quando está lá para que todos possam ver ou ouvir.

As formas como os feitos das pessoas são avaliadas, reconhecidas e pagas geralmente refletem sua posição na sociedade em geral, não suas contribuições reais.

Quando as mulheres do setor de tecnologia se manifestam, costumam ser orientadas a ficarem quietas — principalmente se forem negras. Timnit Gebru, que possui um doutorado em ciência da computação em Stanford, foi expulsa do Google, onde co-liderou uma equipe de ética em Inteligência Artificial (IA), depois de falar sobre suas preocupações em relação aos grandes modelos de linguagem da empresa. Sua colíder, Margaret Mitchell (doutora pela University of Aberdeen com foco na geração de linguagem natural), também foi demitida de seu cargo após falar sobre a demissão de Gebru. Em outras partes da indústria, denunciantes como Sophie Zhang no Facebook, Susan Fowler na Uber e muitas outras mulheres se viram silenciadas e, muitas vezes, demitidas como resultado direto ou indireto de tentarem fazer seus trabalhos e mitigar os danos que viram nas empresas de tecnologia onde elas trabalharam.

Mesmo as mulheres que fundaram startups podem ser apagadas em tempo real, e o problema é pior para as mulheres negras. Rumman Chowdhury, doutora pela University of California, San Diego, fundadora e ex-CEO da Parity, uma empresa focada em ética em IA, viu seu papel na história de sua própria empresa ser minimizado pelo New York Times.

[Amigos, estou cansada. Trabalho muito para construir coisas boas e trabalhar com as pessoas certas. A Parity não é diferente.
Pela segunda vez em duas semanas, tenho que lutar contra um grande veículo de comunicação pelo reconhecimento básico do meu trabalho. O gaslighting é real. O apagamento é real. 1 /]

[Para esclarecer as coisas: Parity 2.0 não existiria sem a @ruchowdh. Entre a Accenture e o Twitter, Rumman trabalhou incansavelmente na Parity por um ano. Ela conseguiu clientes, testou o modelo, validou necessidades e criou uma nova maneira de identificar preconceitos em IA além de “apenas dados”. ½]

Em uma reportagem sobre a Parity, o jornal falhou em identificar Chowdhury como a CEO fundadora e, em vez disso, a descreveu apenas como “uma pesquisadora que fez uma ferramenta” na qual o negócio da Parity se baseia. Depois de uma reação pública significativa, o Times silenciosamente atualizou a história, sem emitir uma correção formal. Mas ainda assim não reconheceu Chowdhury como CEO fundadora da Parity, concentrando-se na jovem mulher branca que é sua sucessora.

E recentemente, milhares de criadores de conteúdo negros no TikTok, muitos deles mulheres, entraram em “greve”, recusando-se a coreografar novas danças para o single mais recente da cantora Megan Thee Stallion. As mulheres negras, em particular, têm visto suas coreografias repetidamente copiadas e roubadas por criadores do TikTok que são mulheres brancas e que monetizam essas danças, e até mesmo passam a apresentá-las na televisão nacional, sem dar crédito aos criadores originais.

Quando olhamos para o impacto das vozes das mulheres na tecnologia hoje, podemos ver que elas lideraram exigências de responsabilização e também que foram literal e figurativamente subestimadas. As mulheres muitas vezes estão presentes na tecnologia sem serem ouvidas, desde seu trabalho de locução, que se torna a base das ferramentas de voz utilizadas por milhões de pessoas, sem serem remuneradas ou devidamente reconhecidas, até seu trabalho nos conceitos fundamentais da IA.

Embora as mulheres, e particularmente as mulheres negras, sejam frequentemente as primeiras pessoas a quem as empresas de tecnologia recorrem quando precisam mostrar sua diversidade ou se defender das críticas de que seus produtos agravam o sexismo e o racismo, essas mulheres lutam para que seus conhecimentos sejam levados a sério ao máximo níveis de gestão e raramente estão em posição de definir a agenda para o desenvolvimento tecnológico.

A boa notícia é que historiadores e jornalistas, assim como as próprias mulheres, têm trabalhado muito para reverter esse apagamento e estão tendo um sucesso significativo. Na última década, novos livros, artigos e filmes esclareceram o assunto e mudaram nossa compreensão sobre a importância das contribuições das mulheres para a alta tecnologia. A má notícia é que essas contribuições ainda estão sendo apagadas em tempo real, incluindo o trabalho de mulheres que estão tentando resolver alguns dos problemas mais importantes da tecnologia hoje. Enquanto isso ainda ocorrer, não importa a rapidez com que tentemos corrigir esses apagamentos, acabaremos no mesmo lugar.

Mar Hicks é professora associada do Illinois Institute of Technology e autora do livro Programmed Inequality (MIT Press, 2017).

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