Em um cenário bancário que, por anos, parecia convergir para uma dominância “mobile-first”, instituições financeiras líderes no Brasil estão reavaliando suas prioridades digitais, focando em estratégias avançadas para atender às demandas de produtos de alta complexidade e clientes específicos.
Longe de abandonar o celular, o setor reconhece a relevância contínua do uso do desktop para operações empresariais e de alta renda, como gestão de fluxo de caixa, pagamentos em lote e integrações com ERPs, e explora a integração fluida entre múltiplos canais, incluindo a crescente importância do WhatsApp.
Esse foi o foco da UTablo, organizada pela MIT Technology Review Brasil em parceria com a Unico, que reúne executivos de instituições como Bradesco,
Inter, Sicredi, BS2, Sofisa e outros players do ecossistema.
Sob a mediação do editor-executivo da MIT Technology Review Brasil, Carlos Aros, os especialistas destacaram a adoção de uma “Desktop-First Strategy” para fluxos financeiros complexos, a implementação de “Persistent Sessions” com inteligência de segurança adaptativa para equilibrar conveniência e proteção robusta, a criação de uma “Journey Layer” para orquestrar jornadas personalizadas sobre sistemas legados, e a “Cross Channel Memory” para garantir a continuidade real entre canais, reduzindo fricção e carga sobre o atendimento humano.
Além disso, são abordados os desafios organizacionais, a mensuração do Retorno sobre Investimento (ROI) e a adaptação de “Benchmarks
Internacionais” no contexto regulatório e tecnológico brasileiro.
No cerne dessa transformação está o equilíbrio delicado entre conveniência e a proteção contra fraudes, um desafio constante em um mercado que exige
segurança robusta sem criar fricção excessiva para o usuário.
“A segurança, ela é a antítese dessa boa experiência, porque eu preciso criar pontos de fricção”, destacou Aros.
A busca por uma experiência fluida, segura e personalizada para cada segmento de cliente redefine a colaboração entre equipes de produto, tecnologia e atendimento, impulsionada pela análise de dados e Inteligência Artificial para antever riscos e otimizar jornadas.
Desktop-First: a escolha consciente pelo canal
Embora o discurso do mobile-first tenha dominado a última década, a prática mostra que o desktop segue central em operações bancárias de alta complexidade. A discussão sobre qual canal priorizar vai além da dicotomia entre aplicativo e web, focando no conceito de canal-contexto-produto, onde o meio é escolhido para garantir maior produtividade, controle e segurança ao usuário.
“Constatamos que os clientes ainda usam o desktop. Podemos tentar empurrá los para o mobile, mas, se eles não quiserem, precisamos rever a jornada”, afirmou Hugo Rodrigues, diretor comercial da Unico. Ele destaca a dificuldade de justificar a priorização desse canal dentro dos bancos, já que a maioria dos orçamentos ainda é destinada ao mobile voltado à pessoa física, gerando um subaproveitamento de um espaço digital que concentra grandes volumes financeiros.
No BS2, que atua exclusivamente com o público corporativo, Andre Brasiliano, Gerente Executivo de Tecnologia, explicou que operações de alto volume, como remessas ou importação de arquivos de ERPs, não são viáveis em dispositivos móveis. Ele fala da necessidade de segmentar as funcionalidades de acordo com o perfil de cada cliente, o que se estende também ao segmento premium de pessoa física.
Complementando essa visão, Georges Pellerin, Superintendente Comercial do BS2, destacou que um executivo de uma empresa que fatura alto não vai enviar arquivo de cobrança pelo celular. O acionista pode consultar ou autorizar no mobile, mas o operacional, o tesoureiro, o financeiro, necessita do desktop para o dia a dia, lidando com tarefas como análise e gestão, não apenas com consultas.
O Sicredi e o Bradesco adotam visões semelhantes, com o aplicativo bconcentrando serviços para clientes de menor renda e o desktop cumprindo papel de canal seguro para transações mais sensíveis na alta renda.
“Estamos avaliando continuamente a experiência dos nossos associados pessoa física, entre eles o perfil de alta renda, para identificar oportunidades de aprimoramento nos canais digitais. A necessidade de um internet banking dedicado considera aspectos como a jornada do usuário, o valor agregado e a usabilidade da solução.” atentou Rafael Alves, GPM de Canais PF e PJ do Sicredi.
“Eu acho que, pra PF, dependendo do perfil do cliente, a gente tem que fazer uma equação de custo de serviço, então o app tem que ser a máxima de
serviço, principalmente para o cliente de baixa renda”, complementou José Camargo, Superintendente Executivo de Produtos no Bradesco.
A arquitetura é redesenhada para refletir esse equilíbrio, com personalização no front-end e adaptação por segmento. Bancos digitais como o Inter
defendem “sair do hype” e construir experiências híbridas, trazendo conectividade e multicanalidade típicas dos apps para a web.
“A gente tende a se jogar em um modelo completamente app-first, porque ele é mais atrativo e fácil de prototipar. Mas, às vezes, precisamos de um modelo com mais liberdade de exploração. Não necessariamente será um desktop-first ou um app-first, e sim uma forma de aproveitar o melhor dos dois mundos, em ambas as organizações, para alcançar uma visão mais inteligente, sob uma ótica em que conseguimos metrificar melhor os resultados” resumiu Diogo Ruas, Head no Inter.
Sessões persistentes: conveniência com segurança adaptativa
A complexidade das jornadas digitais bancárias frequentemente esbarra no dilema entre fluidez e proteção. Sessões que expiram rapidamente podem frustrar o usuário e aumentar o abandono de processos; por outro lado, a conveniência excessiva pode abrir brechas para riscos maiores. Ruas explicou que a personalização não se limita à interface de usuário, mas se estende à customização das políticas de risco de acordo com as experiências dos clientes.
Ele exemplificou que aplicar o mesmo nível de validação para uma transação de R$ 10 mil e outra de R$ 10 milhões é ineficiente. A solução passa por calibrar medidas de acordo com o perfil e o histórico de cada usuário.
Hugo Rodrigues complementou que é preciso “orquestrar medidas de segurança” e que, “conforme o score, você chama aquela medida de segurança”, pois o cliente reconhece quando a segurança é aplicada no momento certo com base em seu comportamento.
Em um cenário cada vez mais orientado por dados e expectativas personalizadas, Armando Sposito, Superintendente Sênior de Proposta de Valor e Inovação no Bradesco Empresas e Negócios, destacou a importância de uma estratégia pautada na hiperpersonalização das jornadas, considerando as particularidades de cada cluster de clientes — especialmente os clientes PJ, que demandam soluções mais ágeis, segmentadas e alinhadas às suas necessidades de negócio. Essa abordagem permite entregar valor de forma mais precisa, respeitando diferentes perfis e comportamentos.
Além disso, ele reforçou que a inovação não caminha sozinha: a segurança é uma camada essencial nesse processo. Ao incorporar tecnologias que avaliam o comportamento e o risco das transações, o Bradesco garante que seus clientes PJ vivenciem um ambiente intuitivo, fluido e seguro, onde a confiança é construída a cada interação.
A persistência das sessões é um ponto sensível. No Inter, tokens de validação (PPs) têm validade de até 12 horas, eliminando a necessidade de autenticações constantes em usos rotineiros, mas ativando camadas extras quando há desvios de padrão.
Para reforçar a percepção de proteção, mesmo em jornadas fluidas, Ruas afirma que o banco introduziu “placebos de segurança”. Um deles é um
cronômetro de cinco segundos em pagamentos de alto valor: tecnicamente irrelevante, mas que reduziu de forma expressiva o volume de chamadas por transmitir ao cliente uma sensação psicológica de maior cuidado.
“O grande ponto nesse processo é que, assim como o usuário, a fraude também é híbrida. Ou seja, ela está on, está off, e é multicanal. Ou seja, acompanhar essa jornada, entender essa jornada é o diferencial da história”, ressaltou Aros.
O debate também trouxe a perspectiva educacional. Para Camargo, em um país de digitalização ainda desigual, os bancos acabam exercendo o papel de
formadores da experiência digital. Validar operações de forma clara e compreensível, muitas vezes com mensagens pedagógicas, é tão importante
quanto blindar a transação em si.
No fim, a síntese dos executivos converge para uma mesma ideia: o desafio não é apenas ser seguro, mas sobretudo fazer o cliente se sentir seguro, sem transferir a complexidade técnica da instituição para a ponta da jornada.
Cross Channel Memory: continuidade real entre canais
A Cross Channel Memory, ou memória entre canais, é a capacidade de sincronizar contexto e dados de sessão para que o cliente retome qualquer processo, em qualquer ambiente digital, sem perda de informações. Trata-se da base de uma experiência omnichannel genuína, que reduz rupturas em funis e alivia a pressão sobre o atendimento humano.
Igor Pereira, Head de Growth e Lifecycle Pay do Inter, enfatizou que, quanto mais complexo o cliente e sua jornada, maior a necessidade de lidar com essa complexidade para “ter clientes com maior potencial de receita” e robustez. Ele adverte que, sem essa fluidez, as instituições podem ficar “fadado a estar no BioForce no sentido de receita menor do que ela poderia ser”.
A valorização de canais complementares, como o WhatsApp, é impulsionada pela sua agilidade e adesão massiva no Brasil, tornando-se uma porta de entrada para diversas operações bancárias. Pereira, por exemplo, indica que “a conexão entre desktop, multicanal, o WhatsApp está muito forte agora”.
A discussão se desloca da dicotomia mobile x desktop para um modelo de canal contexto-produto, onde cada interface assume o papel que melhor entrega
produtividade e segurança. O Bradesco, por exemplo, orienta o design de canais com um front-end que garante experiências personalizadas para diferentes perfis de clientes, organizando a página inicial conforme o uso de
cada usuário.
Nesse contexto, a Journey Layer surge como solução de orquestração, permitindo personalizar jornadas sem reescrever todo o core bancário, acelerando lançamentos e reduzindo riscos. A segurança permeia todas as falas, sendo a saída em orquestrar inteligência de risco de forma adaptativa, utilizando “placebos” ou fricções controladas.
Benchmarks Internacionais: aprendizados globais, adaptação local
A evolução dos canais digitais bancários é um esforço para equilibrar conveniência, arquitetura robusta e segurança adaptativa em contextos distintos. Benchmarks internacionais, como BBVA, HSBC, ING e JPMorgan, oferecem lições valiosas em autenticação adaptativa, orquestração de jornadas
e memória cross-channel, explorando inteligência de dados para garantir fluidez entre canais.
No Brasil, Itaú Empresas e C6 são citados como exemplos de bancos que estruturaram experiências digitais de ponta em segmentos complexos. As métricas de sucesso vão além do NPS e ROI, incluindo índices de fraude pós autenticação, tempo médio de conclusão de jornada e custos de suporte
humano. A adoção de camadas de orquestração e sessões persistentes reduziu chamadas em call centers e acelerou a integração com sistemas legados.
No entanto, os líderes brasileiros ressaltaram o desafio de tropicalizar essas soluções. “Não podemos cair em novas hypes. O essencial é entender o cliente e distribuir pelo canal que ele realmente usa”, alertou Camargo. A frase sintetiza o risco de importar modelos estrangeiros sem levar em conta peculiaridades locais, como a centralidade do WhatsApp ou a alta exposição a fraudes digitais no Brasil.
Rodrigues classificou o Brasil como a “Champions League da fraude”, onde golpes são híbridos, multicanais e altamente sofisticados, obrigando os bancos a envolver áreas de risco e auditoria desde a concepção das soluções. A continuidade entre canais depende de dados e inteligência artificial, com a IA preditiva antecipando próximos passos das jornadas e ajustando a experiência
em tempo real.
Flávio Tasinaffo, Superintendente de Prevenção a Fraudes da Sofisa, enfatizou a importância da análise comportamental para identificar atividades legítimas ou fraudulentas. Ele ilustrou isso com um exemplo de um idoso que fez uma grande compra, e a análise de seu comportamento (idade, estado civil, dia do aniversário) confirmou que a transação era legítima e não uma fraude.
“A gente vai entender a necessidade de construir um app ou melhorar a ferramenta de teste, mas tem que passar por uma área de prevenção. Ela dá a chancela mínima de que aquilo ali tem um caminho de segurança. A partir do momento da construção, o cliente está usando o app. Aí entra a parte
comportamental.”
Aros encerrou a discussão lembrando que não existe solução única. “Para tudo nessa nossa jornada cada vez mais digital, cada vez mais tecnológica, não existe uma bala de prata. Não existe uma só resposta.”
Enfatiza ainda que o ponto central é como cada instituição quer ser percebida pelo cliente e como entende que o cliente deseja ser visto por ela. Pode ser PJ ou PF, mas no fim o dinheiro é o patrimônio dele e precisa ser protegido e cuidado.
“O dinheiro é dinheiro, é o que ele tem, é patrimônio, e há a necessidade de
cuidar e de garantir esse processo.”