A adoção da Inteligência Artificial tem se consolidado como prioridade estratégica para empresas em todo o mundo, impulsionando investimentos e transformações significativas. No entanto, à medida que a tecnologia se torna mais acessível, o verdadeiro desafio deixa de ser apenas técnico ou regulatório, e passa a ser cultural e estratégico. Embora aspectos como privacidade de dados, confiabilidade dos modelos e riscos regulatórios permaneçam relevantes, muitas organizações ainda enfrentam dificuldades em integrar a IA de forma alinhada aos seus objetivos de negócio, explorando seu potencial para gerar valor real. Isso exige não apenas infraestrutura tecnológica, mas uma cultura orientada por dados, líderes preparados para promover mudanças e uma visão clara sobre onde e como essa ferramenta pode criar impactos mensuráveis.
Dados do relatório Cisco AI Readiness Index 2024 apontam que 98% das empresas brasileiras consultadas na pesquisa estão “em processo de implementação ou de desenvolvimento de uma estratégia de IA”. Por outro lado, a aplicação prática desses projetos ainda é um desafio, de modo que apenas 25% desse total se veem preparadas para adotar soluções de Inteligência Artificial em suas operações do dia a dia.
CEO do TEC Institute, Bruno Martins, destaca que, para que as transformações impulsionadas pela IA se consolidem nas organizações, é essencial promover uma mudança cultural significativa. Essa transformação passa, principalmente, pela disposição em lidar com os erros que podem surgir no percurso, algo diretamente relacionado à flexibilidade dos processos internos e à abertura para a inovação.
“A Inteligência Artificial vai modificar a forma com que as pessoas se relacionam dentro das organizações. E a cultura passa a ser um elemento fundamental para que essas transformações, de fato, gerem o valor que é esperado. Processos e rituais muito rígidos podem dificultar a evolução. Nesse sentido, vai se dificultar, também, a proposta de inovação. Portanto, essa abertura é fundamental nos rituais de governança da empresa”, afirma.
Diante desse cenário, vale destacar que o sucesso na adoção da Inteligência Artificial não depende, apenas, de soluções tecnológicas avançadas, mas de um ecossistema organizacional preparado para absorver mudanças. Essa transformação cultural também traz à tona um novo conjunto de desafios relacionados ao capital humano, como por exemplo, o potencial de substituição de determinadas funções, o impacto nos empregos profissionais em início de carreira (Entry Level Jobs) e a necessidade urgente de reskilling das equipes. Afinal, para que a IA gere valor de forma sustentável, será preciso repensar não só processos, mas também o papel das pessoas dentro das organizações.
O desafio de formar e requalificar
São inúmeros os questionamentos sobre os impactos da Inteligência Artificial no mercado de trabalho, tanto para quem já faz parte dele, quanto para quem está iniciando a sua caminhada. Certas funções vão desaparecer? Quais os riscos de sermos substituídos pela IA? O caminho é se requalificar? Ainda que uma das premissas da IA seja a substituição da mão de obra – de modo especial em atividades repetitivas -, a fim de gerar ganhos na produtividade, há dois movimentos opostos ocorrendo ao mesmo tempo.
O primeiro se refere ao impacto negativo, o chamado “desemprego tecnológico”. Ainda que este conceito tenha sido apresentado em 1930 por John Maynard Keynes, sua ideia central segue bastante atual. À época, o economista britânico afirmou que os avanços tecnológicos poderiam provocar “desemprego devido à nossa descoberta de meios de economizar o uso de trabalho a uma taxa mais rápida do que conseguimos encontrar novos usos para o trabalho”.
No contexto da adoção, cada vez maior, da Inteligência Artificial pelas organizações, os maiores impactos devem acontecer em funções mais tradicionais. Segundo um estudo realizado pela Coursera Enterprise, 85 milhões de postos de trabalho serão substituídos por tecnologias emergentes, até o fim deste ano. Internamente, as empresas já começaram a se movimentar no sentido de reduzir suas equipes em tarefas que podem ser automatizadas. De acordo com o relatório Future of Jobs 2025, do Fórum Econômico Mundial, cerca de 40% dos empregadores entrevistados apontaram para essa mudança.
Apesar disso, a própria entidade indica um cenário mais otimista para as empresas e profissionais que buscarem a requalificação voltada às habilidades ligadas à Inteligência Artificial. O documento aponta que 80% das companhias planejam capacitar seus colaboradores com treinamento em IA. Além disso, 70% dos entrevistados afirmou que planejam contratar novos talentos, um movimento importante, uma vez que diante da falta de experiência e ocupação de cargos ainda “iniciantes” – os chamados Entry Level Jobs –, acabam sendo “os mais afetados” nessa hierarquia, como destaca Bruno Martins.
A formação de novos talentos e a requalificação de profissionais que já estão na ativa precisam ocorrer de forma integrada, com o envolvimento de empresas e instituições de ensino. Mais do que acompanhar a velocidade das mudanças tecnológicas, o desafio está em promover uma transição justa, que amplie oportunidades em vez de aprofundar desigualdades. Preparar pessoas para atuar com Inteligência Artificial é, portanto, uma estratégia essencial para construir um futuro do trabalho mais inclusivo.
Setores distintos, riscos distintos: um caminho adaptável a IA
O Projeto de Lei 2.338/2023, que regulamenta o uso da Inteligência Artificial no Brasil, foi aprovado há pouco mais de um mês pelo Senado e aguarda análise da Câmara dos
Deputados para se tornar lei. A proposta apresentada classifica os riscos dos sistemas de IA no que diz respeito aos “riscos à vida humana e quanto à ameaça aos direitos fundamentais”. Além disso, o texto estabelece duas categorias para a tecnologia que passam por essa avaliação: a IA de propósito geral – como, por exemplo, o ChatGPT – e a GenAI. Por outro lado, a classificação de risco não está prevista para outras formas existentes ou que estão em desenvolvimento.
Diante de uma tecnologia que apresenta novidades quase que semanalmente e que não depende de um avanço significativo em infraestrutura e questões técnicas, se faz necessária uma legislação com um olhar de longo prazo. Trata-se de pensar menos em respostas imediatas para desafios pontuais e mais em uma estrutura regulatória que permaneça válida à medida que os modelos evoluem e novas aplicações surjam. Nesse sentido, o CEO do TEC Institute, Bruno Martins, acredita que o foco deve estar em princípios duradouros e que sejam capazes de orientar o uso da IA independentemente da tecnologia específica envolvida.
“A IA vai mudar muito ao longo do tempo. A forma como são feitas, os LLMs e as novas tecnologias que estão surgindo vão mudar o tempo todo. A gente deve fazer uma legislação não para dois anos, mas pensando em algo mais genérico e que seja útil para os próximos dez anos”, pontua.
Nesse contexto, é possível uma abordagem regulatória que leve em conta as especificidades de cada área da economia. Áreas como finanças, educação e serviços lidam com riscos e aplicações bastante distintos, o que justifica diretrizes próprias e uma atuação coordenada e setorizada. Essa lógica permite responder com mais agilidade e profundidade aos desafios reais que surgem na prática, sem depender de atualizações constantes na legislação geral.
“Outro ponto, é que esta regulamentação deveria acontecer por setor (do mercado) e menos por tecnologia. Além disso, a lei deveria utilizar termos mais longevos para que ela fique menos perecível”, finaliza Bruno Martins.