Como equalizar os avanços das tecnologias em saúde e as normas para disponibilizá-las?
Biotech and Health

Como equalizar os avanços das tecnologias em saúde e as normas para disponibilizá-las?

Acesso a terapias inovadoras exige amadurecimento do processo de incorporação para que tratamentos revolucionários de fato cheguem a quem precisa

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Este é o texto do artigo 196 da Constituição Federal de 1988.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), no relatório do Conselho de Economia da Saúde para Todos, intitulado “Saúde para Todos: transformando economias para fornecer o que importa”, lançado em 2023, ao menos 140 países reconhecem a saúde como um direito humano.

Porém, no campo de produtos inovadores, como as terapias gênicas — capazes de transformar significativamente os desfechos de algumas doenças —, a discussão sobre acesso tem se tornado ainda mais urgente. A OMS aponta a direção: “A saúde para todos deve ser central à forma como organizamos nossos sistemas sociais e econômicos.” Mas como viabilizar isso, considerando a sustentabilidade de sistemas de saúde com recursos limitados, especialmente em países em desenvolvimento?

ATS no Brasil e no mundo

O estudo “Incorporação de Tecnologias no SUS – Contribuições à Conitec”, feito pela Oracle Life Sciences a pedido da Interfarma, analisou o processo de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) no sistema público.

A pesquisa examinou 12 tecnologias que passaram pelo processo de avaliação da Comissão Nacional de Avaliação de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) entre 2019 e 2022, abrangendo tratamentos para doenças raras, câncer, condições de alta prevalência e terapias avançadas. Renato Picoli, responsável pelo estudo, afirma que o objetivo foi contribuir para o amadurecimento do processo de ATS no Brasil.

Após a avaliação dos resultados obtidos, a conclusão da pesquisa foi que houve falta de padronização nos critérios e julgamentos que orientam as decisões, o que ficou evidenciado por pareceres distintos para tecnologias similares ou aplicadas a uma mesma patologia.

“Fizemos uma análise qualitativa dos relatórios de recomendação da Conitec, avaliando como fatores relevantes eram mencionados e justificados. É importante destacar que o período analisado precede a adoção do limiar de custo-efetividade, com novas regras de avaliação introduzidas recentemente”, explica Picoli.

Dos cinco aspectos avaliados — doença, tecnologia, evidências clínicas, evidências econômicas e sistema de saúde —, as evidências clínicas e econômicas foram predominantes como critério determinante na recomendação técnica.

Uma análise mais detida demonstrou que os critérios econômicos, na maior parte dos casos, estavam relacionados com o custo gerado pelos impactos orçamentários e pelo resultado das análises de custo-efetividade desfavorável que apresentava altos valores para cada Ano de Vida Ajustado pela Qualidade (AVAQ) adicionado.

Das 12 tecnologias analisadas oito foram incorporadas ao SUS. Em seis casos houve mudança de parecer com o processo já em curso. Essas alterações, foram motivadas por novas evidências, com a apresentação de dados de vida real e reduções de preço.

Comparando com agências internacionais, o estudo revelou que as decisões da Conitec são alinhadas às do NICE (Reino Unido), CADTH (Canadá) e PBAC (Austrália). Isso significa que houve a mesma conclusão, considerando, porém, as diferentes realidades econômicas.

“É importante que tudo esteja explícito, porque traz transparência ao processo, independentemente da justificativa. Se tem alto impacto orçamentário, certo, mas qual a disposição de negociar? O que faz sentido para tratar a sua população hoje? Essa é nossa expectativa de melhoria do processo”, afirma Picoli.

Modelos em construção

Renata Curi, diretora de Acesso ao Mercado da Interfarma, elogia a transparência da Conitec na divulgação de dados, mas aponta a falta de clareza nos critérios que fundamentam suas decisões. Essa opacidade, segundo ela, não permite que as empresas se adequem ao processo regulatório de forma correta porque desconhecem o que impacta na decisão do governo.

“Não sabemos quais critérios são priorizados ou com que peso, especialmente em relação a tratamentos mais inovadores, o que torna desafiador compreender o racional por trás das recomendações”, afirma Renata.

Um exemplo dessa lacuna é o uso de limiares de custo-efetividade, cuja adoção foi oficialmente recomendada pelo Ministério da Saúde em 2022. Esse parâmetro avalia se uma terapia ou medicamento apresenta custo-benefício, considerando sua contribuição para a qualidade ou a quantidade de vida. O limiar, geralmente, é um valor monetário baseado no PIB per capita de cada país.

“A ideia de realizar estudos comparativos é muito válida, mas é essencial ter critérios que estabeleçam alguma equivalência entre países, sistemas de saúde, populações e orçamentos. Precisamos adotar modelos que reflitam a realidade de um país em desenvolvimento, como o Brasil, e buscar avanços, em vez de nos limitar a comparações com países que incorporam menos”, avalia Renata.

Por fim, ela destaca dois pontos que podem contribuir para o amadurecimento do processo de ATS no Brasil. Primeiro, que a recomendação técnica adote, em alguma medida e com clareza, os insumos obtidos da participação social, garantindo que as contribuições obtidas em consultas e audiências públicas tenham impacto claro nas recomendações finais. Depois, a criação de uma etapa formal para diálogo com a indústria farmacêutica, permitindo que as empresas proponentes respondam a questionamentos sobre as tecnologias, apresentem argumentos técnicos e participem de negociações ao longo do processo.

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O desafio do alto custo

Um dos grandes desafios do sistema de saúde é a busca pela oferta de produtos inovadores pela via judicial. Isso ocorre quando, por diferentes motivos, o tratamento não foi disponibilizado para o paciente no SUS ou na saúde suplementar.
Números divulgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) dão conta de que, de 2020 a 2024, o número de novas ações judiciais por mês, relacionadas à saúde, quase triplicou (passando de 21 mil para uma média de 61 mil).

Recentemente, o STF apreciou dois recursos que estabelecem um novo entendimento sobre o fornecimento – via decisão judicial – de medicamentos com registo na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas ainda não disponíveis no SUS.
Como resultado, foram estabelecidos critérios mais rigorosos para aquisição das terapias, tais como a “impossibilidade de substituição por outro fármaco já previsto nos protocolos terapêuticos da Conitec e imprescindibilidade clínica do tratamento”, ou a obrigatoriedade do Poder Judiciário de “analisar o ato administrativo comissivo ou omissivo de não incorporação pela Conitec ou da negativa de fornecimento da via administrativa, à luz das circunstâncias do caso concreto e da legislação de regência, especialmente a política pública do SUS”.

A diretora de Acesso ao Mercado da Interfarma avalia, todavia, que a definição de critérios pelo Judiciário contradiz o princípio do acesso à Justiça que determina que o cidadão deve buscar o judiciário quando seu direito não for cumprido, o que, no caso da saúde, restringe o acesso a novos tratamentos. “É uma tentativa legítima de regular esse ambiente, porque a judicialização tem um efeito perverso de desorganizar os sistemas, mas ao mesmo tempo cria esse aspecto contraditório ao princípio, que é o da busca pelo Judiciário quando seu direito é resistido”, afirma.

Em relação ao alto custo dos produtos inovadores, Curi avalia que a indústria farmacêutica passou por um processo de amadurecimento e está disponível para um diálogo honesto com o governo federal, a fim de construir soluções de maneira colaborativa.

“Vemos o preço nominal e eventualmente não discutimos custo-minimização, economias indiretas, o retorno do paciente ao ambiente social e laboral; e o que isso impacta na previdência, na economia do uso de leitos, de antibióticos, de idas ao hospital, do fardo da família que deixa de trabalhar. Todas essas coisas têm impactos econômicos que não são considerados nessa discussão, mas deveriam”, conclui.

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