A infinidade de novos caminhos abertos pela IA generativa está mudando a nossa forma de viver, trabalhar e se relacionar. É incrível pensar como esses caminhos estavam bloqueados até pouco tempo, por falta de capacidade de processamento, tecnologia e de modelos de linguagem avançados. Era um mundo mais acessível a quem sabia programar. Hoje, o ChatGPT, por exemplo, já tem mais de 180 milhões de usuários. Não é exagero afirmar que a tokenização trilha um caminho parecido. E a próxima revolução virá por meio dos tokens de ativos do mundo real (RWA).
Há anos que existe um entusiasmo em torno de tokenização de ativos digitais, introduzida oficialmente em 2017. Mas, apesar de grandes previsões, não decolou de forma significativa, avalia um relatório da McKinsey. A grande questão é que vivíamos um período de transição — e a discussão dos tokens evoluiu no âmbito das stablecoins (uma criptomoeda atrelada ao valor de ativos do mundo real) e NFTs (uma prova digital da propriedade de algo que alguém pode comprar ou vender). Em paralelo, vimos a disseminação de plataformas de blockchain, o maior entendimento sobre contratos inteligentes, a própria evolução do processo de colocar e fracionar um ativo no blockchain.
Agora, chegou a hora do jogo para valer: analistas do mundo cripto apontam que a RWA é a grande virada do jogo. Nas palavras de um deles: “não é apenas um salto tecnológico, é uma ponte revolucionária que permitirá que os ativos [financeiros, imobiliários, do mundo das artes, agro] transitem perfeitamente entre os domínios físico e digital”. Mas de que salto exatamente estamos falando?
O que é a tokenização RWA
Falar dos “Real World Assets” (RWA) é falar de um instrumento de investimento digital no blockchain vinculado a ativos físicos como imóveis, carros, ouro, arte e muito mais. A propriedade não é mais representada por um documento físico, como uma escritura de propriedade (cartório), agora pode ser registrada no blockchain.
Mas o grande lance é que esse tipo de token viabiliza a noção de propriedade fracionada. Ou seja: são instrumentos que nos permitem, por exemplo, comprar ‘um pedaço’ de um apartamento, de uma obra de arte, de uma ação. É, de fato, uma democratização da posse, do dinheiro e dos investimentos.
No setor imobiliário, por exemplo, os RWA permitem que a posse de uma propriedade luxuosa, ou um imóvel comercial, seja transformada em pequenas frações, representadas cada uma no blockchain. Investidores ou pessoas comuns podem adquirir partes delas até conseguirem quitar tudo — e esse tipo de possibilidade abre caminho para muito mais gente acessar e possuir imóveis mais caros, sem depender da aprovação de financiamento via renda.
E esse cenário já está se materializando. O valor total dos tokens da Tangible, emissora de RWAs centrados em imóveis, saltou de meros US$ 100 para US$ 64 milhões nos três primeiros trimestres de 2023.
A tokenização RWA também permitirá acessar novos fundos de investimento, novas empresas, novos serviços de crédito e empréstimo. Várias instituições financeiras já acreditam no potencial de explorar instrumentos financeiros tokenizados — indo além do mero uso operacional e de poupança, como o JP Morgan e HSBC. Analistas defendem que a negociação fracionada de ativos financeiros pode levar a uma liquidez maior e a uma gama mais ampla de investidores — e, ao negociá-los numa rede descentralizada, os custos de transação diminuem, a liquidação é automática e a rapidez da negociação aumenta.
De acordo com uma pesquisa da empresa Celent encomendada pelo BNY Mellon, 91% dos investidores institucionais estão interessados em investir seu dinheiro em ativos tokenizados, com 97% concordando que a tokenização tem o potencial de revolucionar a gestão de ativos. Ao conseguir comprar pedaços de uma ação e registrar isso em contratos inteligentes no blockchain, também é possível estruturar novas formas de direitos de voto ou de propriedades associados a esse investimento, afirma um relatório do BNY Mellow. “Existe a possibilidade de incorporar um modelo de capitalismo de stakeholders, uma teoria de gestão popular nas décadas de 1950 e 1960 que promove benefícios à comunidade de forma geral e não apenas aos acionistas”.
No mundo das artes, a propriedade fracionada já é realidade. Recentemente, o banco Sygnum, sediado em Zurique, transferiu os direitos de propriedade legal da obra-prima de Picasso Fillette au béret para o blockchain. A instituição fracionou o ativo digital em 4 mil tokens, que foram vendidos a mais de 50 investidores por 1.000 francos suíços cada. Ao fazê-lo, a Sygnum deu origem a um novo gênero de investimentos denominado Art Security Tokens (ASTs).
Os desafios dessa revolução
Como toda disrupção, estamos pisando em território ainda não estabelecido. Escrevemos as regras à medida que avançamos. Há infinitas incertezas regulatórias envolvendo a materialização dos tokens RWA, embora muitos países — inclusive o Brasil (com a evolução do PIX e do Drex) — estejam avançados e confiantes nessa transformação. Ajudaria termos uma taxonomia global (ou seja: a definição padrão de token para o mundo inteiro)? Um quadro regulatório flexível, mas objetivo, envolvendo toda a cadeia de valor de ativos digitais seria importante. Mas quem supervisionaria?
Outro grande desafio é de ordem técnica: como criar interoperabilidade entre as diferentes redes blockchain existentes? Como garantir, de fato, a segurança máxima dos dados e gerar confiança no sistema de forma geral? Como criar um efeito de rede grande, estimulando que mais e mais pessoas se sintam motivadas a investir nesses tokens — o que inclui mudar a mentalidade e a noção pessoal de propriedade de tantas coisas ao redor?
São muitas perguntas ainda sem resposta. Mas o potencial de moldar o futuro das finanças, do investimento, do mundo das artes, do mercado imobiliário — e de tantos outros — já é projetado. O Boston Consulting Group estima que os ativos de títulos tokenizados poderão representar aproximadamente 10% do PIB global até 2030. Entrar ou não nessa história já não é dúvida para muitos. E quanto mais cedo entrarmos, maiores as chances de ajudarmos a escrever essa revolução. Afinal, eu acredito de verdade que a próxima revolução será tokenizada.
Guga Stocco
